Antes pensava que Dilma tinha um problema com a autonomia do Banco Central. Na verdade, esse problema vai muito além dos limites da autoridade financeira. O repique na inflação, rompendo o teto programado constitui o tipo da notícia que já nos chega como o pão de véspera, sem nada prometer-nos saber na mesa do café da manhã.
Se a tímida ambição de Henrique Meirelles foi truncada ao mencionar a palavra autonomia – será por aí estarem implícitas todas as pequenas renúncias que esta autonomia consentida pelo Chefe de Estado traz consigo – para a presidenta-eleita.
Ela não quer saber de independências, mesmo falsas, no B.C., como tampouco as tolera em qualquer espaço por onde se estendam os galhos frondosos da chefia executiva do Estado.
Não pretendo repetir-me, mas como disse Eliane Cantanhêde ela sabe de tudo, ou melhor julga saber de tudo, e com isso, como na resposta de Trasíbulo, déspota de Mileto, dada à consulta do jovem Periandro, tirano de Corinto, que mal sucedera ao pai Cypselus, o modo de agir pode tornar-se drástico e mesmo abrupto. O novo soberano desejava saber como ele deveria ordenar as questões do Estado para melhor governar. O mensageiro disse a Periandro que Trasíbulo, ao invés de responder à sua pergunta, o levara para o campo e ali cortara espigas de trigo, desfazendo a bela colheita aí prometida. O homem duvidara da sanidade mental de Trasíbulo, mas Periandro entendeu muito bem o conselho. Daquele dia em diante ele se tornaria verdadeiro flagelo para seus súditos (Heródoto, liv. V, 92).
Longe de mim insinuar que a nossa Presidente, que experimentou o arbítrio da ditadura, tenha literalmente tais intenções. No entanto, o seu comportamento no plano das idéias não deixa dúvidas de que aceita mal o dissenso, nem lhe agrada o convívio com personalidades fortes e que tenham opiniões firmes e originais.
Ora, direis, e o presidente Lula ? Aqui está a exceção, que confirma a regra. Sabendo dele ainda depender – sem falar da natural gratidão – Dilma reserva para o seu ex-chefe e eterno padrinho tratamento diferente, que não entra em contradição com o dito anteriormente, por planar em outra dimensão.
Para ser um grande líder, a pessoa tem de aspirar ser o somatório da capacidade alheia, não no sentido de substituir-se a tal conhecimento, mas de ter menos a humildade do que a presciência de o que poderá imantar das boas concepções de outrem.
O temperamento junto com a inteligência e o bom-senso compõem o quadro. William Seward pensou que dominaria Abraham Lincoln, que não hesitou em chamá-lo para Secretário de Estado, e de que se serviu de alguns de seus conselhos para tornar-se o grande presidente americano do século XIX. Getúlio Vargas, quanto Juscelino Kubitschek, tampouco recearam ter a companhia e a assessoria da elite de seu tempo, cujos projetos avaliaram, e, quando necessário, aplicaram de modo ameno o conselho de Trasíbulo.
Os grandes crescem mais pelo controle do temperamento, do que pela altaneria. Entre pai e filho, nos merece mais respeito a tolerância de Pedro II e o seu espírito democrático, do que os feitos e os arroubos de Pedro I. Nunca se deve esquecer que na quartelada de novembro, um fim tristemente sul-americano para a única república de Ibero-América (e a frase é de estadista argentino), o Imperador chamou para tentar contornar a confusão armada pelas incompetências de Ouro Preto, o Conselheiro José Antônio Saraiva, ave de vôo baixo mas de pouso certo, como era conhecido. Se o intento falhou, ele vale pelo que tem de bom senso em meio às bazófias castrenses.
Mas não nos percamos em mais exemplos ilustrativos. A Chefe de Estado deve ter não só a inteligência, mas também a argúcia de entender que nenhum saber a ameaça. Pelo voto da maioria do povo brasileiro, ela se tornou mais do que a Presidente, a Chefe da Nação. Por não ser divindade, não está em pedestal, mas isso não significa que no seu gabinete, com a sua caneta – ou para sermos mais atuais, o próprio computador – ela tem a última palavra.
Minha cara Presidenta, não estou sendo redundante, repetindo fatos aparentemente do público conhecimento. Atrevo-me a dizer isto porque a sua atitude parece discrepar deste seu direito inalienável de dar constitucionalmente a última palavra. Quem não deve a ninguém, não teme os juízos alheios, convive com eles, permite que eles se mostrem sem os panos da bajulação e da cortesanice, porque sabe que quem decide é a senhora. Daí o seu interesse de pesar e sopesar o parecer de seus ministros e assessores, dando-lhes toda a oportunidade de fazê-lo.
O dever de todo o funcionário é o de dizer o que pensa, e não aquilo que reputa ser a opinião do agrado da Presidente. Essa assertiva mostra dois claros caminhos: a inteligência e sabedoria dos grandes chefes de governo que não temem ou abominam a opinião porventura discrepante, e a adotarão com serenidade se virem que ela serve não aos interesses de fulano ou sicrano, mas aos superiores ditames do Povo brasileiro.
E quando assim o decidir, a Senhora o fará com a mesma segurança de Trasíbulo, mas com intuito de incomparável excelência. O francês utiliza o verbo trancher para esse tipo de decisão: sem hesitação, embaraços e incertezas, justamente porque o assunto foi sopesado longamente e as opiniões emitidas sem o travo dos temores dos subordinados.
(a continuar)
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