A luta pela democracia costuma ser comprida e difícil. Os governos preferem o povo bem-comportado, e a mídia a rivalizar naquelas notícias que caracterizavam o telejornal da Rede Globo nos áureos tempos da Redentora. Coloridas, por vezes até interessantes, mas politicamente vazias.
O medo é uma característica intrínseca das ditaduras. Quanto mais férreas, mais paranóicas serão em seus temores quanto à imprensa e aos meios de comunicação que acaso teimem em não se deixar domesticar.
Talvez o problema cresça para os déspotas quando querem parecer aquilo que não são. Tomemos o exemplo da Federação Russa.
Se nos ativermos aos sinais externos que adornam os regimes democráticos, as suas autoridades e altos funcionários batem o pé para inserir a velha Rússia como se fora uma democracia.
Os seus presidentes não são porventura eleitos ? Não é também o caso de outras autoridades executivas (prefeitos, governadores, etc.) ?
Igualmente na esfera legislativa, suas câmaras altas e baixas não seriam eleitas pelos povo, nos períodos constitucionais ?
E não há também uma justiça que se ocupa dos direitos e deveres da coletividade?
No entanto, existe um detalhe que sói estragar toda essa rósea apresentação da organização estatal formalmente democrática.
É o traiçoeiro adjetivo, que pode ou não estar inscrito na Constituição de tal país. O mais comum, nos dias que correm, é que não esteja, mas a tal palavrinha, se omitida, será autêntico segredo de Polichinelo.
Que cidadão, se vive em falsa democracia, pode ignorar tal fato ?
Em tempos idos, definiam os regimes livres como aqueles em que uma batida na porta às seis da manhã mereceria a observação: veja só, o leiteiro já chegou...
Hoje, nessas ditaduras, eles vêm a qualquer hora – milicianos, meganhas, esbirros, polícia secreta.
Sabemos que a Federação Russa, sob Vladimir Putin, se afunda sempre mais na ominosa categoria das democracias autoritárias. Não contente em servir-se da justiça para acertar contas com opositores (como é o caso do ex-magnata Mikhail Khodorvorski), e de ter uma visão algo elástica de lisura nos pleitos, a par de medidas mais violentas no que concerne a profissionais de imprensa (Anna Politkovskaya) que não se enquadrem na cartilha do regime, agora as duas Casas do Parlamento acabam de aprovar lei draconiana a respeito de manifestações populares.
Compreende-se a inquietação do nascente governo Putin – que vem de ser eleito e empossado para um sexênio. Parece que boa parcela da população – sobretudo em Moscou – não está satisfeita com tal perspectiva, nem tampouco com as muitas suspeitas de fraude eleitoral.
Populares com lenços brancos realizaram inúmeros comícios, em geral pacíficos, nos quais testemunham o seu desprazer com Putin e o regime. A polícia, coitada, tem tido muito trabalho extra, com a detenção de todos esses indivíduos que, estranhamente, se opõem a governante tão esclarecido.
Semelha importante especificar as características – e as penalidades – que a nova legislação repressiva deve aplicar a indivíduos e organizações que se aventurem doravante a realizar manifestações anti-governamentais e que supostamente prejudiquem a pessoas ou propriedades.
As multas sofreram um incremento cavalar, eis que passarão a ser multiplicadas por um fator de 120 vezes o valor precedente. Dessarte, indivíduos estarão passíveis de pagar até R$ 18 mil e organizações e associações, até R$ 60 mil. Se tivermos presente que o salário médio anual do russo é R$ 17 mil, pode-se imaginar o efeito ruinoso que terá sobre as finanças de infelizes a quem forem impostas tais cobranças.
A lei inclui entre as pessoas proibidas de organizarem tais eventos aqueles que já foram pilhados duas vezes pela lei. Faculta às autoridades, por outro lado, uma lista de lugares centrais em que tais manifestações serão completamente banidas.
Os cérebros do regime podem reputar engenhosa a maneira de lidar com os protestos da oposição no futuro. Cabe notar o que se proíbe. São manifestações pacíficas e não badernas. Ressalta, portanto, a sua ínsita crueldade, ao inviabilizar a participação dos cidadãos em protestos pacíficos, que tem por único objetivo dar vazão à opinião pública, e à sua discordância das práticas de um regime autoritário e corrupto. É de frisar-se que tais protestos acontecem também pelo silêncio imposto nos meios de comunicação, que só veiculam loas às autoridades.
Em qualquer democracia, que se orgulhe deste nome, uma lei desse jaez seria impensável, além de não ter qualquer probabilidade de não ser declarada inconstitucional, pela sua cínica instrumentalização das finanças dos cidadãos para transformá-los em impotente rebanho de carneiros. Negar a realização de manifestações pacíficas e de portarem o lenço branco alusivo é uma prática que iguala, na essência, os desmandos de Putin aos de vizinho Alexander Lukashenko, ditador da Bielo-Rússia.
( Fonte: International Herald Tribune)
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