quarta-feira, 16 de maio de 2012

Negligência Benigna ?

                             
        A brutal diferença entre discurso e práxis nas instâncias governamentais no Brasil é um fenômeno que vem de longe. Nesse contexto, a confiança na lei não poderia ser lida como manifestação de realidade acessível a todos os cidadãos.
        Desde os tempos das ordenações filipinas que existe esta distinção implícita na aplicação (e serventia) da norma jurídica. O fato de que ela tenha sido sancionada e promulgada  não implica necessariamente que a sua aplicação e implementação seja integral. 
       Haveria, assim, no Brasil uma esdrúxula diferenciação quanto aos efeitos práticos de uma lei determinada. A sabedoria popular tem  explicação que, se não aprofunda as razões dessa situação, pelo menos expõe uma realidade: em nossa terra há leis que pegam e outras que não pegam.
       Tal fato sociológico admite inclusive uma variação que, se em nada altera a não-aplicação da norma, acrescenta-lhe uma firula no fazer crer: são as determinações para inglês ver.
      Esta elaboração suplementar serve decerto para enfatizar quão arraigado está o costume em tela, que chega a admitir sofisticações desse gênero quanto aos graus de inutilidade da norma.
      Dadas as suas características, o fenômeno pode ser federal, estadual ou municipal. O que está ocorrendo no centro do Rio de Janeiro terá acaso a ver com essas leis que, na prática, não saem do papel ?
     Formalmente, não. Ao tombar  sobrados da área central do Rio de Janeiro, as iniciativas do Patrimônio Histórico traduzem a vontade de preservação das construções, por considerações várias de caráter artístico, arquitetônico e cultural. O tombamento, no entanto, é uma condição com vistas a eventuais providências que serão presumivelmente tomadas pelos proprietários dos imóveis. A declaração implica que qualquer reforma deverá ser feita sob a fiscalização do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
    É aí que a porca começa a torcer o rabo. Esses belos espécimes de uma passada arquitetura são, muita vez, construções descuradas, que sofrem as consequências da a nova realidade econômica, i.e., a decadência dos centros citadinos.
    Por isso, as coisas principiam a complicar-se, pela diferença nas posses  dos atuais proprietários em relação aos prósperos negociantes do Império e da Primeira República, o que se reflete na sua capacidade de proceder ou não às imprescindíveis reformas tanto no aspecto estético do imóvel, quanto e sobretudo na sua estrutura, haja vista a crescente e inevitável deterioração material.
    Caminhar pelo centro do Rio pode ser  lição prática do quanto esses tombamentos constituem apenas uma faceta de complexo problema urbano.
    O abandono dos sobrados e antigas construções no centro do Rio de Janeiro dá decerto matéria para ótimas reportagens. A questão se complica se enveredarmos nas perguntas. Abandono por quem ? Legalmente os seus atuais proprietários ou inquilinos, no caso de realizarem ‘reforminhas’ que afetam a estrutura do imóvel.
     Em termos de política urbana, qual é a posição da Prefeitura? Há interesse na preservação do conjunto de construções ? Se a resposta é afirmativa, que medidas estão contempladas ?
       O tombamento é, sem dúvida, importante. Indica-se o que merece ser preservado. Se, no entanto, os inquilinos ou os proprietários não têm condições econômicas de providenciar as indispensáveis reformas, e se a prefeitura só se limita a alertar para o risco existente, sem querer ou poder assumir posição pró-ativa no capítulo, a questão tende a assumir outras cores, e terá mais a ver com a sociologia do que com políticas urbanas dignas desse nome.




( Fonte:  O  Globo )   

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