terça-feira, 30 de abril de 2013

CIDADE NUA VI -- Estórias Rodriguianas


 
 Atração traiçoeira

 
       Da primeira vez que a vira, nem se lembrava. Havia muitos moradores no prédio, e não costumava prestar atenção neles.  Beirava até o limite da grosseria, pois mesmo quando lhe dissessem qualquer coisa, um comentário que fosse, ou respondia com um muxoxo, desses que querem dizer – e eu lá com isso? – ou então grunhia algo inaudível.
       Euclides não tinha certeza quando realmente se dera conta de sua existência. Talvez tenha sido um dia em que o elevador parou no andar dela.
       Oi...
       O que achou esquisito não foi o cumprimento. Ali, totais estranhos podiam trocar essas saudações, que na verdade não querem dizer nada.
       O que lhe chamou a atenção foi o olhar.
       De repente, os dois sozinhos no elevador,.. Na verdade, havia uma criança também, mas era como se ali não estivesse mais ninguém.  E ela o encarou de modo tão intenso...
       Oi.
        Dizem que os olhos são a janela da alma. Sempre fizera pouco desse gênero de expressão tão batida.
        Naquele momento, no entanto, ele mergulhou fundo naquele olhar. Teve a impressão de que ela lhe acenava com secretas intimidades.
        E, de súbito, o pano baixou, ou melhor, na descida, pararam em mais um andar. Entrou um casal de moradores e lá se foi o clima.

                                                           *

         A partir desse dia, as coisas mudaram.
         No seu JK, por mais de uma vez se pilhou fantasiando com a moça do elevador. E ao descer para o trabalho, ou voltando dele, acalentava a esperança de reencontrá-la
         Volta e meia, pensava nela. Como se fosse um DVD, repetia a cena, até de forma infantil. Sorria com a comparação, porque como uma criança, não tinha noção de medida, enquanto repassava o encontro do olhar à exaustão.
         Até que ela reapareceu.
         Infelizmente, estava acompanhada e, para ele, mal acompanhada.
         Um tipo meio gordo, por quem sentiu grande antipatia, cercara os ombros da moça com o meio abraço do proprietário. Ele achou a atitude despropositada, ainda por cima no espaço de um elevador.
          Irrefletidas, as suas vistas a procuraram. Em vão.
          De esguelha, com jeito de dono, o acompanhante o mediu.
          E num relance, o casalzinho desapareceu na movimentação da rua. 

                                                           *     

          Passaram dias, semanas, até meses.
          Euclides, por fim, animou-se em perguntar do porteiro por onde ela andava.
          Sabia pouco a seu respeito, mas quem sabe, o essencial. Porque era atraente e morava em um andar de cima.
          Sabia também quanto os porteiros, na monotonia de suas existências, se deleitam com os quitutes da vida alheia.  A indagação poderia multiplicar-se no milagre da imaginação de ‘seu’ Antonio, mas ele estava se lixando das consequências. Só queria saber aonde ela fora parar.
          Não demorou muito, o empregado iria situar a sua ilusão.
          Ah! a Edineide ! Bonitinha, né? Casou com o namorado e se mudaram pra Paraíba.     
          Euclides tinha uma teoria. Para ele, a morte não era um acontecimento único. Para ele, antes de sua aparição final e definitiva, ela se repetia em pequenos episódios.  Não tinha dúvida, portanto, que, com a notícia morrera um pouco.

                                                     *      *

Pif - Paf (II)

                                                       
A 33ª.  UPP – Mais segurança ?

         A política de segurança – que começou no Morro Dona Marta e atingiu  seu pico de atenção mediática na retomada das favelas do Alemão  - continua a pleno vapor. Estamos agora na trigésima-terceira Unidade de Polícia Pacificadora.
        A ela está estreitamente vinculada e identificada a administração José Mariano Beltrame na Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. A sua popularidade é decerto merecida, não só pela contribuição à defesa da sociedade civil, mas também por sua seriedade no combate à delinquência.
        Com esta 33ª UPP o governo estadual fecha o cinturão de pacificação da Zona Sul, e dá maior segurança aos próximos grandes eventos programados. Com efeito, as últimas comunidades sob o domínio do tráfico desapareceriam. Trata-se das favelas de Cerro-Corá, Guararapes e a Vila Cândido, no Cosme Velho, quando a desídia das autoridades passadas permitira invadir as matas em torno do Corcovado.
       Saudada como um sucesso – 420 homens das forças de segurança ocuparam a área sem dar um tiro – o surgimento desta UPP não difere dos anteriores.
       A UPP não é, no entanto, uma mágica que livra o Rio de Janeiro dos bandidos. Quanto a isso, todos – e foram muitos – os que assistiram a mediática tomada de posse do Conjunto do Alemão (com direito até a içar bandeiras) terão visto os magotes (mais de trezentos) traficantes e os bandos respectivos que fugiram por uma estrada de terra rumo a áreas ainda não cobertas por unidade de polícia pacificadora.
      Ao trazer o poder estatal de volta a áreas dele derrelictas por decênios – daí a famosa imagem da cidade partida -, esse retorno que contribui para fechar a chaga aberta pelos feudos do tráfico deve ser feito com cuidado.
       Nesse sentido, semelha importante a nota de cautela trazida por Luiz Eduardo Soares e outros especialistas nesta área. A UPP não pode ser encarada como panaceia. A pacificação de uma área não a isenta da presença clandestina do tráfico, nem da ocasional corrupção dos seus prepostos. As próprias UPPs não estão dela livres, como de resto o noticiário tem indicado.
      Por isso, é muito cedo para qualquer oba-oba. O caráter positivo dessa política está na extensão da presença efetiva do Estado. A par das diversas áreas ainda não pacificadas – e o Complexo da Maré, com o recentíssimo episódio de maus-tratos alegadamente dados a um jogador de futebol, constitui uma forte relembrança de que resta muito chão fora do pálio estatal – o enigma que há de devorar essa política está nas forçadas transferência da livre bandidagem para outros bairros ou cidades.
     Se acaso estendesse a UPP a toda parte, tal incluiria os bairros nobres ? Porque ali o transeunte vê muitos cabines da Polícia Militar, mas isto não se traduz em efetiva presença.
     Segundo os moradores verificam a contra-gosto,  o mais comum será encontra-las vazias, como, v.g., a quase imponente construção da PM, na esquina da Praça General Osório, com a rua Teixeira de Mello. Do outro lado, por vezes importunando a gente que passa pela mesma praça, só que do lado da Jangadeiros (e também do mostrengo modernoso que é a ora fechada Estação General Osório) lá se reúne outro grupo, que não inspira a mesma confiança.
    

