terça-feira, 17 de maio de 2011

Justiça para Dominique Strauss-Kahn

           Em certos momentos é difícil guardar o silêncio. Estão aí não só o aforisma latino que torna co-partícipes aqueles que se calam, senão a assertiva de pontífice medieval, que enfatizara o limite ético do mutismo e da abstenção.
           Na verdade, também non possumus (não podemos). A detenção, por ordem da justiça estadunidense, de Dominique Strauss-Kahn, a bordo de aeronave da Air France, já em preparativos para a decolagem, reúne muitos elementos para que venha a constituir uma causa para o direito internacional.
           Cercam a personalidade detida antecedentes que tendem a caracterizá-la como alguém já envolvido em passado recente em episódios passionais, com a sua alegada propensão a aventuras extra-conjugais. Se pela circunspecção alheia, inclusive do próprio cônjuge, tais ocorrências haviam sido contidas, não transbordando para o escândalo dos tribunais, sempre resta alguma coisa como na frase célebre do personagem de Beaumarchais.
           Por outro lado, a questão é bem mais complexa e não se limita a tais pormenores.
           De acordo com a jurisprudência americana, qualquer suspeito, se não tem mais o direito de permanecer calado (Decisão Miranda, da Suprema Corte, modificada em 2010 pela atual corte conservadora, que o obriga a manifestar a sua discordância expressamente), não será perseguido pelos seus antecedentes, mas unicamente por eventual delito do qual é acusado.
           Dessarte, malgrado a truculência das ações policiais, todo o suspeito tem o sacrossanto direito à presunção de inocência, até que a sua culpa seja provada em julgado.
           Se ninguém, portanto, está acima da lei, tampouco nenhuma pessoa pode ser pré-condenada e dessa forma tratada em consequência.
           Dominique Strauss-Kahn é alto funcionário internacional, diretor-geral do Fundo Monetário Internacional. Por sua reconhecida competência econômico-financeira, se achava prestes a concluir acordos instrumentais para a estabilização da economia da República Helênica. Igualmente, em decorrência da própria capacidade, o seu nome parecia fadado à indicação para a candidatura presidencial francesa, pelo Partido Socialista, no pleito do próximo ano.
           No aspecto formal do direito internacional, Strauss-Kahn, a fortiori como dirigente internacional de primeira plana, deveria fruir de status similar àquele que gozam os diplomatas, pela Convenção de Viena. Conceder a imunidade diplomática a essa categoria não é privilégio abusivo, pois a deixa ao abrigo daqueles que busquem valer-se do foro local para obstaculizar-lhe a indispensável liberdade de ação no exercício das respectivas funções. Tal prerrogativa do diplomata ou funcionário internacional não o exime de responder por suas supostas transgressões (V. o caso de Kurt Waldheim (1918-2007, considerado virtual persona non grata após a revelação do passado nazista).
           O tratamento dispensado a Strauss-Kahn faz pensar que a Convenção de Viena, ratificada pelo Congresso americano, assim como pela quase totalidade dos países, semelha não mais aplicar-se nos Estados Unidos.
           A par disso, como se configura o processo contra o Diretor-Geral do FMI ? Do incidente no hotel nova-iorquino, se conhece a versão da camareira. Para a promotoria e a justiça distrital, isto basta para determinar o flagrante delicto ?
           Por outro lado, o advogado Benjamin Brafman, da parte acusada, que se especializa em defender celebridades, além de afirmar ‘este é um caso muito, muito defensável e ele deveria ter o direito à fiança’, para tanto oferecendo em depósito um milhão de dólares.
           Por sua vez, o promotor distrital-adjunto John McConnell asseverou na Corte que “o acusado constrangeu a empregada do hotel a ficar dentro do quarto. Ele a atacou sexualmente e tentou estuprá-la pela força”. O único video do hotel a que pôde aludir foi o da saída do hóspede do Sofitel e “ele parecia estar com pressa”. A soma, que corresponde à relevância do suspeito, não demoveu a Melissa Jackson, juíza supervisora do Tribunal Penal de Manhattan, da manutenção da detenção, pela alegada probabilidade de fuga de Dominique Strauss-Kahn. Essa probabilidade foi reforçada pelo promotor-adjunto, que se baseou para tanto em indicações de que Strauss-Kahn se comportara dessa maneira em instâncias (não-precisadas) no passado.
           Diante de tudo o que precede, se pode asseverar que as formalidades do direito internacional e mesmo estadunidense estariam sendo observadas no caso em tela ? Dispensa-se a um alto funcionário internacional tratamento degradante, como se existira o flagrante delito. Mas que flagrante é este que se constrói com a declaração de uma das partes (a camareira), sem que, salvo erro ou omissão, a transgressão tenha sido testemunhada ( ou comprovada ) por agente policial ?
           Ao contrário disso, se submete Strauss-Kahn ao tratamento reservado aos criminosos, com a privação da liberdade e algemas ?
           A truculência da justiça, no, caso em que se justifica ? Se o direito internacional não se aplica, em que se fundamenta a magistrada nova-iorquina para a extrema severidade do procedimento, que não parece coadunar-se com os antecedentes do suspeito ?


( Fonte: International Herald Tribune )

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