A primavera árabe pode ser fenômeno resolvido ou esquecido em outras paragens, mas a revolução síria, que já completou um ano, continua. Saída do extremo sul, em Deraa, o levante se estendeu por todo o país.
Politicamente, o movimento abrange as diversas regiões dessa terra de passagem entre ocidente e oriente. Se nos atívéssemos ao choque das ideias, a posição do ditador Bashar al-Assad seria insustentável. A revolta se alevanta em toda parte, tendo superado o macabro teto dos catorze mil mortos.
Sem embargo, e malgrado a ampla rejeição sofrida, o regime alauíta se mantém por um conjunto de fatores, nos planos externo e interno.
Do exterior, vem a blindagem de Vladimir Putin, com o seu veto no Conselho de Segurança, motivado não por humanas inquietudes com o povo da Síria, e suas diversas minorias, mas por determinantes militares e navais, como a sua preciosa base de Tartus, no Mediterrâneo oriental.
Ainda na face externa, a despeito das sanções impostas pelo Ocidente e a quarentena diplomática, há um limite para tais arreganhos, o que tem facilitado as medidas da Federação Russa e de seu ocasional aliado da China Comunista, com o seu veto de cortesia.
Essa falta de maior empenho – o que ocorreu na derrubada de Kaddafi, a que terá decerto contribuído o manancial petrolífero – ela se desnuda e se explicita nas tentativas de observação não-armada das atrocidades na Síria, a princípio pela Liga Árabe, e mais tarde pelo Plano Annan.
Movidos pelo Qatar e a Arábia Saudita, os intentos iniciais de controle por missão da Liga fracassaram em resultado do despreparo de seus integrantes, assim como de não ter meios de impor a suspensão das hostilidades.
O Plano Annan, ideado pelo ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, ora naufraga por similares causas. Originado de resolução desdentada do Conselho de Segurança, por imposição da Federação Russa, o plano de seis pontos de Kofi Annan se vê a braços com adversário que torna a presença da Missão de Observação das Nações Unidas patética explicitação de suas lacunas.
Annan corre sério risco de desmoralizar-se, menos pelo malogro efetivo de seu Plano, do que pela suposta hubris de havê-lo acalentado, contra um conjunto de circunstâncias que recomendaria maior cautela na elaboração e na aceitação da empresa.
Bashar al-Assad poderá recebê-lo em múltiplas audiências e assentir formalmente a todas as exigências do ex-Secretário-Geral e Prêmio Nobel da Paz Kofi Annan. Bastará tê-lo pelas costas para que novos massacres irrompam, sempre perpetrados por esses fantomáticos terroristas armados, que nada mais são do que o braço castrense do regime alauíta, a dizimar crianças e civis desarmados, como no recente morticínio de Houla.
Esse regime – que ainda dispõe de considerável força militar e do tácito apoio de muitas minorias, que veem no grito de democracia do levante o espectro das hordas sunitas – no exterior dispõe do auxílio também militar de Teerã. Por isso, a sobrevivência do ditador al-Assad não ocorre por acaso, não obstante o seu crescente isolamento político-diplomático.
A oposição turca, capitaneada pelo Primeiro Ministro Recip Erdogan, é outra faceta da coligação contrária a Assad. Derrotado na batalha da opinião pública, com a sua sucessão de atrocidades – o que torna Bashar um possível réu no Tribunal Penal Internacional da Haia – o ditador sírio corrobora o velho ditado das limitações de quem se sustenta pelo fuzil.
Bashar não está, contudo, sozinho. Não é só a Rússia a protegê-lo com os seus vetos munificentes. Também o Irã tudo fará para evitar a queda do regime alauíta (uma hetorodoxa dissidência do ramo xiita), que tem fornecido até hoje condições para que o arrimo ao Hezbollah, no Líbano, pelos ayatollahs iranianos possa continuar.
A dinâmica sunita – sob a liderança da Arábia Saudita e o ímpeto do emir do Qatar – se desencadeia contra a ditadura alauíta de Bashar movida a fortiori pela perspectiva de ulterior ganho estratégico contra o adversário xiita.
Tal escopo da aliança de Riyadh e Doha não seria, apenas, a cereja do bolo em disputa.
No século XIX, o chamado grande jogo descrevia o embate, por interpostos meios, dos imperialismos britânico e russo, na sua luta pelo controle do Oriente Médio. Agora, no século XXI, os agentes podem ter mudado, mas os objetivos ainda têm muito a ver com a afirmação do poder.
O problema na Síria, no entanto, essa histórica terra de passagem, concerne e muito diretamente à respectiva população. Se o seu querer terá vez, os dias de Bashar al-Assad estão contados.
( Fontes subsidiárias: International Herald Tribune,
New York Review )