sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Obama e o Estado de Segurança Nacional (II)

No artigo anterior, aludimos ao que Garry Wills elenca como os principais traços do estado de segurança nacional. Os acrescidos poderes e características desta criatura que se estende e se reforça desde 1941 não dão a impressão de que possam desaparecer, em passe de mágica, pela vontade de novo presidente, de tendência liberal-progressista, eleito por grande coalizão em favor de uma difusa mudança.
Quão arraigadas se acham práticas abusivas, autoritárias e ilegais em diversas instituições do Estado pôde ser determinado em episódios ligados a personalidades, não da Administração Bush, com as suas ideias e projetos fascistóides, mas pertencentes supostamente ao arco liberal-democrático, que se identificam com o partido de Barack Obama.
Talvez os exemplos selecionados por G. Wills pequem por enfoque exclusivista e predeterminado, pois não há negar que a nova Administração tomou medidas relevantes no sentido do retorno à grande via constitucional, que comumente se associa com a tradição americana. Nesse campo, merecem citação o não à tortura, o fechamento da prisão de Guantánamo, e o reconhecimento da continuada vigência de tratados internacionais e leis nacionais, considerados por Bush e companhia como não mais suscetíveis de aplicação nos tempos da guerra contra o terror.
Feitas tais ressalvas, as amostras pinçadas por Wills não são de molde a tranquilizar-nos quanto às reais perspectivas de re-formação de um Estado que não só pareça, mas que seja efetivamente de direito, expurgado da chusma de recursos a que a Administração Bush jr. não terá por certo inventado na sua totalidade.
Na audiência de confirmação de Leon Panetta – que foi um dos chefes de gabinete de Bill Clinton – para ser diretor da CIA, declarou ele que não pretendia desfazer-se das chamadas “transferências extraordinárias” (extraordinary rendition), como eventual instrumento de ação da sua agência. Não se ignora o que isto significa: transferir, em segredo, elementos detidos, para serem interrogados em países amigos, de acordo com o tratamento que aí dispensam aos presos.
Elena Kagan, designada para Solicitadora Geral (cargo de alto escalão no Ministério da Justiça), afirmou na sabatina congressual que concordava com o entendimento de John Yoo que um terrorista capturado deveria ser submetido à “ lei do combate”. A par da discutível interpretação da senhora Kagan à luz da legislação pertinente, é importante assinalar que John Yoo está por trás da famigerada flexibilidade de Bush e de seus Ministros da Justiça para viabilizar a aplicação de métodos de interrogatório que, na verdade, eram mal disfarçada tortura. De resto, não foi por acaso que o juiz Baltasar Garzón incluíu John C. Yoo entre seus indiciados em recente mandado internacional de prisão (V. meu blog Baltasar Garzón, o Juiz, de 30.III.2009)
O Attorney-General (Procurador-Geral, que é na verdade o Ministro da Justiça) Eric Holder não se pejou de invocar “segredos de Estado” para abortar a realização de julgamento por júri. Baseou-se na dúbia jurisprudência do caso Reynolds.
O Presidente Obama recusou a liberação para a imprensa de fotos relativas a enhanced interrogation (interrogatório com tortura). Anteriormente, a CIA ilegalmente destruíra 92 videoteipes de tais interrogatórios – e, solicitado, Obama se negou a liberar documentos que descreviam as fitas.
Também se afigura controversa a postura de Obama de que os crimes cometidos a título oficial ( na Administração anterior ) não serão investigados, nem mesmo por Comissão de Verdade. Ao invés, não excluíu a possibilidade de que pessoas detidas possam ser julgadas por ‘tribunais militares’.
Segundo entende Wills, fora da área dita de segurança nacional, igualmente a Administração Obama não parece diferenciar-se muito da de Bush. Militares gays, incluindo aqueles com válido conhecimento da língua árabe, estão sendo despedidos no mesmo ritmo do governo anterior. Houve muitas objeções quando Dick Cheney se recusou a revelar que diretores de empresas de energia haviam visitado a Casa Branca em 2002, embora a Primeira Dama Hillary Clinton tivesse sido forçada a declarar que assessores na área da saúde a tinham visitado (quando chefiou a malograda tentativa do governo Clinton de fazer aprovar reforma sanitária). Também o staff de Obama se negou a tornar públicos, em junho último, os registros de visitantes da Casa Branca, a que mais tarde foi obrigado, por força de processo judicial.
A presente resistência do establishment da segurança nacional em adequar os respectivos processos aos procedimentos usuais em tempos de paz se torna menos difícil de entender pela extensão e tamanho de sua articulação, inda que invisível para a opinião pública. Os Estados Unidos mantêm cerca de mil bases militares em outros países. Garry Wills frisa que se trata de estimativa, porque o número exato, localização e dimensões das bases se acham cobertos pelo sigilo que, em muitos casos, visa a proteger instalações nucleares.
Exemplo significativo desse sistema imperial é a ilha de Diego García, no Oceano Índico. Para evitar exame congressual, foi cedida em arrendamento secreto pelo Reino Unido aos Estados Unidos. Reeditando prática que na Grécia antiga era utilizada por Esparta e Atenas, entre outras grandes cidades-estado, recolonizando as cidades vencidas, enquanto a sua população era delas expulsa, os dois mil chagossianos, habitantes da ilha foram deportados para outro continente (e até hoje se encontram na prática em um limbo judicial, conquanto continuem a lutar por seus direitos). Entrementes, Diego Garcia se transformou em enorme base militar, depósito de armamento, sítio de lançamento, de onde partem ataques aéreos concernentes ao Oriente Médio,e em especial Golfo Pérsico, Iraque e Afeganistão. É uma área a que os jornalistas não têm acesso.
O legado do império, o peso da superpotência constitui para governante como Barack Obama - escolhido pelo povo americano como mensageiro da mudança - um manto que simboliza, em seu porte e esplendor, todas as contradições inerentes a esse gênero de organização.
Como todas as peças de acusação, o artigo de Wills se ressente da própria unilateralidade. Em esfera tão ampla de depoimentos da nova Administração, no processo de confirmação estadunidense, não deve assombrar que gafes e escorregões apareçam. Há lapsos que devem ser relevados e outros, não. O Presidente Obama não pode ser responsabilizado por muitas dessas atitudes, que podem, inclusive, estar fora de contexto. Há, no entanto, exemplos que merecem urgente correção, como a preferência de Panetta pelo eventual emprego da infame “ extraordinary rendition”.
Dada a multiplicidade de tarefas que foram lançadas à sua porta por uma gestão falimentar – começando pela maior crise econômico-financeira desde a grande depressão dos anos trinta – não se afigura nem sensato, nem realista que dele se exijam providências em todas as direções para corrigir atos e situações implementadas em muitas décadas. Já foi dito que a jornada de mil milhas se inicia com uma simples passada.
A despeito do preparo jurídico, capacidade oratória, e inegável carisma, Barack Obama carece de continuar o próprio aprendizado executivo, em sede e cargo de tal relevo e exigência. Tempos árduos, em atmosfera não exatamente benévola, o 44º Presidente dos Estados Unidos tem muito chão pela frente.
A severidade do observador é decerto importante e, por vezes, necessária. Mas não será tudo. Como se poderá construir, se não concedemos um prazo razoável, marcado pelo bom senso ? Obama traz em si elementos de indubitável grandeza. Calcar demasiado no negativismo, pode ser confundido com impertinência.
Não será descabido, portanto, estender-lhe o prazo de confiança. Quem sabe, não nos aproveitará a todos com isto ?

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