domingo, 14 de agosto de 2011

Colcha de Retalhos LXXXVIII

Quem aplica a lei é linha dura ?

Dirão que estou vendo chifres em cabeça de cavalo, mas a repetição por dois jornalões da atribuição de ‘linha dura’ à juiza assassinada Patrícia Lins, na noite de quinta-feira me fez pensar.
A juíza Patrícia Lins (V. blog Crônica de Morte Anunciada) teria esse qualificativo linha dura por aplicar a letra da lei a policiais indiciados por crimes graves, como o de integrar milícias ? No passado, linha dura era empregado para as alas extremistas do exército, aquelas que batalhavam por uma ditadura militar e por medidas fortes, como agressões a supostos comunistas, bombas pelo correio (como a que vitimou d. Lyda Monteiro, em 27 de agosto de 1980) etc.
Não dá para pensar que a magistrada formaria parte de uma minoria, que faria uma interpretação demasiado severa do Código Penal, sendo por isso tachada com tal epíteto (V. Houaiss, linha de pensamento intransigente ou radical) ?
Até para a grande imprensa - em matéria criminal pelo menos - magistrado que aplica a lei faria parte de uma minoria ?
É o que parece. Isso de resto combina com a gritaria do oficialismo a invectivar contra os procedimentos da operação Voucher da Polícia Federal : ‘acinte’ (Dilma Rousseff). A esse propósito, as fotos sem camisa, rotineiras para os criminosos comuns e a raia-miúda, levaram o Ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo, a dirigir ofício ao Supremo, com a solicitação de que essa “grave violação da dignidade dos presos” seja investigada pelo CNJ.

Vivemos no Eldorado ?

O International Herald Tribune, em matéria de primeira página, se ocupa da atual posição dita privilegiada do Brasil em relação aos Estados Unidos e outros países do circuito Elizabeth Arden. O título enaltece as nossas atuais vantagens comparativos: O Brasil pula na frente enquanto a economia global se arrasta.
Ao contrário do passado – a crise da dívida nos anos oitenta é apenas uma lembrança – a ordem global está de ponta cabeça. Com os índices de desemprego em nível baixíssimo, e um ritmo de crescimento acentuado, o Brasil passa da hiperinflação para um dos principais credores de Washington.
Assim, segundo a coluna de Simon Romero, com níveis de remuneração que rivalizam com os de Wall Street, transferiram-se para o Brasil tantos banqueiros estrangeiros, gerentes de hedge fund, petroleiros, advogados e engenheiros, que as cotações em São Paulo e Rio de Janeiro para os melhores locais de escritório se acham em nível superior àquelas de Nova York. Nesse sentido, o Rio tornou-se a cidade mais cara em termos de arrendamento nas Américas, consoante a firma Cushman & Wakefield.
Nessas condições, há longas listas de espera nas escolas de língua inglesa,apartamentos com três quartos podem ter aluguéis de dez mil dólares nos melhores bairros, e os recém-chegados se deparam com desafios muito diversos daqueles dos Estados Unidos e da Europa: o crescimento está a pleno vapor e o real se mostra tão forte perante o dólar que as autoridades fazendárias temem acerca de um super-aquecimento da economia.
Na segunda parte do artigo, como é costume no jornalismo americano, o leitor chega àquilo que se poderia chamar ‘nem tudo são flores’. Um executivo que está no Brasil desde 1999 (chegou a tempo de presenciar uma abrupta desvalorização do real) diz: “O Brasil se está dando bem (doing great), mas, fala sério, cada semana eu me pergunto ‘quando isto vai acabar >?’”.
Para o articulista, o recente boom das commodities e o crescimento no consumo interno transformou o Brasil em potência emergente e ter bom desempenho (bounce back handily) para sair da crise financeira de 2008. A economia cresceu 7,5% no ano passado e se prevê uma alça de 4% neste ano – mais devagar, mas bastante melhor que os Estados Unidos e a Europa.
Nos ‘desafios’ para os recém-chegados, alinham-se legislação laboral que favorece a contratação de brasileiros e o longuíssimo processo de obtenção de um visto permanente. Aí são apresentados à descomunal burocracia brasileira.
Dentre outros aspectos desfavoráveis, cita o crime violento que continua a proliferar em muitas partes do interior e das principais cidades. E alude, a propósito, ao recentíssimo sequestro de ônibus.
Os americanos seriam a maioria entre os recém-vindos. São seguidos por ingleses e outros europeus. Exemplos são David Neeleman, o fundador da Jet-Blue Airways, que lançou a Azul, uma linha aérea de baixo custo. Corrado Varoli, um italiano, que cuidava das operações da Goldman Sach’s para a América Latina, agora dirige o próprio banco de investimentos em São Paulo.
Os estrangeiros competem com brasileiros que retornam do exterior. Um dos atrativos é o nível dos salários que, no Brasil, estariam 50% acima das remunerações americanas para lugares chave.
Por outro lado, o deficiente sistema de educação no Brasil tem contribuído para aumentar a corrida aos empregos. Há um suposto déficit de sessenta mil engenheiros, que só poderá ser preenchido com substancial aporte do exterior.
Como se vê, mesmo sem o saber, residimos no Eldorado.

