sábado, 23 de junho de 2012

Estranha Repulsa à Reforma da Saúde

                           
         Talvez nada reflita  de forma tão eloquente a inépcia da Administração Obama em termos de divulgação de suas realizações do que a atual situação da Lei da Assistência Sanitária Custeável perante a opinião pública.
        Por uma série de erros já mencionados por este blog, o Presidente e o Partido Democrata – nenhum republicano votou em favor dessa reforma, o que é triste confirmação do facciosismo ora imperante na política americana – não souberam, ou não quiseram, divulgar adequada e amplamente junto ao povo americano,em especial, os milhões de não-assegurados, das vantagens da principal realização legislativa do 44º  Presidente.
        As concessões inutilmente feitas pela Administração Obama – na vã busca de algum apoio do GOP, dentro do espírito de bipartidismo – só serviram para retardar a efetiva entrada em vigor da lei e, por conseguinte, não dar ao cidadão americano até 2014 a oportunidade de verificar pessoalmente os benefícios a serem trazidos por esse novo instituto.
       Agora, os presságios são muitos no sentido da derrubada pela Corte Suprema do chamado instituto do mandato individual, que foi justamente escolhido pelos democratas para atender a um punhado de legisladores com ligações às associações médico-farmacêuticas que temiam a ‘opção pública’, vale dizer a criação de entidade federal de assistência sanitária. Preferiu-se uma fórmula híbrida, com associações fundadas em contribuições mandatórias. Embora esse sistema haja sido pregado no passado pelo Partido Republicano, como ele foi adotado por Obama ipso facto se tornou reprovável e inconstitucional. Se os democratas, que tinham a necessária maioria para tanto,optassem por entidade pública federal, custeada por imposto federal, os leguleios republicanos não encontrariam ora pretexto para questionar nos tribunais a constitucionalidade da lei da assistência custeável (ACA).
      A probabilidade de que essa importante reforma tenha a sua disposição central – o aludido mandato individual – inviabilizada sob a pecha da inconstitucionalidade é melancólica confirmação da politização da justiça (com a consequente queda de prestígio da Suprema Corte) e da incompetência em termos de divulgação da Presidência Barack Obama.
     Comecemos pelo alegado malogro na comunicação. É decerto preocupante que uma Administração realize um trabalho tão sofrível no que tange à difusão junto ao público interessado de uma reforma de tal relevância, que uma longa série de presidentes (a começar pelo 26º presidente, o republicano Theodore Roosevelt, em princípios do século XX) perseguira sem sucesso.
     Se a malograda reforma da saúde, propugnada por Bill Clinton, e conduzida por sua esposa Hillary, fora derrotada pela oposição do Congresso e das associações medico-farmaceuticas, tal seria fator respeitável para que a luta pela opinião pública merecesse a devida atenção de uma Administração democrata.
    Apesar da sanção da lei por Obama em 2010, os republicanos foram favorecidos não só pela postergação na efetiva implementação da reforma, mas também pela apatia presidencial na divulgação dos benefícios do novo instrumento.
    Obama ignorou a valia do chamado bully-pulpit[1] da presidência, cujas qualidades tinham sido acentuadas pelo mesmo longínquo predecessor seu que iniciara o esforço pela reforma república da saúde, i.e., o republicano Theodore Roosevelt.
    O GOP iniciou campanha contrária à lei ACA[2], atuando em duas frentes. Por um lado, com o auxílio do Tea Party, esse movimento financiado pelos irmãos petroleiros Koch, de extrema direita, a mídia, sobretudo cadeias como Fox News,foi cognominada de Obamacare (assistência de Obama), com que se desmereceu os aspectos institucionais e vanguardeiros da Lei, a que se buscou assemelhar a um simples expediente politiqueiro.  Por outro, através dos tribunais, pelo longo braço dos diversos procuradores estaduais filiados ao Partido Republicano, se alavancou o intento de desfazer judicialmente o que o Congresso americano aprovara, e o Presidente sancionara. Duas representações pela inconstitucionalidade do ACA chegaram ao nível dos tribunais superiores, sendo uma delas denegada, e uma outra aprovada. De acordo com a usança, a Corte Suprema a considerou merecedora de ter a respectiva constitucionalidade avaliada.
