segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O Poder Militar na Turquia

            O estamento militar na Turquia sempre foi considerado como o baluarte do kemalismo. Herdeiros da tradição secular introduzida por Mustapha Kemal, quando da fundação do moderno estado turco, sucessor do derrotado Império Otomano, por muitas décadas os altos comandantes castrenses constituíram os garantes da linha laicista e ocidental.
            Em tempos de crise, a regra não-escrita fazia prevalecer o sentir do alto comando. Assim, um primeiro ministro, posto que popular, acabaria na cadeia por entrar em rota de confrontação com as Forças Armadas. E há catorze anos atrás, um partido com raízes islâmicas foi afastado do poder, por iniciativa militar.
            A formação política liderada pelo atual Primeiro Ministro, Recip Erdogan, tem com respeito ao seu antecessor e malogrado partido alguns traços comuns, notadamente no que concerne aos princípios islâmicos. Para a empolgação do poder e a implementação do crescente controle dos instrumentos estatais, dentro de linha que contraria a tese basilar do kemalismo, i.e., a laicidade do estado, Erdogan agiu com muito maior habilidade.
            Se malogrou a última tentativa eleitoral de alcançar as 350 cadeiras no Parlamento indispensáveis para implantar as reformas constitucionais desejadas pelo seu partido, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), continuando este a ser o partido majoritário. O seu contendor principal, o Partido Republicano do Povo (CHP) que propugna os principios laicos obtever 135 cadeiras.
            A não imediata realização de seu escopo de prosseguir com as reformas – vale dizer o reforço da linha islamizante – não impediu Recip Erdogan de incrementar o seu ativismo governamental e diplomático. Nessas condições, a iniciativa da principal autoridade militar, General Isik Kosaner, junto com os comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica, de passar para a reserva, constituíu um protesto contra investigação governamental acerca de suposta conspirata militar. Mais de quarenta generais estão detidos com base em suspeitas levantadas pela administração civil de Erdogan.
            Consoante se assinala, os indícios levantados pelos acusadores semelham ter pouca consistência. Não obstante, nada semelha refletir melhor a presente mudança de situação, que o fato de a demissão dos generais não haver provocado consequências de monta. Os quarenta generais, culpados ou não, permaneceram na cadeia, enquanto o Presidente Abdullah Gul – o segundo do regime – desmentia a existência de crise.
            O governo nomeou para suceder o general Isik Kosaner o general-comandante da Polícia Militar, Necdet Ozel.
            É um aspecto não destituído de interesse se se busca entender os motivos da escolha do general Ozel para ocupar o prestigioso posto de Comandante-Geral das Forças Armadas. Como se verifica, o general Necdet Ozel não estava encarregado de funções que se possam de longe comparar com as do general Isik Kosaner. Como encarregado dos assuntos da Polícia Militar, há de intuir-se que o seu status corporativo estaria muito abaixo do de seus companheiros de farda, que preferiram retirar-se do serviço ativo.
            Resta saber como se comportará, no que tange às questões militares o antigo chefe da Polícia Militar. Muitos vêem nas características do temperamento do general Ozel um trunfo para Erdogan. Com efeito, o novel Comandante-Geral das Forças Armadas não teria maiores ambições, nem a consciência das respectivas atribuições.
            Sob tal visão, Ozel seria uma espécie de burocrata do exército, sem outras veleidades que o cumprimento de seus misteres castrenses.
            A história, esta mestra peculiar, tem exemplos de personagens como Necdet Ozel que, para assombro dos que pensavam valer-se de um quase fantoche, poderá ter outras ideias, no momento em que atinge ao posto de maior poder da própria carreira. Por isso, caberá à liderança civil verificar a posteriori se o seu retrato do comandante correspondia à realidade.
            A Turquia, talvez pela respectiva incapacidade de lidar com o chamado problema curdo senão através da coerção, continua a defrontar-se com a insurgência curda.Até o presente, se tem procurado resolver o ‘problema curdo’ de forma militar. Mais aguda no sudeste do país, a guerrilha na província de Diyarbakir se manteve ativa. De um recente embate, treze soldados do exército foram abatidos. A falta de progresso da solução castrense para o problema dessa nacionalidade – que na região norte do Iraque mantém um projeto de Curdistão – é um dos maiores desafios com que se depara o governo de Recip Erdogan.
            De qualquer forma, julgando ter dobrado o obstáculo militar, o primeiro ministro tem evidenciado disposição para uma forma mais afirmativa de relações com o seu entorno regional. Dessarte, as suas agressivas declarações com a vizinha Armênia – nacionalidade marcada pelos trágicos acontecimentos no final do regime otomano – não colaboram para a necessária conciliação entre os dois povos. Tampouco estão bem as relações com Israel, posto que a responsabilidade da deterioração está mais com Tel Aviv. Militares israelenses invadiram um barco de bandeira turca, que pretendia romper o bloqueio de Gaza, causando a morte de nove ativistas. Igualmente em Chipre, a posição turca se endureceu, com a negação de ulteriores concessões para a difícil reunificação da ilha. Resultado infeliz da tentativa grega de tornar Chipre parte da Grécia, a intratável questão cipriota se arrasta desde então, com a ‘república de Chipre do Norte’ apenas reconhecida por Ancara, que aí mantém numerosa guarnição.
           Por fim, o grande enfrentamento da Turquia com a Grécia – a mesma Grécia que teve de acolher milhões de gregos asiáticos, expulsos da Anatólia pelo fim trágico da aventura militar de Smirna – constitui um dos grandes problemas que liga em acidentada coexistência secular esses dois povos. Ao contrário dos demais, não há indicações de iniciativas de Erdogan nesse campo. E, no entanto, quem há de duvidar de futuras peripécias nesse particular enfrentamento ?


(Fonte subsidiária: International Herald Tribune)

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