O Rio Grande está acéfalo no Meio Ambiente ?
  
          Parece piada, mas é verdade. A Polícia Federal prendeu ontem 18 pessoas. Até aí nada de mais. A PF continua a fazer  - e bem – o seu papel.
           No entanto, a notícia é traumática em termos de meio ambiente. Dentre os suspeitos detidos  estão dois Secretários de Meio Ambiente, tanto o do Estado do Rio Grande do Sul, quanto o de Porto Alegre.
           O primeiro se chama Carlos Niedesberge e é do PCdoB (trata-se daquele partido que se apossou da história do  PCB, incluindo na sua propaganda militantes e simpatizantes históricos já mortos  que não podem reclamar de sua inclusão algo forçada em uma legenda surgida de dissidência do Partido Comunista).
           O outro, o da capital, é Luiz Fernando Záchia, está filiado ao PMDB.
           Dois aspectos a notar. Primeiro, o entrosamento entre capital e estado nesse campo do meio ambiente.  Pena que a quadrilha não se interessava pela defesa ambiental. Se de defender se fala, seria a forma mais do que questionável de abastecer os respectivos recursos, através de sua ligação com a indústria e empresários imobiliários.
           Diziam incrementar o turismo, mas a sua atividade criminosa contribuía para livrar o Guaíba, e quem sabe, a Lagoa dos Patos de suas praias...

 
O  contra-ataque  do  PT   

 
          O Deputado Marco Maia (PT/RS) - de que, talvez o leitor se lembre, foi até há pouco presidente da Câmara – veio a público para defender proposta que limita decisões monocráticas (sic) de Ministros do Supremo.  O senhor Maia se refere àquelas liminares que a praxe judiciária obriga a serem concedidas (ou denegadas) por juízes individuais. Esquece-se de acrescentar que tais liminares em geral têm de ser votadas pelo colégio do Supremo (ou de tribunal de alçada inferior).
         O senhor Maia, que parece estar corporativamente interessado na Câmara e em suas prerrogativas, esqueceu-se, quando Presidente, de pôr em votação a emenda regimental já aprovada pelo Senado, e que acaba com o voto secreto nos processos de cassação dos respectivos membros. É um pleito da sociedade civil de conhecer o nome dos deputados que – por exemplo votaram para livrar Jaqueline Roriz da cassação –  permanecem anônimos pelo sigilo da votação.
        Por sua vez, o Senhor Fernando Ferro (PT/PE) fez ataques diretos a Gilmar Mendes, dizendo entre outras coisas: ‘Isso é obscurantismo, autoritarismo da pior qualidade praticada pelo Supremo. (...) (I)mpedir o debate é censura, é uma postura de capitão do mato do ministro Gilmar Mendes, que está desacostumado com democracia.”
        Data vênia, o projeto casuísta tipo Armando Falcão que impede a formação de novos partidos e restringe o tempo na propaganda eleitoral, favorecido pela maioria que apóia  Dilma Rousseff é que semelha mais inserir-se na área cinzenta alvejada pelo Deputado Ferro.
        Entrementes, o deputado Henrique Alves (PMDB/RN) e o senador Renan Calheiros  (PMDB/AL), presidentes de Câmara e Senado,  mantinham um diálogo cortês com o Ministro Gilmar Mendes.
        Muita gritaria, protesto e até proposta de emenda constitucional não deveriam fazer tanta mossa, nem provocar maiores inquietações. No que tange às tentativas de emenda, como elas ferem cláusula pétrea da Constituição, na prática fazem os estragos do vento. Passam, agitam mas, por causa da solidez dos alicerces, a liberdade harmônica dos poderes fica preservada.
        Para tanto, há pareceres de grandes juristas. O resto ... é o resto.

 

( Fontes:  O Globo,  Folha de S.  Paulo )  

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Notícias direto do Front

                                    
A Itália tem um governo !

 
       Enrico Letta prestou juramento ontem, domingo, 28 de abril, perante o presidente Giorgio Napolitano, como Primeiro Ministro. Conhecido pela habilidade política,  seu gabinete é a coalizão dos dois principais partidos italianos, o Partido Democrático, de centro-esquerda, encabeçado por Pier Luigi Bersani,  e o Povo da Liberdade, de centro-direita, cujo principal líder é o eterno Silvio Berlusconi.
      Para cimentar essa difícil união, Letta indicou como vice-primeiro ministro e ministro do Interior, Angelino Alfano, que é secretário da aliança política encabeçada por Berlusconi.
      Letta, um moderado, integrara a Democracia Cristã (DC) até a implosão da antes formação majoritária no parlamentarismo italiano, e é considerado jovem diante dos padrões peninsulares (nasceu em agosto de 1966).
     Começa o próprio trabalho diante da insatisfação da ala mais à esquerda do respectivo partido, com a forçada coabitação com a bancada de Berlusconi.
     Letta carecerá de muito energia e sagacidade para contornar os escolhos e arrecifes que há de defrontar e não só do descontentamento de parte da bancada da liga das esquerdas. Decerto, eles têm sobejos motivos para desconfiarem da associação com Berlusconi. Nessa tarefa, Enrico Letta carecerá da astúcia que não teve Massimo D´Alema, ao se deixar envolver pelo Cavaliere (alcunha de Berlusconi), e da firmeza que não evidenciara Massimo Prodi, na seguinte epifania do governo das esquerdas.
    É um senhor desafio.  

