domingo, 9 de agosto de 2020

100.543 mortos !

 

            

 

             Há alguns dias o Brasil aguardava os cem mil, que é marca na aparência irreversível na macabra contagem de cadáveres, que são multidão nesse mudo, na aparência inarrestável, insaciável, quanto  incessante avanço, arrastados que são pela silente e surda avançada de mortos que para uns, porque deles dissociados, pode parecer até insensível, porque  monótona, mas que também traz no seu inchado bojo uma penca de  dramas pessoais e familiares, vidas cortadas de repente pelo estúpido avanço, indiferente na aparência, do enorme leque de vidas, algumas que brotavam esperançosas, outras colhidas quando os passos se tornam trôpegos, na macabra contagem da centena de milhares levados pela dita insaciável avançada da Covid-19, na sua cruel e cruenta faina, que se desenrola, sem sequer deter-se na idade da vítima da vez, que lhe parece quase igual, pois ora corta a magia do nascimento, carregando grávidas e bebês, numa tarda e brutal servidão, como se não existisse preço  tão alto de que não exigisse a paga naquele brutal, perversa, na aparência insaciável torpe sofreguidão. É o simbolismo inapelável dos dificultosos despertares existenciais que se descobrem de súbito questionados e postos em dúvida, num súbito, sôfrego e, de repente, sincopado e interrompido processo, que num relance perdem a própria mágica, e se transformam em outra sangrenta passagem de sacrifícios inescrutáveis, autêntico enigma que não tarda em converter-se em mais uma estatística, que será jogada em mesas repletas, em que se busca, e de forma denodada, dar significado àquilo que na verdade não o tem, nessa dança dos números, que terá motivado casais e até famílias, para afinal acabarem debaixo de torpes torrões de barro, por vezes atá pútridos, no anonimato dos cemitérios de milhares de vítimas sufocadas pela torrente de infortúnios, que na verdade, nas covas ainda abertas ou mal-cerradas será ainda mais um sardônico xadrez de lances terminais,  em que pais de família, mulheres, moçoilas, teen-agers e outros candidatos reprovados no vestibular da existência se transformam em números banais de anônimos  algarismos.

              A deusa Fortuna que para o eleitor Jair Messias Bolsonaro tem sido deveras generosa, ao proporcionar-lhe vitória em prélio eleitoral livrado com o rival petista Haddad, decidido na arena dos finalmente, como há de proceder diante de tanta insensibilidade de parte do atual Presidente ?  Por razões que a razão desconhece, ele não deixou adentrar uma gota de sentimento de humana compaixão, pela morte pela plúrima, excessiva, a ser expressa com sentimento da perda irreparável, de tantos companheiros e companheiras de jornada terrena de forma tão abrupta e impiedosa. Nada fez durante todo esse tempo, quando a própria maldita enfermidade dele se apossou, e de forma quase respeitosa lhe passou os sintomas desse flagelo que tem levado tantos e tantos brasileiros, brasileiras, e mesmo brasileirinhos, inocentes que são, mas mesmo assim sem for-ça para demover de seu medonho projeto esse monstro que a ciência ou a técnica, ou delas a mistura, convencionou chamar de Covid-19.  Ela, que nascera na sujeira das entranhas da terra do império chinês foi repassada - na maquinal indiferença do fenômeno pandêmico, veio chegar, a seu tempo devido, sem passar pela burocracia consular, até as terras de Santa Cruz. Mas que se extirpe desse infame processo qualquer gota seja de humana compaixão, seja de desumano propósito de infligir o mal. Os demônios não jogaram sortes sobre restos ou vestígios humanos. Tal não faz parte da burocracia, tenha ela qualquer adjetivo que porventura a envolva e com isso lhe determine a sinistra identidade. Há, no entanto, algumas regras que o Presidente de todos esses Brasis poderia ter disposto, como o fez o seu colega da Argentina.  Quando ocorre uma desgraça mundial como a Peste na China, há presidentes, ou primeiro-ministros, que são alertas e inteligentes o bastante para procederem o fechamento consular dos respectivos territórios. Isto fez o colega platino de Sua Excelência Bolsonaro, mas o nosso atual morador na residência presidencial em Brasília, não deu maior atenção a essa providência de prudente rotina, que nos poupa da entrada de estrangeiros infectados em nossa terra. Tinha outros problemas a resolver e não acionou as primeiras defesas contra o contágio por visitas de alienígenas. Passado é passado, e hoje não há qualquer senso em discuti-lo.

