O que se faria necessário em termos de evidência material para pôr por terra o alegado respeito pelas autoridades do princípio jurídico de que o suspeito de um crime tem o direito da presunção de inocência até ser condenado pela justiça ?
Não muito, se nos ativermos ao comportamento da polícia americana no que tange à sua apresentação para a mídia de pessoa que a promotoria pública logrou indiciar de qualquer alegado delito ‘contra a lei’.
É a prática que poderia ser considerada como ‘a exposição do acusado (ou suspeito)’ e que constitui parte do ritual das forças da ordem, perante os olhos do público, ao demonstrar a aplicação estrita da lei (law enforcement) para quem quer que seja.
Em outras palavras, trata-se de o que os americanos denominam de ‘perps walk’.
O que vem a ser isso ? Estamos diante da chamada ‘caminhada do perpetrador’ (do inglês perpetrator). Através dela, em cena preparada para a imprensa, fotógrafos e cinegrafistas, a polícia faz ‘passear’ o acusado, devidamente algemado, e, em certos casos, também sob grilhões.
Dessarte, com os dedos ainda lambusados pela negra tinta da identificação digital, o suspeito de cometer (perpetrar) determinado crime - especialmente os de maior atração midiática – se descobre obrigado a humilhante desfile.
O caráter ambíguo dessa prática – cuja inerente truculência não semelha coadunar-se com o alegado respeito da inocência do acusado – é espetáculo sob encomenda a que a opinião pública estadunidense pode assistir com olhar displicente reservado ao déjà vu (já visto anteriormente).
Decerto o leitor terá, nessa altura da descrição, alguma ideia do que se pretenda aludir. Antes porém de chegar a qualquer conclusão, me seja permitido citar um que outro exemplo de artigo publicado na edição internacional de The New York Times.
Qual seria o intúito da imagem de Susan McDougal, saindo de tribunal em Arkansas, pés e mãos agrilhoados, logo após recusar-se a testemunhar contra o Presidente Bill Clinton, a quem o promotor especial Ken Starr buscava condenar, por participação na empresa Whitewater ? Fosse qual fosse a intenção do promotor, no seu afã de extrair o depoimento incriminatório, não se terá acaso dado conta de que o excesso de zelo tenderia a repercutir negativamente, como de fato ocorreu ?
Outro perps walk em que o tiro saíu pela culatra – no episódio, mais do que figurativamente – foi a apresentação do atirador Lee Harvey Oswald, e a sua macabra foto contorcendo-se, sob mortal ferida, com que Jack Ruby providenciava o que seria visto por muitos como queima de arquivo.
Diante de tais precedentes, não há de surpreender que Dominique Strauss-Kahn haja sido colocado sob elevada vigilância contra o suicídio, atendidas as inúmeras razões que para tanto lhe daria o tratamento a ele dispensado pelas autoridades da justiça nova-iorquina.
Nesse contexto, chocou ex-ministra da Justiça na França a maneira com que Strauss-Kahn foi apresentado, perante um grupo de fotógrafos, logo após a sua detenção sob suspeita de tentativa de estupro de camareira de hotel naquela metrópole.
Provavelmente, a indireta referência do jornal concerne à líder do partido socialista francês Martine Aubry, que se julgou ultrajada pela ‘brutalidade, violência, de incrível crueldade’.
Até mesmo nos EUA, há quem se manifeste contrário a essa humilhação ritual do acusado. Donna Lieberman, diretora-executiva da União pelas liberdades civis, declarou que tantos os franceses, quanto os nova-iorquinos têm toda a razão de se indignarem com tal prática.
Não é uma pergunta retórica se todo esse espetáculo não tende a envenenar o ambiente para que o suspeito possa fruir de um julgamento justo e sem condenações virtuais antecipadas (fair trial).
E quem por fim examine essa questão de um modo em que o acusado possa prevalecer-se de uma suposição de inocência – que não seja apenas uma folha de parreira para dissimular um processo em que a condenação já constitua realidade tacitamente admitida – se há de pilhar forçado a contradizer todo e qualquer tipo de excesso judicial.
Nesse leito de Procrustes, na verdade entram dois radicalismos. De um lado, senhores, lhes apresento essa justiça draconiana e midiática que deparamos na corte nova-iorquina; e do oposto, a ficção da inocência que, na versão de nosso Supremo, se mantém não por uma sentença, mas por três, como no interminável processo do jornalista (e assassino-confesso) Pimenta Bueno.
Não há melhor prova da validade do princípio aristotélico do meio termo.
( Fonte: International Herald Tribune )
domingo, 22 de maio de 2011
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