 
O  Dilema  Americano na Síria

 
     Ao contrário da desenvoltura da Rússia em continuar apoiando regime que, à vista d´olhos, encolhe territorialmente,  causa estranhável assombro  a hesitação da Administração Obama em dar apoio de maior eficácia à causa rebelde.
     Quiçá,  a única explicação para tal continuado titubeio se prenderia ao crescimento da ala islâmica mais radical na liga dos revolucionários sírios. Os Estados Unidos tem dúvidas em apoiar radicais nesse campo. Talvez um dos poucos atrativos do regime alauíta para muitos dos admiradores do atual governo em Damasco (e não faltam na mídia ocidental) é  seu caráter laico, avis rara no mundo árabe, embora a última reforma constitucional teria aberto as primeiras exceções à  norma.
    Essa excepcionalidade do regime sírio, diante das transgressões aos direitos humanos e de seu caráter despótico, pode parecer  enfeite de bolo, de mais do que dúbia validade.
    Por outro lado, não deveria despertar espécie que em país muçulmano – a própria etnia alauíta, minoritária mas até hoje dominante na Síria, é indicação disto – as seitas islâmicas participem do governo.
    O temor, decerto, é o radicalismo. No entanto, pela extensão do conflito, e a dificuldade enfrentada pela parte rebelde, ser-lhes-á difícil enjeitar o apoio proveniente desta linha, a que não sói faltar o caráter aguerrido.
    No entanto, a sovada máxima o inimigo do meu inimigo é meu amigo deveria pesar nas considerações do Ocidente e dos Estados Unidos. O Irã dos ayatollahs e a Rússia são os principais aliados da ditadura de Bashar al-Assad. Ambos não têm escolha no partido que tomam. Além de aumentar-lhe o isolamento com relação ao mundo árabe e islâmico, Teerã também veria o ocaso do Hezbollah, ao se descobrir  sem mais acesso à ajuda do regime xiita de Ali Khamenei; e o Kremlin, corre o risco de perder a sua única base naval de águas quentes, com a queda do aliado Bashar.
     Protelar a inação de parte americana poderá produzir dois resultados: ganhar a desconfiança e a inimizade da Liga Rebelde; e não associar-se ao triunfo desta, quando o regime alauíta implodir pelo paulatino acúmulo de suas derrotas nas diversas frentes de batalha.
     A sabedoria popular aconselha que não se faça ameaça se não se tem a intenção, ou a força de cumpri-la. Como é que fica Barack Obama diante desta situação, à vista de sua anterior postura sobre o emprego de armas químicas ?
 

 
( Fontes:  Folha de S. Paulo, International Herald Tribune )

domingo, 28 de abril de 2013

Colcha de Retalhos A 16

                                 
Chancelaria não é sucursal política

          Provocou espécie na imprensa e em meios diplomáticos a suposta condição colocada pelo Brasil de que o Paraguai só volta a ser membro pleno do Mercosul se aceitar Caracas.
          Tal se choca à condição anterior que vinculara a volta do Paraguai ao grupo à realização de eleições livres. Como Horacio Cartes, do partido Colorado, foi eleito regularmente, o alegado empecilho não mais subsiste.
          No entanto, o discurso da Chancelaria – ou o que passa por isso – mudou. A operação coordenada por Dilma Rousseff de aproveitar o pretexto do impeachment relâmpago do Presidente Fernando Lugo para suspender o pequeno parceiro Assunção, e inserir a Venezuela (cujo acesso o Paraguai se recusara aceitar) agora passaria a nova fase.
         Suspenso de forma questionável do Mercosul, o Paraguai, a despeito de haver preenchido o requisito  das eleições livres, terá de arrostar mais outro, não obstante seja membro fundador do Mercosul.  Agora, a vara é colocada em plano superior. Trocando em miúdos, o Paraguai só volta ao Mercosul se aceitar Caracas.
         Quem utiliza meios não-convencionais em diplomacia – e quem rege esta música sabemos exatamente quem é – corre o risco de ter de engolir respostas convencionais. O Partido Colorado é havido como opositor do chavismo. Segundo o presidente-eleito, Horacio Cartes, há uma ‘predisposição’ no Senado de aprovar “o que for bom para o país”.  
        E se a bancada colorada no Senado, reforçada pela eleição presidencial, se recusar a cooperar ? Como ficará juridicamente a situação de um membro fundador (Paraguai) que não pode ser reintegrado em posição da qual fora questionavelmente afastado porque estaria obrigado a aceitar a participação da Venezuela, que entrara no Mercosul pela vacatio legis adrede inventada pela grande amiga de Chávez ?

 
Deficit nas Contas Externas

         As contas brasileiras com o exterior estão batendo recordes. No entanto, não é algo positivo, pois os recordes podem ser quebrados no bom ou no mau sentido.
         A balança comercial, cuja tendência  no passado era para ser em geral positiva, desta feita, é negativa. Só a diferença entre exportações (em queda) e as importações (em alça) monta a 5,2 bilhões no primeiro trimestre. Além disso, a gastança dos turistas brasileiros no exterior atinge 6 bilhões, enquanto as remessas de lucros e dividendos chegam a sete bilhões.
         Por força do fraco desempenho da economia, com a diminuição dos investimentos pelas empresas nacionais, a movimentação macro-econômica não atraíu tantos IEDs (investimento estrangeiro direto) quanto no passado, e somaram apenas US$ 13,3 bilhões, insuficientes para contrabalançar o déficit agregado que ficou em US$ 25 bilhões.
         Há muitos fatores que contribuem para este saldo negativo. A desnacionalização da indústria automobilística – cujas vendas muito dependem das chamadas desonerações fiscais – é um peso permanente, devido à irresponsabilidade de governos do passado. Não foi, por acaso, que as montadoras nacionais desapareceram. Com isso, trimestralmente, todo o lucro auferido pelas estrangeiras é transferido para Europa, Ásia e Estados Unidos, onde estão as matrizes das marcas aqui instaladas.
        Ajudamos, assim, as matrizes de além-mar a vencerem a crise que ora atravessam... Aliás, o Brasil goza da dúbia honra de ser a única economia de peso que não tem  indústria automobilística própria. Este sistema de “feitoria”, a que já me referi por mais de uma vez, se reflete em vários aspectos negativos. Pesquisa e experimentos para o avanço na tecnologia ficam para depois, e tampouco se pensa em proteger o brasileiro das descargas poluentes dos motores. Na verdade, a defasagem em termos de proteção ambiental com relação ao prevalente no chamado circuito Elizabeth Arden é um escândalo. O governo brasileiro é decerto corresponsável, por não obrigar as montadoras a estabelecerem padrões de proteção ambiental que estejam nos níveis de seus países, no que respeita aos veículos montados no Brasil. Ou será que os usuários na América do Norte, Europa Ocidental e Ásia devem merecer maior atenção quanto aos efeitos poluentes das descargas automotivas do que o brasileiro ?
         A benigna negligência no capítulo dos governantes só foi quebrada no governo Collor, quando o então presidente reclamou do atraso tecnológico, que tornava as viaturas verdadeiras ‘carroças’. Por esta puxada de orelha, houve por um tempo o esforço das montadoras em melhorar as viaturas em termos de tecnologia. O outro interesse presidencial na matéria foi de Itamar Franco, seu sucessor no Planalto, que insistiu pelo retorno do Fusca. A vontade presidencial foi também aí atendida, embora com resultados decepcionantes, porque o sentimentalismo não tem condições de modificar as condições do mercado.     
         Voltando às causas da queda nos investimentos, a retomada da inflação é sem dúvida debitável  à Administração de Dilma Rousseff, que parece acreditar poder domar o dragão com recursos retóricos. A falta de respeito a compromissos fiscais, a posição subalterna atribuída ao Banco Central – que é a principal arma para manter a estabilidade da moeda – e estratégia econômico-financeira que pende para o amadorismo – tudo isso está na raiz do baixo crescimento do PIB, além do descontrole nos preços.
       É claro que o melhor seria para manter o respectivo equilíbrio nas contas externas que dependêssemos apenas dos próprios meios. Como isto não se afigura possível na presente conjuntura, manter a economia com o dever de casa feito é condição para atrair o investidor estrangeiro. 
        Como assinalado oportunamente, a paralisia nas inversões – eis que se destinam a objetivos de médio prazo – deve bastante à desordem institucional introduzida pelas desonerações fiscais. Ao invés de combater a carestia com medidas de alcance geral – que tal reformas dignas desse nome ? – Dilma Rousseff pretende aplicar uma espécie de foquismo que se em guerrilha não funcionou, muito menos há de progredir em ramo onde a previsibilidade e a estabilidade são fundamentais.
         O leitor há de relevar a extensão desses comentários. No entanto, semelham necessários para colocar os maus resultados em um contexto inteligível. Também em economia as coisas não acontecem por acaso.

 
Projeto casuísta

          O projeto de lei que a situação deseja fazer aprovar pelo Congresso – e para tanto se tem servido de todos os meios – seria aprovado com sumo louvor por Armando Falcão, na versão ministro da ditadura militar, pois no seu deslavado casuísmo não entreveria muita diferença com as medidas do então regime para dificultar a campanha da oposição, na época defendida pelo MDB.
          Hoje o PMDB não está do lado do povo, o que não provoca surpresa, eis que essa virtual coligação de partidos estaduais nada mais tem a ver com o partido de Ulysses Guimarães.
           É melancólico que Dilma Rousseff favoreça tal medida, cujo casuísmo até um Senador petista, Jorge Viana, reconhece. Para o respeitado Senador – que se dissociou na tribuna da ‘reforma’ – o PT age de forma amadora e se afasta de aliados.
           Não só como político do Acre, Viana afirma que “o surgimento de um partido com Marina tem que ser saudado”. No seu entender,  um partido que tanto sofreu com o casuísmo  não poderia valer-se desse gênero de medida.
           Ao que parece, Dilma não deseja correr riscos. Pelo projeto que dificulta a criação de novos partidos, ela se reserva na TV a maior fatia histórica em termos de eleições presidenciais. Se lograr o seu escopo, passará a ter, segundo a Folha,  quinze minutos e dezoito segundos em cada bloco de 25 minutos, vale dizer, 61% do tempo total.
          O  Ministro Gilmar Mendes suspendeu sua tramitação no Senado – ela já foi aprovada na Câmara – ao conceder a liminar.Não por acaso, o ministro do Supremo vê no projeto o objetivo ‘casuístico’ de prejudicar minorias.
          E para que se tenha idéia desse prejuízo, alinhem-se os tempos alocados por D.Dilma aos possíveis candidatos da oposição: Marina teria dezenove segundos, quatro a mais do que Enéas em 1989; Aécio Neves (PSDB) ficaria com 5 minutos e treze segundos; e Eduardo Campos (PSB) caberiam dois minutos e 24 segundo.
          O Planalto teme o aparecimento de muitos candidatos com peso eleitoral no primeiro turno. Julga que o aumento de rivais pode levar a eleição para o segundo turno. Por isso, como nos tempos da Gloriosa, o novo PT – que, como Dorian Gray, se tivesse um quadro secreto, não mais se reconheceria com o partido generoso e ético de outrora – tudo fará para aplanar o próprio caminho, na sua convicção hodierna de que os fins justificam os meios.

 
Desabamento do Rana Plaza

           O desastre no edifício Rana Plaza, em Daka, no Bangladesh, matou pelo menos 304 trabalhadores. Até o momento, e o relógio corre contra a probabilidade de que se salve um número maior, 72 pessoas foram retiradas vivas dos escombros.
          Embora tenha consentido na existência de tais fábricas – cujas condições de trabalho parecem vir do século XIX e das páginas do Capital, de Marx – o governo agora não considera a ocorrência um acidente, mas assassinato (na palavra do Ministro da Informação).
         Nessas sweat-shops[1], destinadas a preparar roupas de baixo custo para fim de exportação, as condições de trabalho se aproximam das prevalentes nos tempos da servidão.
         Houve vários indícios de que o prédio poderia ruir, mas os patrões fizeram ouvidos de mercador.
         Na capital, fúria há longo tempo contida invadiu as ruas. Milhares de trabalhadores na indústria do vestuário puseram fogo a pelo menos duas fábricas do ramo, além de danificarem mais de 150 veículos com lanças de bambu.
         O Primeiro Ministro Sheikh Hasina determinou as prisões de Sohel Rana, proprietário do Rana Plaza, assim como dos donos de quatro ateliers de roupa, que operavam nos pisos superiores do prédio de oito andares. Os manifestantes pedem a pena de morte para Sohel, assim como os proprietários das fábricas nos andares de cima do edifício.

 
Putin, o populista     

         Como se sabe, o Presidente da Federação Russa, agora no exercício de seu terceiro mandato, não desdenha afrontar interrogatórios – maratona por populares, em que veicula a própria visão sobre a realidade do país.
         Gospodin Vladimir V. Putin negou ‘que a gente vá para trás das grades por motivos políticos’.  E aduziu, com a sua habitual marmórea fisionomia: “As pessoas são condenadas não por causa de suas opiniões ou ações, mas sim por desrespeitarem (abusing) a lei.”
        Essa visão idílica do estado de coisas na Rússia se choca, no entanto, com os fatos. Recentemente, um grupo de monitoramento das eleições, Golos, foi multado em trezentos mil rublos (cerca de nove mil e seiscentos dólares) por violar  lei que requer o registro como agente estrangeiro de ONGs atuantes na política, e que porventura recebam contribuições financeiras do exterior.
        A tal lei, de feitura recente, é feita para limitar (e intimidar) as críticas e sabotar-lhes a credibilidade. A sua linguagem é tão vaga, que pode ser usada contra qualquer ONG. Por outro lado, o rótulo de “agente estrangeiro” em um país que vê com desconfiança qualquer ação vinda do exterior tende a tornar suspeita mesmo uma ação tendente a defender a sociedade russa, como apontar fraudes nas eleições.
        Putin também defende a ação contra Alexei A. Navalny. Apesar da objetividade do processo, consoante o senhor do Kremlin, o que tem mostrado as deliberações em Kirov é justamente o contrário. Testemunha-chave da acusação, Vyacheslav Opalev reconheceu perante a corte haver sido forçado a uma transação com Navalny, e não por haver pactuado (colluded)  com ele, como havia declarado em documento assinado do ano passado. De início, os investigadores estatais tinham considerado as acusações contra Navalny como sem base. Por motivos não esclarecidos voltaram atrás e reapresentaram a ação dois meses depois.
       Opalev, que se contradisse várias vezes no depoimento no tribunal, alegou ‘stress’. Para reforçar a acusação, os promotores pediram que o juiz do processo lesse o documento assinado por Opalev no ano passado.
       Falando para a corte, Navalny acusou Opalev de dar falso testemunho contra ele “para evitar ação penal no caso em que a administração Kirov lhe imputara a responsabilidade.”
       Como não se desconhece, a fundamentação da acusação do Estado Russo contra o ativista Navalny é manifestamente falsa (bogus).  No entanto, tais pormenores não semelham afetar a avaliação das acusações contra o blogueiro como “extremamente objetiva”. Como esta é a opinião do Presidente Putin, só um milagre impedirá a condenação de Alexei Navalny, que há tempos atrás, diante de largo comício, qualificara de ladrão a Sua Excelência.

         

 (Fontes:  O Globo, Folha de S. Paulo, Estado de S.Paulo, International Herald Tribune) 



[1] Usinas de suor, como ainda há muitos, sobretudo no Terceiro e Quarto Mundos (para servir o Primeiro)