    Na sessão de perguntas (dirigidas pelos ministros aos advogados pró e contra), o viés da maioria conservadora, nela incluído o justice Anthony Kennedy  - que nem sempre apóia a direita e, por isso, é considerado o voto de Minerva – deu a entender aos especialistas na Corte  que a possibilidade de o mandato ser derrubado é bastante grande.
    Tenha-se presente que a inconstitucionalidade do mandato individual não equivalerá à revogação pura e simples do ACA, mas dada a sua importância no custeio da assistência médica, a sua derribada deixará mais do que capenga a Reforma da Saúde de Obama.
     Seria uma senhora derrota para o 44º presidente, atingindo a principal realização do seu primeiro mandato. Desafortunadamente, o comportamento  deste Presidente, que mostra em relação à divulgação de medidas importantes de sua Administração um incompreensível afastamento (aloofness), que alguns atribuem a uma certa arrogância, atuaram de forma perversa, eis que colaboraram com a obra dos detratores republicanos.
     A comprovação dessa embaraçosa realidade é apontada pela derrota da Administração Obama também na corte da opinião pública. Que tal desfavor seja motivado não pelas características da Lei, mas pela ignorância de suas qualidades pelos seus potenciais favorecidos, semelha um agravante quanto à incompetência de estabelecer a realidade dos benefícios trazidos pelo ACA diante da sistemática campanha de inverdades e de meias-verdades  pelos seus opositores da direita.
     O International Herald Tribune dá, a propósito, o exemplo da senhora Erika Losse, uma trabalhadora de meia-jornada, que se enquadraria no público abrangido pela reforma da saúde, eis que ela não está assegurada. Sem embargo, ela não é fã da nova lei, não se julgando em condições de arcar com o pagamento do mandato a que estaria obrigada em 2014. No entanto, como ela ganha menos de 35 mil dólares anuais, ela faria jus a um subsídio especial para o seguro. Por desconhecimento ou não dessa vantagem legal, ela persiste na sua oposição ao ACA, malgrado a circunstância de que ela passaria a ter assistência médica garantida.
     Grandes juristas que fariam honra à Corte Suprema se dela participassem, como Ronald Dworkin (V. blog de 29 de abril p.p., sobre a constitucionalidade do mandato) se manifestam sem ambiguidade pela constitucionalidade da lei. Dworkin desconstruiu, a respeito, a tese conservadora acerca da inconstitucionalidade do mandato.
     Por sua vez, Jeffrey Toobin, que escreve sobre questões legais, em coluna para a revista New Yorker, fez as seguintes considerações que mereciam particular atenção: ‘Os poderes, terríveis e definitivos, dos ministros (da Suprema Corte) deveriam ser  exercidos de forma contida e restrita. Já é bastante pesado o seu fardo de interpretar as leis. Ninguém deveria esperar dos ministros da Corte que se ocupem de assistência sanitária, tanto quanto de que venham a escolher presidentes, o que, é necessário recordá-lo, não é exatamente uma capacidade deles.’ [3]
        Até na esquerda, entre os liberais como Marcia Angell, a conhecida especialista em assistência médica, se pronunciou pela revogação do mandato, em sugestão desarrazoada que segue a discutível tese do quanto pior, melhor.  São conhecidas as lacunas do A.C.A., mas não é boa solução revogá-la. Tal tropeço, além de outras consequências, poderia importar em novo retrocesso e, se tivermos presente a longa caminhada por uma reforma pública da assistência médica, seria aconselhável maior prudência nos meios tendentes a promovê-la. (V. a respeito, meu blog de três de junho corrente).
        Nesses termos, dada a profusão de previsões negativas, e atendida a lamentável ineficiência da Administração Obama em valorizar e divulgar a sua principal reforma, a expectativa quanto ao pronunciamento da Suprema Corte se vê tingida por um enfoque pessimista. Com efeito, será grata surpresa se a Corte se manifestar, pela maioria de seus juízes, para afirmar a validade da Lei da Assistência Sanitária Custeável.
 



( Fontes: International Herald Tribune, The New Yorker, The New York Review )



[1] púlpito do preceptor.
[2] Affordable Care Act, i.e., Lei da Assistência Custeável, que é a designação resumida da Reforma da Saúde.
[3] Alusão à contestada sentença ‘Bush vs. Gore’, que na prática atribuiu a presidência a George W.Bush, ao impedir a continuação da recontagem na Flórida. Se levada avante como o estatuíu a Corte daquele estado,a recontagem levaria provavelmente à vitória de Al Gore naquele estado e, portanto, a obter o número necessarios de votos indiretos para alcançar a presidência.

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