quinta-feira, 25 de abril de 2013

Cartas ao Amigo Ausente


                                       Nota  Explicativa

 

        Pedro Carlos Neves da Rocha morreu no outono de 2006. “Mauro, preciso pensar o que fazer dos meus livros”.  Por um instante, olhei intrigado para ele. Válido e lépido como sempre, atribuí a frase à circunstância de que faria oitenta e dois em uns poucos dias.

       E, no entanto, foram as últimas palavras que dele ouvi.

       Éramos colegas de profissão. Ambos diplomatas e sobretudo irmãos nos pendores culturais. Mais velho do que eu, a amizade se consolidara na alturas de Quito. Se o gosto pelos livros já trouxera comigo, lá ele me apresentou às grandes livrarias de seu mapa de encomendas, distribuídas pelos Estados Unidos e a Europa. Se tudo que conhecimento fosse o interessava, tinha especial devoção pelo Humanismo e a cultura da Antiguidade Clássica. Com prazeroso ânimo, procurei seguir-lhe as pegadas.

      Mais tarde, quando eu vivia no Rio ou por aqui passava, almoçávamos no centro da cidade. O encontro marcado era sempre em um sebo. Depois de inspecionar as estantes poeirentas, rumava para o restaurante com Pedro e Antonio Rezende, professor de filosofia da PUC, completando o trio.

     Por isso, dez dias depois do último almoço, quando ouvi a voz de Rezende ao telefone dizer-me “Mauro, tenho uma notícia muito triste para lhe dar” soube que perdera Pedro, meu inestimável interlocutor de quarenta anos.

     As cruéis Parcas cortaram o fio da vida e eu já não tinha com quem trocar ideias, seja nos almoços, seja por carta ou telefone, acerca de uma agenda intelectual de tantos anos. 

     Quando voltei para a Grécia, em maio de 2006, a presença de Pedro se tornou constante. Não havia no mundo cidade mais propícia do que Atenas para evocar a cultura clássica, e em especial Aristóteles, sobre quem escrevera meu amigo o livro ‘A Crítica do Animal Político’.

      As Cartas ao Amigo Ausente são decorrência daquelas jornadas. Essa estranha correspondência terá sido a maneira por mim encontrada para lidar com o brutal silêncio.

       Ora tenciono publicá-las em intervalos semanais.

      

 

                               Cartas ao Amigo Ausente

 

                                                   I  

 

       Meu mui prezado e bom Amigo Pedro,

 

        Ao retomar nossa correspondência, me valerei de uma tantas liberdades. Primo, confiante de que doravante prescindes do correio, abstenho-me de postar essas cartas. Secondo, me permitirei dizer-te coisas, partilhar impressões e antecipar projetos, temores et al. que a tua condição anterior me desaconselhava fazer.
        Quando recebi na terça-feira o telefonema do Rezend, que me dizia ter notícia muito triste para comunicar, invadiu-me a quase certeza da tua partida. Então, na sexte-feira, fiz, em sentido inverso, a viagem de que foste, por esses anos afora, assíduo freguês.  Após desembarcar na vasta e excêntrica rodoviária, tomamos um taxi e rumamos, por primeira vez, para a casa da Visconde do Uruguai, 128. Lá chegamos, Ana e eu, pelas dez e meia. Como desconhecíamos o local, batemos na porta errada, até que assomou uma empregada para nos indicar a entrada. Thérèse, que nos esperava, não tardou em aparecer. A residência, com o pátio interno, e a disposição térrea recordava o solar  da avenida Barão do Rio Branco, que visitara na década de noventa.
        Conversamos com a tua amada esposa por cerca de duas horas. A princípio, ela nos conduziu pelos cômodos da mansão, e nos relatou as circunstâncias dos teus últimos seis dias de vida, a partir do problema circulatório que se revelou na terça-feira. Excetuadas as dependências íntimass, Thérèse nos mostrou até o chamado quarto de hóspedes, para onde te levaram depois que voltaste do hospital.
       Devo confidenciar-te que, pela dificuldade em dialogar com ela, por força da surdez, o histórico desses dias fatídicos se me afigurou algo nebuloso e mesmo contraditório em certos aspectos. Mais tarde, como saberás, tive oportunidade de esclarecer alguns tópicos, mas me resta a incômoda suspeita de que jamais hei de inteirar-me de o que realmente aconteceu naquelas agourentas jornadas.
       Não é, contudo, o momento de discutir de tua relativa solitude, e das consequentes limitações assumidas com a escolha das alturas petropolitanas. Retornemos, pois, àquela manhã ensolarada. Infelizmente, como não ignoras, o sol não é um visitante bem-vindo e costumeiro nas dependências decoradas com tamanho esmero e intensidade por tua mulher. Dessarte, além do ar sombrio a pairar sobre o ambiente, a fria umidade e a sensação  de arraigado mofo perpassa as diversas e contíguas salas.
       Em saleta próxima da cozinha, Terezinha nos expôs as suas inquietudes e perplexidades. Senti-a de todo despreparada diante de tua subitânea saída de cena. Disso me ocuparei com mais vagar oportunamente. Por isso, preocupou-me deveras a sua situação, mormente se a realizarmos submetida às vistas atentas  e intrusas de uma criadagem que sentes onipresente. Como disse Ana, ali as paredes têm ouvidos.
       Após certa hesitação, que atribuo mais a seu estado de espírito, que a uma negativa personalizada, Thérèse se decidiu a mostrar-me a tua bibilioteca.Admirei o sobrado que fizeste construir sobre a garagem e, com inegável emoção, subi os degraus da escada disposta lateralmente à construção. É  um percurso suave, que culmina em alpendre. Sob o dístico Humanitas e a companhia da coruja de Pallas Athena, o eventual visitante enceta os poucos passos a separá-lo da porta de entrada, que consiste de duas batentes venezianas cerradas por frágil fechadura.
        Talvez por causa da comoção, não posso dizer-te hoje se estive em três ou quatro aposentos. Que importância terá esse detalhe para ti, que tão entranhadas terás na memória aquelas dependências ?  Como hás de recordar-te, a última vez que estive na biblioteca ainda fora no pavilhão da casa da avenida Rio Branco.  A minha primeira impressão foi a de deparar recinto não tão amplo quanto o anterior. Não sei se pelo incremento físico dos volumes dispostos ou empilhados nas prateleiras, ou se por limitações relativas de espaço, o ambiente ora me pareceu menos aberto, quiçá mais confinado.
       Tampouco era acolhedora a predominante umidade, causada pelas janelas cerradas e a decorrente falta de ventilação. Já como que se formara um bolorento véu, pelo fechamento, por mais de semana, daquele local de leitura e estudo. A tua ausência, de início, devido à doença. e, em seguida, pela fatalidade, conformara, material e figurativamente, uma atmosfera opressa, quase inóspita, o oposto dos livres ares que as tuas atividades livrescas soíam proporcionar. É bem verdade que o clima de Petrópolis não se distingue pela secura.  Todavia, a tua movimentação entre aquelas paredes e a própria abertura não só para as correntes do saber cuidou em trazer para o estimado reduto o afluxo necessário para oxigenar as miríades de páginas que congregaras ao longo dos anos.