sábado, 27 de abril de 2013

Poder e Corrupção

                                           
          Nada como o passar do tempo para verificar da perene validade da máxima de Lord Actono poder corrompe, e o poder absoluto, de maneira absoluta.
         Não carece de ir muito longe para aferir a sua pertinência.
         Lembram-se acaso do PT, de seus nobres causas e propostas quando na oposição?  Se nem todas foram acertadas – ressaltam neste capítulo a negação da assinatura da Constituição de cinco de outubro de 1988 e a histérica campanha contra o Plano Real – haveria então partido político mais aguerrido e mais ético ? Podia-se, decerto, discordar do Partido dos Trabalhadores, mas seus militantes se empenhavam no bom combate, seja, v.g., contra os trezentos picaretas no Congresso, seja contra os malefícios do coronel José Sarney no seu vice-reinado do Maranhão.
        Quando Luiz Inácio Lula da Silva ascendeu ao mando, com a sua campanha de paz e amor, se em termos econômico-financeiros teve o bom senso de desdizer os intuitos pregressos e adequar-se às conquistas da administração anterior – e crédito seja dado não só ao líder histórico, mas também aos gestores Antonio Palocci e Henrique Meirelles – os anos posteriores mostrariam que o poder  seria pernicioso para o P.T.
        Quem acaso esqueceu a imagem da aceitação displicente de propina de três mil reais por Maurício Marinho, dirigente da ECT (Correios) e militante do PTB ? Emblemática da corrupção invasiva, a exposição logo se transmutaria na crise do mensalão, que abalou as estruturas do poder petista, e que demandou o sacrifício propiciatório do Chefe da Casa Civil, José Dirceu, que teve não só de renunciar ao seu “governo”, mas não tardaria em ser cassado por uma Câmara assustada ?
        A pergunta que hoje acossa a muito militante sincero do P.T.: por que se evaporou tão rápido o caráter ético do Partido ? Não há negar que ainda nele existam  aqueles que vêem com nostalgia o comportamento anterior, mas tampouco alguém se atreveria a dizer que tudo continua como dantes, nos bons tempos de oposição de princípio ?
        Por onde anda a chamada faxina ética? Malgrado D. Dilma com ela lidasse de forma ambígua, enjeitando-lhe o propósito moralizante, mas aceitando os pontos nas pesquisas, a estranha dissociação se confirmaria quando da manutenção do mui amigo Ministro Fernando Pimentel.
        A postura ainda ficou mais clara com o esvaziamento da Comissão Ética da Presidência da República, que forçou a renúncia do Ministro Sepúlveda Pertence.
         Não há combate à corrupção pela metade. Os diversos escândalos que no Executivo e no Legislativo lhe tem assinalado uma inquietante ubiquidade têm funcionado quase sempre como se a exposição do malfeito – e o eventual afastamento do cargo – constituísse o processo completo.
        Se se mantém a impunidade – de que há exemplos gritantes tanto no Executivo, quanto no Legislativo – uma das razões será a falta não de castigos exemplares, mas de qualquer castigo digno desse nome quando são individuados escândalos.
        A exposição do delito e o afastamento do cargo representam apenas uma das faces da reação da sociedade. Agir como se tal bastasse – como é o comportamento habitual – minimiza a falta cometida, e não tem qualquer efeito deterrente para o futuro.
       A prática delituosa – qualquer que ela seja – continuará a atrair os picaretas e o público do artigo 171, se eles continuarem a fruir desse tratamento light, que não se cinge a privar-lhes da liberdade, mas também é quase um incentivo à reincidência.  
        O programa governamental Minha Casa Minha Vida vaza corrupção por todo lado. O preço dessa prática é alto, e não se limita às infrações penais, e à sua malversação. O ralo imundo da corrupção, ao consumir em propinas, comissões e quejando, o que se destina a dar moradias dignas às classes desfavorecidas, cerceia na prática o programa e o deforma em moradias mal-construídas, verdadeiros aleijumes.
       Agora nos chega a notícia de que pequenos construtores de moradias populares pagaram propinas de 10 % a 32% do valor do imóvel.  Tais pagamentos (o chamado pedágio) seriam negociados pela RCA, firma de ex-servidores do Ministério das Cidades, e que está sendo investigada por fraudes no programa.
       A corrupção sistêmica não é tão bizarra quanto querem fazê-la parecer. Por um lado, ela é responsável em que o arrocho do impostômetro – a brutal carga que se achega dos 40% a todo brasileiro – tenha um pífio retorno. A falta de saneamento básico -  e a prevaricação de muitos prefeitos – se traduz no acréscimo da dengue e em outras doenças endêmicas.  Também a ganância dos corruptos se traduz em rachaduras nas moradias populares, em falta de básicas condições de residência (ruas pavimentadas, esgotos, escolas, etc.).
        Muitos artistas se prestam de bom grado a expor suas risonhas e muita vez belas fisionomias, na propaganda oficial. Há os campeões do gênero, que serviram a todos os governos, inclusive o militar.
        Esta dissociação da realidade faz parte do fenômeno. E será motivo para comentário ulterior.

 
(Fonte: O Globo )

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Confronto entre Supremo e Congresso

                             
           Serve a poucos a polêmica entre o STF e o Legislativo. Decerto não ao interesse da Sociedade e da Democracia.
           Iniciada pela aprovação, a toque de caixa, pela Comissão de Constituição e Justiça de uma nova Proposta de Emenda à Constituição, o desenvolvimento da questão e da controvérsia expôs alguns fatos comprometedores.
           De início, a CCJ deu inútil barretada a membros que lá não mais deveriam ter guarida ao chancelar a tal PEC 33. Sob o golpe inesperado, os membros do STF questionados pela imprensa não disseram que o rei está nu.
           Com a pausa necessária para a reflexão, dois juristas, um mais adstrito ao aspecto constitucional, outro às peripécias da política, mostraram que a suposta ameaça à autonomia do STF não existe.
           No particular, semelha inconteste a análise do professor Pedro Estevam Serrano. No depoimento, publicado pelo Estado de S. Paulo, diz ele que a proposta padece de inconstitucionalidade.  Com efeito, o inciso III do parágrafo 4º  do artigo 60 da Constituição proíbe a deliberação, pelo Congresso, de emenda constitucional tendente a abolir a separação de poderes.
           Nas suas palavras, “além de impedir a extinção da separação, a Constituição veda, por cláusula pétrea (meu o grifo), a restrição de sentido ou a alteração na divisão de funções que modifique a competência originária.
           “Ao Supremo Tribunal Federal compete interpretar de forma definitiva as normas constitucionais. Procurar restringir esta competência, mesmo que por meio de emenda, fere frontalmente a cláusula pétrea, imutável, de nossa Constituição.”
           Ora, como demonstra o professor Serrano, foi justamente o que fez a CCJ ao aprovar por unanimidade a PEC 33, eis que tal emenda restringe de forma inconstitucional a esfera de competência do STF estabelecida pela Constituição.
           Pergunta-se, por oportuno, aonde foram parar os expertos em direito em constitucional na CCJ. Sabemos que as decisões no Congresso não devem tardar pelos estreitos prazos que Suas Excelências se  estabeleceram, ao limitar, na prática, a atuação dessa colenda assembleia e de suas comissões às quartas-feiras. Mas é pelo menos embaraçoso para uma comissão que se pretende a mais relevante da Câmara vir a aprovar, de afogadilho, como em corte canguru, uma proposta eivada desse vício redibitório.
           Por outro lado, talvez o Ministro Gilmar Mendes não devesse interferir em questões internas no Congresso, como tramitação de emendas. Daí, talvez empurrado pela inércia congressual e o recurso da oposição – diante da manifesta inconstitucionalidade da iniciativa do Governo Dilma em dificultar a formação de partidos, sobretudo os que não sejam legendas de aluguel e que ponham em risco a sua antojada eleição no primeiro turno – exista similar fundamento para a estranheza dos presidentes de Câmara e Senado.
         Tomando a liberdade de citar uma vez mais mestre Pedro Estevam Serrano, “ se por um lado é verdade que nossa Suprema Corte tem invadido competência do Legislativo em diversas decisões, (...) há que se considerar que não é por meio de inconstitucionalidades não republicanas que nosso Legislativo resolverá o problema.”
         Todo esse cocoré em torno do ataque ao Supremo e suas competências, na verdade não teria existido se a CCJ houvesse agido com a atenção e a responsabilidade que ela deveria ter exibido, para que o seu parecer no futuro mantenha a esperada credibilidade. Ao comportar-se da forma descrita, apenas se deixou instrumentalizar por quem, por razões inconfessáveis, aproveita tentar fazer o circo pegar fogo.
         Ainda bem que temos juristas dignos desse nome. Pois as demais reações, seja dos ministros do STF, seja de congressistas, traem respostas fora de propósito, que não se atêm ao que realmente importa.
         Antes de manifestar-se, é importante que as pessoas, sobretudo aquelas de responsabilidade na matéria, pensem e se expressem de forma lapidar.