A Desordem no Reino Unido

Londres e depois as principais cidades do Reino Unido foram sacudidas por grandes desordens, com incêndio de lojas, saqueio generalizado, choques entre a polícia e grupos encapuçados, formações de milícias ad hoc para defender os comércios e bairros ameaçados. Tudo isso configurava um cenário que nada tinha a ver com as idílicas descrições por certos colunistas da realidade britânica, com os seus educados taxistas e o respeito de uma ordem que de repente se viu brutalmente sacudida e afrontada por bandos terceiro-mundistas saídos dos bairros pobres e dos cortiços da megalópole.
Tudo começou de um episódio não-esclarecido, em que um morador dessas áreas se defrontou com um comportamento policial que não se encaixa com as descrições grandiloquentes de admiradores da elegância e da finura dos agentes da Scotland Yard. Como se sabe um compatriota nosso, Jean Charles de Menezes, se veria enredado numa fatídica confusão das zelosas forças de segurança inglesas. Apesar de ser uma pessoa morigerada, que trabalhava em Londres, depunha contra ele a cor da sua tez.Por isso, foi vítima de um comportamento histérico, em que foi numa série de erros da fabulosa Scotland Yard, liquidado sem ter qualquer chance de explicar-se, modesto passageiro do metrô tomado como homem-bomba.
O pivô dos motins que abalaram Londres também foi morto. Será talvez objeto de estudos e de papéis, tanto da violência sistêmica das forças ditas da ordem, quanto do entranhado e mal-guardado ressentimento dos diversos segmentos de nacionalidades que vivem no cadinho inglês (paquistaneses, hindus, negros de antigas colônias africanas, caribenhos, etc.).
A falta de uma verdadeira integração desses imigrantes tem muitas causas, as quais podem ser resumidas na grande diferença econômica em relação às classes de habitantes do Reino Unido que são as dos ingleses, escoceses e galeses natos. A esse respeito, semelha oportuno mencionar o termo ‘proletariado interno’, de autoria do
historiador inglês Arnold Toynbee. Reportava-se às comunidades bárbaras trazidas para dentro do Império Romano, na fase da decadência. O traço distintivo era a sua falta de absorção por Roma. Embora na época de Toynbee o problema das comunidades externas do império britânico fosse ainda incipiente, hoje a designação toynbeana se aplica decerto à situação social de tais segmentos demográficos no Reino Unido.
Aliás muitos países europeus terão visto com inquietação tais motins. Os franceses com as comunidades árabes – o então Ministro Nicolas Sarkozy se referiu há algum tempo a uma parte dela, moradora em subúrbios periféricos, como la racaille (a ralé); os alemães, com os turcos, etc.etc.
Apesar da relativa demora do Primeiro Ministro David Cameron em voltar das férias – o que teria atrapalhado a reação das forças da ordem -, seria de esperar que a explosão de raiva, com consequências deploráveis em termos de destruição de bens e negócios muita vez de comunidades morigeradas, que nada mais desejam senão o respeito da legalidade, não seja esquecida, de forma a propiciar uma coexistência mais pacífica e respeitadora dos valores de cada um. Ao invés do proletariado mal tolerado, um convívio em que todos, se respeitosos da lei, sejam por ela respeitados.


( Fontes: O Globo, International Herald Tribune )

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