segunda-feira, 16 de maio de 2011

O MEC do Senhor Haddad

           A polêmica sobre o livro “Por uma Vida Melhor”, de Heloísa Ramos, talvez não devesse sequer existir.
           Para que discussão sobre qualquer tema possa ser pertinente, há uma premissa indispensável sobre a qual todos devem estar concordes.
           De início, importa assegurar que o debate esteja centrado sobre questão específica, ou o que vem a dar no mesmo, em que não haja dúvida sobre a matéria controversa.
           Se não, o risco é que a irrelevância dos comentários, ao invés de lançar luz sobre o pomo da discórdia, venha a radicalizar as posições e aumentar a confusão primeva.
           Em um debate, muitas verdades podem ser ditas, mas elas não nos devem confundir sobre o propósito do exercício, que é o de determinar não a realidade factual de cada assertiva, mas qual é a lição a ser havida da argumentação.
           Quiçá ao imaginar seja este o objetivo, já esteja me colocando em perigosa minoria. Porque nas disputas a verdade ou a realidade objetiva não costumam ser o escopo colimado.
           Por um instante, sem embargo, peço ao leitor que, como nas negociações de tópicos difíceis, ponhamos entre parênteses essa questão específica.
           Esse tipo de linguagem, de que trata o manual de Heloísa Ramos, não há negar, ele existe. Como assinala Ana Maria Machado, da Academia Brasileira de Letras, pode haver “malabarismos linguísticos”. E acrescenta: “qualquer um pode cometer todos os barbarismos linguísticos que quiser, mas deve saber que eles só se sustentam dentro de um contexto (um autor que reproduza a fala popular, por exemplo) e têm um preço social”.
           Qual o contador de estórias que não inseriu nos diálogos de seus contos a peculiar regência popular ? Não há nele o traço elitista que deparamos no texto de Clóvis Rossi “Inguinorança”. Lá está apenas o desejo de apresentar os personagens sob luz veraz. Fazê-lo de outra forma não seria conforme à realidade.
           O que se esquece nessa discussão – e alguns o fazem adrede, em um proposital desvio de função – é transformar a linguagem dialetal de sua utilização na conversa do dia-a-dia em uma espécie de regra gramatical às avessas.
           São conhecidos os caminhos da linguagem e a sua tendência a assimilar a linguagem demótica.
           No entanto, mesmo nos domínios do falso popularesco do dr. Haddad, não é contestada a verdade singela que não se pode colocar a carroça adiante dos bois. Se a facilidade linguística é o destino, nem sempre a ânsia de imitá-la pela desmesurada pressa se afigura como a senda mais confiável.
           Cada vetor do saber tem a sua função específica. Assim como a ciência médica, de Hipócrates até hoje perfez uma longa trajetória, não se vá esperar que para encarinhar-se com comunidades selvagens venha a admitir e a equiparar com as próprias as verdades do pajé. Tampouco é lícito – e intelectualmente adequado – que a escola primária ou secundária troque alhos por bugalhos, e erija em regra gramatical o que é apenas abonação dialetal.
           Um auxiliar do ministro Fernando Haddad afirmou com a ênfase do poder: “Não somos o Ministério da Verdade. (...) Já pensou se tivéssemos que dizer o que é certo ou errado ? Aí, sim, o ministro seria um tirano.”
           Esta anônima defesa da suposta política do senhor Haddad – o auxiliar, vejam só, pediu para não ser identificado – já desvela o erro conceitual desses que se crêem ardorosos populistas.
           A escola não trata de verdade e sim de saber, a epistéme dos gregos. O bom pedagogo nada impõe, apenas ensina. E o modo de fazê-lo tem evoluído através dos séculos e da tecnologia.
           Não vamos arremedar o que só tem coerência na sua própria realidade.
           E o livro – ou o manual – não deve esquecer a sua missão precípua. Nem abastardá-la, lançando a confusão a quem vai à escola em busca de esclarecimento. A fantasia é própria do carnaval. Confundir vestes – e funções – fora dele não é o caminho a ser seguido por quem queira ensinar.


(Fonte subsidiária: O Globo )

Nenhum comentário: