domingo, 3 de julho de 2011

Colcha de Retalhos LXXXIV

Itamar Franco

          Além da habitual discrição mineira, o presidente Itamar marcava seu comportamento pela seriedade e respeito ao interlocutor. A cordialidade, própria do brasileiro, nele constituía outro traço inerente, posto que com reserva despojada de excessos de familiaridade.
          A par disso, Itamar Franco era pessoa honesta, no público e no privado. Não que carecesse de alardeá-lo. Quem o é, será havido como tal, e não precisa afirmá-lo.
          Nesses tempos cinzentos, em que não se depara amiúde esta qualidade fundamental para o homem público, o que antes parecia quase redundante dizê-lo por afigurar-se pressuposto essencial, hoje semelha oportuno asseverar.
          O presidente Itamar Franco, que nos legou o Plano Real, terminou o seu mandato (1992-1994) com a marca da honradez e a gratidão popular.
          No Senado, e na sociedade brasileira vai fazer muita falta.


A doença de Chávez


           Para os poderosos, sobretudo os caudilhos, a enfermidade será sempre tratada como intrusa. O caso do coronel Hugo Chávez Frias parece a respeito bastante ilustrativo.
           A doença irrompeu em sua trajetória com a sem-cerimônia que a caracteriza. Estava em um destino que quase vem a ser um lar alternativo para ele. Em Havana, o mal súbito causado por um abscesso pélvico se revelaria assaz diverso na mesa operatória.
           Ao invés das crenças de outrora – há países como na Itália em que sequer se menciona o nome, preferindo os eufemismos como ‘mal incurável’ – que tornavam esta grave doença o virtual prenúncio de morte inexorável, a ciência médica assegura que será tratável e curável se a intervenção for oportuna.
           Explicará a reação de seus aliados os irmãos Fidel e Raul Castro – a pesada cortina de silêncio nas primeiras semanas de cuidados clínicos e cirúrgicos – apenas o recurso instintivo do regime em lidar com problemas emergentes ? Ou se deveria à consciência da gravidade da situação de um presidente tão visceralmente próximo de Cuba ?
           Ainda não se sabe quando o presidente Hugo Chávez retornará a Caracas. No sistema venezuelano, o vice-presidente – ou melhor, quem na oportunidade, por designação presidencial exerce tais funções – não assume a presidência durante as ausências do Presidente. Mutatis mutandis, é o sistema americano, que se afigura mais compreensível, no mundo atual, com a sua facilidade de comunicações, do que o brasileiro, ainda apegado ao anacronismo das substituições compulsórias.
           Não obstante, a Venezuela vive num estado de crise endêmica, com os problemas derivados do desgoverno chavista. Os apagões se sucedem, ao lado de rebeliões em prisões, e a inflação em torno de 30%. Acrescentem-se a tais fatores o inesperado de longa ausência, desprovido por ora do lenitivo de um anúncio confiável do retorno de Chávez em data marcada, tudo isso não diminuirá no povo venezuelano a apreensão do desgoverno e sobretudo do vácuo de quem, por mais de um decênio, é presença diuturna. Nesse contexto, quase não importa como lhe recebam a imagem na prática cotidiana.
           De repente, lhes falta o norte, e a perplexidade tenderá a crescer.


Indiciamento de suspeitos no assassínio de Rafik Hariri


           A prolongada investigação do assassínio do líder político libanês Rafik Hariri – morto em 2005 – realizada por tribunal ligado às Nações Unidas – mostra pela sua lentidão as enormes pedras com que se deparou em seu acidentado caminho. Afinal, sempre pairou sobre os procedimentos a sombra de suspeição do líder sírio Bashar al-Assad. Foi em consequência deste magnicídio que as tropas sírias se retiraram do vale da Bekaa, e o virtual protetorado de Damasco sobre o governo libanês iria por fim evaporar-se.
           Os indiciamentos de quatro suspeitos – dois dos quais membros do Hezbollah – era esperado desde muito. Como o Hezbollah, esta considerável força política na frágil democracia libanesa, reagirá ao processo judicial que se anuncia, e às pressões que trará igualmente sobre a Síria – cujo governo alauíta atravessa a sua maior crise – é uma interrogação que se deve deixar para o futuro.
           Quem são os indiciados ? Moustapha Badreddine, cunhado de Imad Moughnieh, comandante do Hezbollah morto em 2007, e acusado de alguns dos principais atos de violência (a explosão em 1983 dos quartéis francês e americano em Beirute, com 241 vítimas fatais nos Fuzileiros americanos e 58 paraquedistas franceses). O outro integrante do Hezbollah é Salim Ayyash. Ignoram-se as ligações políticas de Hassan Anaissy e Assad Sabra.
           Há algum tempo o Hezbollah já previra o indiciamento de membros desse partído armado. Dentro de sua estratégia costumeira, denunciou o tribunal (atribuíu-lhe desvio por influência política e instrumento dos Estados Unidos e Israel). O grupo, apoiado por Teerã e Damasco, quer forçar o Líbano a terminar sua cooperação com o tribunal, inclusive com a retirada dos juízes libaneses e término do custeio financeiro.
           Saad Hariri, o filho de Rafik Hariri, saudou o indiciamento “como momento histórico em termos de política, justiça e segurança no Líbano”. Por sua vez, o sucessor de Saad – cujo gabinete caíu quando o Hezbollah e seus aliados dele se retiraram – prometeu em declaração honrar os compromissos internacionais assumidos pelo Líbano.
           A sorte do gabinete de Najib Nikati estará muito ligada aos desenvolvimentos relativos aos quatro indiciados. A esse respeito, não podem subsistir muitas ilusões quanto à durabilidade de governos sobre os quais pesa o veto do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah.
           As guarnições sírias podem ser distante lembrança para os atribulados libaneses e seus líderes democráticos. No entanto, na antiga Suiça do Oriente Médio está hoje solidamente implantada, com o apoio da comunidade xiita, o movimento e a bem armada milícia do Hezbollah. A esse propósito, Nasrallah prometeu ‘cortar a mão’de quem intentar prender os seus partidários. Diante do quadro libanês, da fraqueza de seu exército, e da desenvoltura do Hezbollah, não é ameaça a ser tida como simples blefe.


O pequeno Bahrein e as suas grandes sentenças


           As notícias relativas ao Bahrein, dada a sua relativa insignificância territorial, não merecem amiúde a distinção dos cabeçalhos e das extensas coberturas.
           No entanto, o que lá está ocorrendo, em termos de virulência judicial, arrimada no apoio do contingente militar saudita, não se afigura evento de somenos, dentro do quadro geral da revolução árabe democrática.
           Dessarte, um tribunal daquela ilha do Golfo Pérsico condenou oito ativistas xiitas da oposição à prisão perpétua, após tê-los julgado culpados de conspirar para a deposição da família real sunita.
           Os procedimentos têm grandes similitudes com a chamada justiça canguru, que é parente próxima, mesmo sem o saber, dos tribunais de Fouquier-Tinville, durante o período do Terror na Revolução Francesa.
           Como seria de esperar, os réus protestaram aos gritos pela sentença, o que levou os meirinhos a removê-los à força do recinto. Por outro lado, Zainab al-Khawaja, ao escutar a sentença de seu pai, gritou : “Allah é grande !”. Isto bastou para que fosse presa.
           Os observadores apontam, a propósito, a contradição entre as palavras conciliadoras do príncipe herdeiro – Salman bin Hamad al-Khalifa – que prometera ao Presidente Barack Obama um diálogo nacional com os protestadores, e o comportamento dos tribunais, aplicando penas absurdas, ao arrepio dos mais elementares direitos humanos.


A Crise do Regime al-Assad


           As promessas de Bashar al-Assad nunca tiveram muito credibilidade, mas a continuada dissonância entre os vazios votos de abertura e o comportamento da ‘tropa de elite’ comandada pelo irmão Maher al-Assad, além dos morticínios provocados pelas ditas forças de segurança, tem contribuido não só para dissipá-las por irrelevantes, senão para aumentar o número das manifestações.
          A inssurreição síria atravessa, dentro do paradoxo das revoluções, fase em que no aparente geral apodrecimento do regime alauíta, as manifestações irrompem por todo o país. Sempre numerosas, as palavras de ordem cada vez mais incisivas na explicitação da intolerância popular com a permanência da tirania da família al-Assad. Em outro sinal de sua potência inercial, os manifestantes acodem às ruas, malgrado os consideráveis riscos que se lhes deparam.
         Quando o revolucionário perde o medo do fuzil do ditador, outro marco é superado na sua marcha pela liberdade. Diante do afastamento de antigos aliados como a Turquia de Erdogan, a desarticulada porém presente pressão internancional, e o isolamento consequente, os harúspices do regime experimentam crescente dificuldade em prognosticar dias mais serenos para o presidente Bashar al-Assad.
         Se a história das revoluções nos ensina de sua volubilidade e imprevisibilidade, ela também nos deixa entrever que quando os espaços começam a estreitar-se e as iniciativas a multiplicar-se, a margem da resposta final tende a ir encolhendo, como se atropelada por uma resolução que ignora a lógica e a humana cautela.




( Fontes: International Herald Tribune, Folha de S. Paulo, O Globo, CNN)

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