X X V I I
Meu mui prezado e grande Amigo Pedro,
essa nossa conversa –
digamos à distância – começou numa saleta de apartamento de prédio sito à
avenida Basilissis Sophia. Descobrira então fazia pouco que
do largo balcão, entre o museu de arte bizantina e edifício sem outro atrativo
que o de abrigar clube castrense, muito justamente defrontando a nossa
temporária morada em Atenas havia um largo espaço de terreno – que para os
ignaros pareceria baldio – onde estão as ruínas do Liceu.
A
coincidência era por demasiado feliz para que eu a calasse. Se os estudiosos da
filosofia helênica se sói dividir em dois campos não necessariamente amistosos
– os platônicos e os aristotélicos – e as diferenças entre o mestre e o
discípulo tiveram as idades da história como palco, com várias peripécias
marcadas pelo odium philosophum, não
há negar que será sempre possível distinguir aprioristicamente entre os adeptos
de uma e outra escola. Sem desmerecer do escolarca
da Academia, a nossa preferência
recaíu naturalmente sobre o Estagirita,
ou aquele que por muitos séculos foi designado como o filósofo por excelência.
Por isso, ao ser inteirado da
cercania, conseguiria em breve tempo visitar o local, na companhia de
arqueóloga especialmente encarregada dos trabalhos de preservação do local,
malgrado seja forçoso reconhecer que da antiga escola aristotélica, de sua
colunata e palestra restam apenas indícios, dada a passagem dos milênios e a
circunstância de haver abrigado até uma caserna.
Dei-me pressa, no entanto, em transmitir por correspondência ao amigo –
então acessível por correio comum – todos os elementos colhidos na visita, a
que anexei recortes lá obtidos. A dizer
verdade, meu velho, o exame do antigo Liceu repete em escala menor a
experiência havida com o quadro geral dessa difícil convivência. Em Atenas – no
contexto da coexistência do antigo e do moderno, que se depara também em Roma -
se carece, em diversos casos, de alguma imaginação e de muitos aportes eruditos
do dedicado pessoal que cuida desse imenso parque arqueológico que consegue
sobreviver, em luta desigual, contra a diuturna e multifária invasão da
metrópole dita moderna.
Receberia a tua resposta em breve prazo – e esta foi a derradeira
correspondência que recebi do mestre. Decerto ainda conversaríamos quando de
minha ida em férias ao Brasil. Se não é o caso de aqui repetir o que já foi
dito, basta aduzir que o telefonema do Rezende eu o receberia no meu
apartamento do Rio.
Terá
sido esta brutal interrupção – que mais sentimos porque pelas circunstâncias
das jornadas da tua breve e fatal enfermidade não recebemos qualquer notícia do
transe em que te encontravas.
Não sabíamos – eu e Rezende – que já descias para o Hades. Caronte te
esperava, com a tacanha ganância do meio óbolo, enquanto ignorávamos a tua
tangida caminhada, para o mundo das sombras sem memória.
Desta
partida, só colhi indícios e acenos a
posteriori, que para mim se resumem na tua inopinada questão em aberto, no
que concerne ao destino dos teus livros.
Se as queixas e as reminiscências podem, às vezes, vestir-se com os opacos panos das nênias e dos epicédios, não há grito mais roufenho, inda que inaudível, do que o marmóreo silêncio da tumba.
Diante das divindades infernais, haverá algo a tentar? Quem dera...
Na
imensa sala de espera da vida, chega o tempo em que desaparecem enfermeiras e
pacientes. Do esculápio, nem falar. No
seu jeito desabrido, enquanto os enfermos mais velhos dormitavam, partiu,
mandou-se, sabe-se lá para onde.
Então, meu velho, não há mesmo nada a
fazer. Só aguardar.
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