              Mas o tempo passa, e seguem as horas e os dias e os meses, em que a atitude presidencial não mudou na sua indiferença com relação ao desafio da Covid-19. O brasileiro contempla o que se passa e se faz perguntas. O presidente Bolsonaro seguiu em frente, com os seus muitos afazeres, embora a respectiva atitude com relação ao desafio da pandemia que se espalhou - na lógica implacável da própria designação por todas as plagas, quer interioranas, quer capitalinas desses Brasis sem fim - reteve precípua e pesada consequência. Cumpria menosprezá-la na sua capacidade maligna - por conseguinte, o poder de infectar os próprios co-nacionais ! Chamou-a, a falta de outra designação, de gripezinha com que, ao parecer, desejava transmitir aos seus compatriotas o seu marcado e agressivo desprezo por aquele fenômeno pandêmico. Não sei se na época de tais voláteis humores presidenciais, o Ministro Mandetta ainda estava ministro da Saúde, ou se Sua Excelência o Presidente da República, tocado pela popularidade deste direto auxiliar, já pensasse em dele livrar-se, pois para ele os ministros - e em especial, este, da Saúde, ocupado com pasta de tal importância nacional - não devem despertar demasiada atenção e sobretudo não terem apoio e adesão muito fortes na população, porque tal poderia afetar ao próprio Chefe da Nação.  No reino das estatísticas, essa é uma consideração sujeita a chuvas e trovoadas: pois, valha-me Deus!, em questão de tal relevância, o presidente preferiu afastá-lo pelo bizarro, estranho motivo de que Mandetta seria demitido pela própria competência funcional... Dentre as motivações presidenciais, valha-me Deus, não seria motivo demasiado usado pelos Chefes da Nação, mesmo aqueles porventura afeitos a encarar demissões por causas extrassensoriais.

              Tampouco o seu sucessor, Nelson Teich,   esquentou a respectiva cadeira. Não fora, de resto, popular como o antecessor Mandetta, e tenha talvez exagerado da discrição, mas afastou-se da Pasta por um motivo válido em termos profissionais, que lhe enobrece a presença. Não aceitou que um medicamento como a cloroquina lhe fosse imposto por capricho presidencial, em se tratando de droga comprovadamente inócua para o combata contra a Covid-19. 

                Com a auto-exoneração de Teich, restou ao presidente recorrer a uma saída não decerto inusitada para ele. Com todos os militares que trouxe para o ministério, haveria de surgir mais um, um general  como ministro interino. Ele é de um ramo de menor realce no Exército - pois não pertence ao ramo infantaria ou  cavalaria, nem à engenharia, mas aquela área um pouco mais discreta que é a da logística. Mas para Bolsonaro que até para a Casa Civil trouxe um militar ! o que é uma exceção, pois nem mesmo no auge do regime castrense - o período Médici - o então presidente ousara  chamar outro militar, designando, ao invés, um civil para a chefia da Casa Civil.    

                  É nesse contexto que julgo relevante citar uns poucos, mas importantes, trechos do editorial de hoje, domingo, nove de agosto, da Folha de S. Paulo: "O maior responsável pela tragédia (da Covid-19) se chama Jair Bolsonaro. Em vez de liderar uma ação nacional, negou a gravidade da emergência de saúde pública, promoveu aglomerações e falsas terapias, como a cloroquina, e colheu oito casos de ministros infectados (outro provável récorde mundial), além de si próprio e da primeira dama.

                              "Alguns comemoram, no presente, o suposto advento de uma imunidade coletiva como chamado para arrebanhar clientes desgarrados de bares, restaurantes, academias e centros de compras - não das escolas paradoxalmente. Epidemiologistas, entretanto, descartam que se tenha alcançado tal limiar.

                                "Não há panaceia, nem vacina por ora. Infeliz a nação que tem necessidade de heróis, disse Bertolt Brecht; mais que infelicidade, a desdita do Brasil é nem mesmo poder contar com um presidente e um ministro da Saúde efetivo neste momento de luto."

 

Nota:    Transcrição da Folha de S. Paulo, datada de hoje, nove de agosto.    

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