quinta-feira, 3 de maio de 2012

O Dissidente Chen e o Asilo Diplomático

                          
          O asilo diplomático em embaixadas é uma instituição de origem latino-americana. Esse direito de refúgio, que é longínqua decorrência do abrigo em templos determinados, sob a proteção de divindade, na Antiguidade helênica, é concedido pela chancelaria (ministério do exterior) de um país representado junto a governo na América Latina.
          O pressuposto do asilo é o de que a liberdade e até mesmo a incolumidade física da pessoa se acha ameaçada pelo regime junto ao qual a missão diplomática está acreditada. É recurso extremo, de que se valem personalidades acossadas por motivos políticos. Esse procedimento humanitário se baseia no pressuposto de seu caráter provisório, eis que, uma vez confirmado o asilo pela respectiva Chancelaria, ele é comunicado para a autoridade local – em geral o Ministério do Exterior – com a solicitação de que seja concedido ao asilado salvo-conduto para a sua saída do país em segurança, em viagem ou para o país que lhe concedeu asilo, ou para outra direção, de acordo com a conveniência do asilado.
          Na prática, o asilo diplomático pode ter como consequência  longa permanência do asilado na residência (ou chancelaria) da missão diplomática que o acolheu, na hipótese de que a autoridade territorial junto a qual a embaixada está acreditada se negue a conceder salvo-conduto à pessoa refugiada.
          Na América Latina, o exemplo clássico de tal eventualidade – que acarreta compreensíveis dificuldades e transtornos, tanto para o asilado, quanto para o chefe da missão que o abriga nessa qualidade – foi o do sindicalista e político peruano Haya de la Torre, da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA). Havendo sido asilado na embaixada da Colômbia em 1949, só pode sair para o exterior cinco anos depois, em 1954.
         Conquanto seja instituição latino-americana, há exemplos de asilo diplomático em outros continentes. O caso mais notável foi o do Cardeal Jozsef Mindszenty, da Hungria. Preso em 1948, e condenado sob falsas acusações pelo regime comunista, Mindszenty foi libertado pela efêmera revolução de 1956. Acolhido pela embaixada americana, o prelado ficou como asilado até 1971, quando lhe foi permitida a  ida para a Sé Pontíficia.  Com efeito, estava em curso um degelo levado avante pelo Papa Paulo VI e o Cardeal Casaroli.  O velho cardeal morreria, em fama de santidade, no exílio.
        Como se verifica, o asilo diplomático é instituição emergencial, destinada a proteger perseguidos políticos por  regime ditatorial. Para que isto se verifique, portanto, se presume de um lado  ordem estatal em que os direitos humanos não sejam respeitados, e de outro missão diplomática que esteja disposta a acolher estes infelizes da sorte.
        No Império do Meio, em decorrência dos eventos de Tiananmen, o regime político é autoritário,com as peculiares características de tais estados. O seu caráter burocrático, a pujança econômica (derivada de uma relativa liberdade nesse campo de atividade) não deve induzir a juízos apressados de que as práticas autoritárias foram abandonadas.
        Os dissidentes chineses são heróis da luta pelos direitos humanos, sendo o seu principal mártir na atualidade  Liu Xiaobo, Prêmio Nobel da Paz, desterrado em nefanda masmorra pela simples circunstância de advogar direitos a que Beijing está nominalmente obrigado por signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 
       O episódio de Chen Guangcheng constitui mais um desenvolvimento nesse drama. Compreende-se que a missão dos Estados Unidos apareça para essa coorte de infelizes como um farol de esperança e de redenção. No passado, a sua utilização  assinalou-se pela relativa raridade. Há poucos exemplos de chineses que tenham logrado alcançar esse asilo. Fang Lizhi, o renomado astrofísico recentemente falecido no Arizona, após longo exílio, ficou homiziado em porão sem janelas do complexo da missão por mais de ano, até que Deng Xiaoping, o homem-forte de então, acedesse à sua transferência para o exterior, iniciada pela Inglaterra.
       O dissidente cego Chen, cuja rocambolesca fuga do vilarejo em que se achava ilegalmente confinado, após cumprir iniqua prisão (por defender mulheres contra a política do filho único), surpreendeu o mundo, quando não o deveria. O anseio da liberdade, como nos ensina o poeta, dá asas ao homem, que assim pode desvencilhar-se e ludibriar os seus torpes guardas.
       A passagem na embaixada terá desafortunadamente coincidido com visita da Secretária de Estado Hillary Clinton.  A acrescida repercussão de mais uma evidência da real opressão prevalente na China há de ter funcionado como adjutório para que os esbirros do regime chinês recorressem ao seu argumento mais forte, que é o da ameaça física à esposa de Chen, que se acha sob o jugo das mesmas pessoas que infernizam a vida dos amantes da liberdade na R.P.C.
        De que valerá o embaixador americano – que acompanhou Chen ao hospital – quando, por natural necessidade de serviço, tiver de afastar-se chamado por outros afazeres ? Supostamente para ser atendido clinicamente, Chen mergulha nos corredores do nosocômio chinês ?  De que lhe valerá o video postado com denúncias para o Primeiro Ministro Wen Jiabao?  Essa ingenuidade de um perseguido por causa da justiça, se é um sintoma de desespero, também  terá alguma astúcia, eis que expõe a céu aberto o que as ditaduras preferem tratar nas esquálidas salas de interrogatório.
        Por outro lado, terá sido adequado  e eticamente defensável que a embaixada o  entregasse de maneira  um tanto desenvolta logo  àqueles de quem mais este dissidente fugira, com engenho e arte, por abominar a tortura em todos os seus avatares, e loucamente ambicionar a liberdade ?



( Fonte subsidiária: Folha de S. Paulo )        

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