Para os que tiveram a fortuna de conhecê-lo
pessoalmente, Dom Helder impressionava pela humildade. Recordo-me de suas visitas
ao gabinete de um ministro de estado. A batina poderia ser a de um anônimo
sacerdote, assim como a surrada pasta que trazia. Vinha sempre sozinho, como se na sua
modéstia, não carecesse de secretário ou de qualquer aparato eclesial.
Tampouco dom
Helder costumava marcar hora. Chegava com seu jeito discreto e a cruz de
madeira, para pedir – e nunca por ele - a atenção da autoridade. Com a
simplicidade que constituía a sua própria natureza, vinha e sentava-se nas salas de espera.
Tinha sempre o
que fazer. Ou lia o breviário, ou fazia anotações. Os demais se dariam conta
daquela presença verdadeiramente ilustre, embora não o acompanhasse a soberba
de tantos príncipes da igreja. Nunca vi exemplo de maior naturalidade no ser
simples e humilde, por mais que conhecido fosse.
Dom Helder Câmara
– ou padre Helder Pessoa Câmara, como gostava de ser chamado – não afetava nem
riqueza, nem poder. A cruz de madeira e a vestimenta sem qualquer adereço ou
fímbria eclésio-palaciana constituíam apenas o que um modesto cura de campanha
portaria.
Se a afetação
pode ser arma de dois gumes, quem o conhecesse jamais sequer imaginaria que
existisse qualquer coisa de artificial na sua atitude. Na verdade, ter a
ventura de vê-lo já era oportunidade de mergulhar no mistério da santidade.
Para quem excelera em todas as suas
atividades – de padre a arcebispo – sempre voltado para ajudar o próximo e, em
especial, os mais desfavorecidos, e para quem o renome nacional e
internacional, clerical e laical, jamais lhe deformaria a personalidade voltada
para servir, há de surpreender deveras a derradeira provação que lhe foi
imposta.
Com efeito,
após a renúncia canônica, e tornar-se Arcebispo emérito, Dom Helder Câmara
assistiu ao desmantelamento de toda a sua obra pastoral pelo sucessor D. José
Cardoso Sobrinho, O.C.
Como toda prova
imerecida, muito terá exigido de sua capacidade de obediência e resignação
eclesial. Com isso, sofreram não só os
seus devotados auxiliares, mas sobretudo o povo humilde de Olinda e
Recife.
D. Cardoso Sobrinho golpeou de forma tão
incompreensível, quanto sem limites o trabalho espiritual e material que a
presença de dom Helder na Sé de Olinda havia desenvolvido. Todas as missões espirituais e temporais
criadas pelo exemplo e a iniciativa desse grande arcebispo foram ou
desativadas, ou desencorajadas, com grande prejuízo para todas as comunidades
carentes que delas muito dependiam.
Não é difícil,
outrossim, imaginar o golpe assestado contra a religião e o seu recuo, que previsivelmente
redundou no afastamento de grande número de fiéis da religião católica.
Esse apóstolo
das gentes, que tanto se empenhara pelo respeito aos direitos humanos, e cujo
voto de pobreza se refletia não só na citada modéstia das vestes sacerdotais e
na singela cruz de madeira que levava ao peito, também se marcou como apóstolo
da paz. Teria sido certamente declarado Prêmio Nobel, se o Comitê de Oslo, que
não se curvaria aos herdeiros de Mao, não houvesse cedido à pressão de então
regime militar brasileiro.
Aspecto não de somenos importância – que lhe
realça a grandeza da personalidade e a vocação pastoral - foi a obediência e a humildade demonstradas
diante da atitude hostil e tão pouco cristã do sucessor, que envidou, por
todos os meios e modos, atingir-lhe a obra pastoral. Até o limite da
heroicidade, Dom Helder nunca incentivaria os seus discípulos e antigos
subordinados a se indisporem e reagirem contra as medidas adotadas pelo
sucessor, malgrado a compreensível revolta e mesmo indignação que o caráter
regressivo e intolerante da nova gestão estava fadado a provocar.
Isto
representou, certamente, a prova mais cabal da humildade de Padre Helder Pessoa
Câmara, humildade que se fazia cruelmente provar pelo caráter negativista, a
beirar os limites da compreensão, e pelo manifesto sentido contrário que
perpassava as determinações do novo Arcebispo.
Dom Helder era
homem de paz, e o provou cabalmente ao ser submetido a tal ingente provação. Coube-lhe presenciar o desfazimento de sua obra
na Sé de Olinda e Recife, o que se procedeu com encarniçamento que costuma
golpear não os trabalhos apostólicos e de caridade, mas de bem outro gênero de
atividade.
Depois de seu
benemérito empenho como Arcebispo-auxiliar do Rio de Janeiro, onde tanto se
prodigou pela população menos favorecida, deixando, ao partir para o Recife uma
esteira de benemerência que até hoje se evidencia na Feira da Providência e
outras inúmeras obras para as classes menos favorecidas, como poderia ele
imaginar que o seu maiúsculo trabalho pelos pobres na Sé de Olinda e Recife
terminaria com tanta incompreensão e por
espírito tão pouco imbuído da caridade e da compreensão de Nosso Senhor Jesus
Cristo ?
Dom Helder
Câmara em vida foi a personificação da bondade e da obediência eclesial,
obediência esta realizada até ponto que semelha difícil não confundir-se com a
disposição heroica de cumprir as ordens do Senhor, por mais dificultoso e
incompreensível que fosse o exercício para tanto exigido.
Sacerdotes e religiosos, assim como as
comunidades eclesiais e leigas, que tão entusiasticamente acolheram esta grande
dádiva do apostolado, que D. Helder personificou com humildade e a infinita
capacidade de fazer o bem à sua volta, receberiam com jubilosa gratificação e
não menor gratidão que a causa deste Servo de Deus mereça a necessária atenção
para que se lhe faça justiça.
O processo de
beatificação de dom Helder Pessoa Câmara faria justiça a uma personalidade que
foi um dom de Deus para quem teve o privilégio de conhecê-lo ainda que de forma
perfunctória, o que dizer então do enorme rebanho de fiéis, no Brasil e pelo
mundo afora, que tiveram o benefício de seu carisma e empenho ?
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