        Não sei se igualmente certa timidez ou, melhor falando, algum pudor me impedia de adentrar-me mais a fundo nos teus caros e particulares domínios. Como poderia, tão de chofre, dissociar-te a presença das profusas estantes e das pilhas de volumes que se espalhavam até mesmo pelo compartimento sanitário ? Descobria-me algo constrangido, como se estivesse me intrometendo na intimidade de uma biblioteca que sempre considerara a extensão natural da tua pessoa, tão estreitamente ela condicionou a tua âßïò. Assim me explico o inconsciente acanhamento, que me cerceou no perlustrar as muitas – e convidativas – lombadas.
       Por mais, no entanto, que te sentisse a acompanhar-me na incursão, não me escaparam determinados títulos, como, v.g., os quatro tomos da enciclopédia sobre o ateísmo, os in-octavo do teu admirado Pierre Bayle, algumas traduções setecentistas de Diogenes Laertio, e uns poucos mais. Demasiado poucos, em verdade. Desconheço se para tanto também contribuíu a voz estrídula de Terezinha, a perguntar-me mais do valor venal da coleção do que da qualidade intrínseca de cada livro.
        Curioso, procurei pelo precioso exemplar da edição quinhentista de Manuntius de Diogenes Laertes, que me confiaste não faz muito haver sido a tua mais custosa aquisição. Perscrutei a prateleira das compras do bibliófilo, em que por prezares mais o espírito do que a matéria,mui raramente as praticaste. Espiei, convenhamos que de modo dessultório, nas fileiras clássicas e nas biográficas. Debalde. Aonde terás metido essa jóia editorial, só se saberá após meticulosa classificação do teu acervo.
       Tampouco dei com os arquivos de notas e registros. De feitio propenso à reserva, jamais mencionaste como organizaras a tua erudição, a colação das várias obras, os respectivos títulos e os nomes dos autores, as citações ou, consoante a maneira de outros tempos, a coleção de common places. Intelectual formado à antiga, abominavas a era do computador e da internet. A despeito da fadiga e da azáfama mesmo que a velha máquina de escrever Olivetti não podia evitar, nunca sequer consideraste a hipótese de servir-te da informática como instrumento de trabalho. Se não podia concordar com tal postura, pelo seu caráter epimetéico, sempre respeitei a tua convicção.  Homem das primeiras décadas do século vinte, não admitias sobretudo o novo paradigma no sentido kuhniano que o computador trouxera para o mundo das letras e da cultura. Não ignoramos o destino de tais resistências, mas jamais te neguei a admiração que compete aos desassombros do velho do Restelo.
        Enquanto estiver por essas bandas, guardarei zelosamente as tuas laudas, todas datilografadas na indefectível Olivetti, com que partilhaste comigo a tua experiência e me apontaste tantos caminhos nas ínvias florestas da profusa produção livresca.
       Eis-me a enveredar por nova digressão. Que tais questões fiquem para mais tarde, e retornemos a tua citadela.
        Depois das buscas infrutíferas, empreendidas com o já mencionado ânimo meio descorçoado e irresoluto, topei, em um canto da biblioteca, com a famosa mesa, que mandaste fazer em Quito, por volta dos anos sessenta. No pavilhão da Rio Branco, a dispuseras em espaço menos atravancado pelas estantes. Recordo-me do teu vezo de ali empilhar os livros objeto de tuas consultas e pesquisas, sem esquecer as obras de referência, que preferias ter mais à mão. Faltavam agora não apenas a tua irrequieta pessoa, sentada na poltrona de alto espaldar, senão os teus gestos largos e imprevistos, nem sempre coordenados. Mas, repensando, quiçá houvesse outras diferenças, menos óbvias e, não obstante, tristemente reveladoras por mais próximas da improvisa tribulação. Reporto-me à carência de papéis e a exígua pilha de uns dois ou três livros sem maior importância que jazia à esquerda do tampo da escrivaninha. Com desconforto, ali deparei, meu bom amigo Pedro, a abrupta, inopinada intromissão da doença, com toda a sua cauda de aborrecidas, incômodas, inelutáveis fraquezas.
       Muitas coisas que imaginava encontrar, não as entrevi, nem seria, de resto, natural que as lobrigasse em tão curto intervalo de tempo, acossado pelas perguntas da viúva e um tanto sufocado por impressões várias, muitas delas acima descritas, e todas atinentes ao que denominaria a tua saudosa e remanescente presença naquelas paragens.
        Se incorro no risco de parecer algo repetitivo, me atrevo a apontar o sentimento que me ficou como a memória essencial da dolorosa experiência. Eis que o ingresso no teu refúgio de tantos anos me transmite não a passageira impressão, mas a penosa, ineludível certeza de que falta alguém naqueles cômodos, alguém que abra as janelas, que compulse os livros, que coteje as passagens apropriadas, que carregue um que outro volume para a escrivaninha atopetada de papéis, maços e outros compêndios, alguém que pela simples presença dê significado àquelas coleções de tantos projetos e ilusões, alguém que venha arejar o que agora ameaça transformar-se em recinto quedo e cerrado, úmido e bolorento, em amontoado enfim de obras a que somente a tua pessoa, e mais, a tua personalidade existencial dera sentido e relevância.