 

(Fontes:  Estado de S. Paulo,  O Globo )

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Cartas ao Amigo Ausente


                                       Nota  Explicativa

 

        Pedro Carlos Neves da Rocha morreu no outono de 2006. “Mauro, preciso pensar o que fazer dos meus livros”.  Por um instante, olhei intrigado para ele. Válido e lépido como sempre, atribuí a frase à circunstância de que faria oitenta e dois em uns poucos dias.

       E, no entanto, foram as últimas palavras que dele ouvi.

       Éramos colegas de profissão. Ambos diplomatas e sobretudo irmãos nos pendores culturais. Mais velho do que eu, a amizade se consolidara na alturas de Quito. Se o gosto pelos livros já trouxera comigo, lá ele me apresentou às grandes livrarias de seu mapa de encomendas, distribuídas pelos Estados Unidos e a Europa. Se tudo que conhecimento fosse o interessava, tinha especial devoção pelo Humanismo e a cultura da Antiguidade Clássica. Com prazeroso ânimo, procurei seguir-lhe as pegadas.

      Mais tarde, quando eu vivia no Rio ou por aqui passava, almoçávamos no centro da cidade. O encontro marcado era sempre em um sebo. Depois de inspecionar as estantes poeirentas, rumava para o restaurante com Pedro e Antonio Rezende, professor de filosofia da PUC, completando o trio.

     Por isso, dez dias depois do último almoço, quando ouvi a voz de Rezende ao telefone dizer-me “Mauro, tenho uma notícia muito triste para lhe dar” soube que perdera Pedro, meu inestimável interlocutor de quarenta anos.

     As cruéis Parcas cortaram o fio da vida e eu já não tinha com quem trocar ideias, seja nos almoços, seja por carta ou telefone, acerca de uma agenda intelectual de tantos anos. 

     Quando voltei para a Grécia, em maio de 2006, a presença de Pedro se tornou constante. Não havia no mundo cidade mais propícia do que Atenas para evocar a cultura clássica, e em especial Aristóteles, sobre quem escrevera meu amigo o livro ‘A Crítica do Animal Político’.

      As Cartas ao Amigo Ausente são decorrência daquelas jornadas. Essa estranha correspondência terá sido a maneira por mim encontrada para lidar com o brutal silêncio.

       Ora tenciono publicá-las em intervalos semanais.

      

 

                               Cartas ao Amigo Ausente

 

                                                   I  

 

       Meu mui prezado e bom Amigo Pedro,

 