       Dentre as minhas confissões, devo agregar e não a contragosto, mais uma: reconheço que procurei abreviar a passagem pelo teu especial e precioso santuário, não só pela inerente identificação dele com a tua pessoa, senão pela apreensão da condição humana, e do caráter melancolicamente veleitário de nossa atividade nessa terra. Também relembrei-me das tuas palavras, em nosso último almoço no restaurante Urich: “Mauro, preciso pensar o que fazer dos meus livros”. A observação me surpreendeu, porque, por primeira vez, intuía no amigo inquietude relacionada com a mortalidade.
       Mas voltemos à visita petropolitana a Thérèse. Por protegê-la demasiado, meu caro Pedro, tu a deixaste por inteiro exposta às vicissitudes dessa adversidade. Nada sabia de contas bancárias, de cadernetas de cheque e outros que tais. Em torno, não mais contidos pelo respeito antes infundido pelo senhor da casa, enxergamos a criadagem, que pressente mudanças, as quais ainda não sabe se deva temer ou prelibar. De todas essas aves de arribação, a que mais me preocupa é o teu antigo motorista que me é sobremaneira difícil entender porque o mantiveste.
      Longe de mim, porém, querer censurar-te por eventuais distrações. Sei do teu amor por Thérèse, e do quanto desejarias que as coisas não tivessem sucedido dessa maneira.
      Na verdade, quem diria, Pedro, que o homem válido e vigoroso, a carregar três sacolas de livros e de encomendas da esposa, a comer com a sólita voracidade o prato de frango na chapa, arroz com brócolis, e a avançar sem cerimônia na travessa de batatas fritas do amigo, e que se despedia com temidos tapas nas costas, que afinal essa criatura bem disposta estivesse votada a desaparecer no espaço de dezoito dias, vítima de o que antes se chamava de leve insulto cerebral, de paralisia da perna esquerda, e da resultante afecção das vias respiratórias ?
      Com efeito, acredito que não estarás de acordo com o burocrático diagnóstico das causae mortis, que alinha o atestado de óbito: “infecção aguda das vias respiratórias e infarto agudo do miocárdio”. Tomando liberdade que me outorga o fatal desenlace, ouso inserir outras causas para essa ocorrência, de todo evitável segundo o meu leigo juízo. A principal terá sido a tua idiossincrática aversão aos controles médicos. Não foi por diversa razão que denegaste o pedido do Dr. Brito da indispensável internação no hospital, onde não só serias melhor e mais apropriadamente tratado, mas também terias assegurada maior possibilidade de sobrevida. Por falar em cousas médicas, a menção do Doutor Brito levanta aspecto sem dúvida interessante para apreciação abrangente da conjunção perversa de fatores que, a meu ver, antecipou a tua morte.
     The grim reaper[1] desvela muitos segredos. Nem eu, nem o teu antigo amigo Rezende sabíamos sequer da existência desse Doutor Manoel Brito. Antes do Presidente Clinton, já eras, portanto, um atilado adepto da compartimentação da informação... A despeito da tua ojeriza pelos discípulos de Hipócrates, cultivaste por muitos anos a amizade do Dr. Brito, a quem recorreste quando do acidente circulatório, e com quem te comunicavas regularmente (para ele, o horário dos telefonemas era o das nove e trinta da noite), além de periódicos almoços no Falcone. Não vás, porém, tomar como censura as indicações que colhi do próprio, ao me vir procurar quando da missa de sétimo dia que fiz rezar por ti. Ateu ou agnóstico que eras, não creio te haja desgostado o ofício litúrgico, sobremodo pela devida homenagem que implicava.
       Fiquei mais do que satisfeito em conhecê-lo, pois logo entrevi uma boa pessoa e amigo desinteressado, que pode ser de muita valia para a Thérèse, tão indefesa diante das armadilhas bancárias e burocráticas, e sem poder recorrer a mais ninguém, pois o Rezende, com os seus oitenta e sete, já não tem mais condições para tanto, nem eu, a mais de mil milhas de distância por contingências (e perseverança) diplomáticas.
      De minha parte, hoje, sete de junho, vou ficando por aqui. Se as maçadas da chancelaria m’o permitirem, continuo amanhã, com o almoço no Urich, em que Rezende e eu, sem disfarçar a sopitada saudade, falamos do amigo ausente. De mortuis nisi bonum, com uma pitada de malícia carioca que não enjeitarias.
      Eternamente – e não há fecho mais adequado para esta correspondência -, do teu amigo de sempre,

 

P.S.  Hás de relevar a eventual numeração dos dias, os hoje, os amanhã, sem aludir aos ontem. Sei que no assento etéreo onde subiste, pouca ou nenhuma atenção se dá a tais precisões terrenas. Encareço, portanto, a tua paciência com esses mofinos pormenores, a que decerto não mais darás importância.

 



[1] O sombrio ceifador,  metáfora para a morte em inglês.

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