        Ao retomar nossa correspondência, me valerei de uma tantas liberdades. Primo, confiante de que doravante prescindes do correio, abstenho-me de postar essas cartas. Secondo, me permitirei dizer-te coisas, partilhar impressões e antecipar projetos, temores et al. que a tua condição anterior me desaconselhava fazer.
        Quando recebi na terça-feira o telefonema do Rezend, que me dizia ter notícia muito triste para comunicar, invadiu-me a quase certeza da tua partida. Então, na sexte-feira, fiz, em sentido inverso, a viagem de que foste, por esses anos afora, assíduo freguês.  Após desembarcar na vasta e excêntrica rodoviária, tomamos um taxi e rumamos, por primeira vez, para a casa da Visconde do Uruguai, 128. Lá chegamos, Ana e eu, pelas dez e meia. Como desconhecíamos o local, batemos na porta errada, até que assomou uma empregada para nos indicar a entrada. Thérèse, que nos esperava, não tardou em aparecer. A residência, com o pátio interno, e a disposição térrea recordava o solar  da avenida Barão do Rio Branco, que visitara na década de noventa.
        Conversamos com a tua amada esposa por cerca de duas horas. A princípio, ela nos conduziu pelos cômodos da mansão, e nos relatou as circunstâncias dos teus últimos seis dias de vida, a partir do problema circulatório que se revelou na terça-feira. Excetuadas as dependências íntimass, Thérèse nos mostrou até o chamado quarto de hóspedes, para onde te levaram depois que voltaste do hospital.
       Devo confidenciar-te que, pela dificuldade em dialogar com ela, por força da surdez, o histórico desses dias fatídicos se me afigurou algo nebuloso e mesmo contraditório em certos aspectos. Mais tarde, como saberás, tive oportunidade de esclarecer alguns tópicos, mas me resta a incômoda suspeita de que jamais hei de inteirar-me de o que realmente aconteceu naquelas agourentas jornadas.
       Não é, contudo, o momento de discutir de tua relativa solitude, e das consequentes limitações assumidas com a escolha das alturas petropolitanas. Retornemos, pois, àquela manhã ensolarada. Infelizmente, como não ignoras, o sol não é um visitante bem-vindo e costumeiro nas dependências decoradas com tamanho esmero e intensidade por tua mulher. Dessarte, além do ar sombrio a pairar sobre o ambiente, a fria umidade e a sensação  de arraigado mofo perpassa as diversas e contíguas salas.
       Em saleta próxima da cozinha, Terezinha nos expôs as suas inquietudes e perplexidades. Senti-a de todo despreparada diante de tua subitânea saída de cena. Disso me ocuparei com mais vagar oportunamente. Por isso, preocupou-me deveras a sua situação, mormente se a realizarmos submetida às vistas atentas  e intrusas de uma criadagem que sentes onipresente. Como disse Ana, ali as paredes têm ouvidos.
       Após certa hesitação, que atribuo mais a seu estado de espírito, que a uma negativa personalizada, Thérèse se decidiu a mostrar-me a tua bibilioteca.Admirei o sobrado que fizeste construir sobre a garagem e, com inegável emoção, subi os degraus da escada disposta lateralmente à construção. É  um percurso suave, que culmina em alpendre. Sob o dístico Humanitas e a companhia da coruja de Pallas Athena, o eventual visitante enceta os poucos passos a separá-lo da porta de entrada, que consiste de duas batentes venezianas cerradas por frágil fechadura.
        Talvez por causa da comoção, não posso dizer-te hoje se estive em três ou quatro aposentos. Que importância terá esse detalhe para ti, que tão entranhadas terás na memória aquelas dependências ?  Como hás de recordar-te, a última vez que estive na biblioteca ainda fora no pavilhão da casa da avenida Rio Branco.  A minha primeira impressão foi a de deparar recinto não tão amplo quanto o anterior. Não sei se pelo incremento físico dos volumes dispostos ou empilhados nas prateleiras, ou se por limitações relativas de espaço, o ambiente ora me pareceu menos aberto, quiçá mais confinado.
       Tampouco era acolhedora a predominante umidade, causada pelas janelas cerradas e a decorrente falta de ventilação. Já como que se formara um bolorento véu, pelo fechamento, por mais de semana, daquele local de leitura e estudo. A tua ausência, de início, devido à doença. e, em seguida, pela fatalidade, conformara, material e figurativamente, uma atmosfera opressa, quase inóspita, o oposto dos livres ares que as tuas atividades livrescas soíam proporcionar. É bem verdade que o clima de Petrópolis não se distingue pela secura.  Todavia, a tua movimentação entre aquelas paredes e a própria abertura não só para as correntes do saber cuidou em trazer para o estimado reduto o afluxo necessário para oxigenar as miríades de páginas que congregaras ao longo dos anos.
        Não sei se igualmente certa timidez ou, melhor falando, algum pudor me impedia de adentrar-me mais a fundo nos teus caros e particulares domínios. Como poderia, tão de chofre, dissociar-te a presença das profusas estantes e das pilhas de volumes que se espalhavam até mesmo pelo compartimento sanitário ? Descobria-me algo constrangido, como se estivesse me intrometendo na intimidade de uma biblioteca que sempre considerara a extensão natural da tua pessoa, tão estreitamente ela condicionou a tua âßïò. Assim me explico o inconsciente acanhamento, que me cerceou no perlustrar as muitas – e convidativas – lombadas.
       Por mais, no entanto, que te sentisse a acompanhar-me na incursão, não me escaparam determinados títulos, como, v.g., os quatro tomos da enciclopédia sobre o ateísmo, os in-octavo do teu admirado Pierre Bayle, algumas traduções setecentistas de Diogenes Laertio, e uns poucos mais. Demasiado poucos, em verdade. Desconheço se para tanto também contribuíu a voz estrídula de Terezinha, a perguntar-me mais do valor venal da coleção do que da qualidade intrínseca de cada livro.
        Curioso, procurei pelo precioso exemplar da edição quinhentista de Manuntius de Diogenes Laertes, que me confiaste não faz muito haver sido a tua mais custosa aquisição. Perscrutei a prateleira das compras do bibliófilo, em que por prezares mais o espírito do que a matéria,mui raramente as praticaste. Espiei, convenhamos que de modo dessultório, nas fileiras clássicas e nas biográficas. Debalde. Aonde terás metido essa jóia editorial, só se saberá após meticulosa classificação do teu acervo.
       Tampouco dei com os arquivos de notas e registros. De feitio propenso à reserva, jamais mencionaste como organizaras a tua erudição, a colação das várias obras, os respectivos títulos e os nomes dos autores, as citações ou, consoante a maneira de outros tempos, a coleção de common places. Intelectual formado à antiga, abominavas a era do computador e da internet. A despeito da fadiga e da azáfama mesmo que a velha máquina de escrever Olivetti não podia evitar, nunca sequer consideraste a hipótese de servir-te da informática como instrumento de trabalho. Se não podia concordar com tal postura, pelo seu caráter epimetéico, sempre respeitei a tua convicção.  Homem das primeiras décadas do século vinte, não admitias sobretudo o novo paradigma no sentido kuhniano que o computador trouxera para o mundo das letras e da cultura. Não ignoramos o destino de tais resistências, mas jamais te neguei a admiração que compete aos desassombros do velho do Restelo.
        Enquanto estiver por essas bandas, guardarei zelosamente as tuas laudas, todas datilografadas na indefectível Olivetti, com que partilhaste comigo a tua experiência e me apontaste tantos caminhos nas ínvias florestas da profusa produção livresca.
       Eis-me a enveredar por nova digressão. Que tais questões fiquem para mais tarde, e retornemos a tua citadela.
        Depois das buscas infrutíferas, empreendidas com o já mencionado ânimo meio descorçoado e irresoluto, topei, em um canto da biblioteca, com a famosa mesa, que mandaste fazer em Quito, por volta dos anos sessenta. No pavilhão da Rio Branco, a dispuseras em espaço menos atravancado pelas estantes. Recordo-me do teu vezo de ali empilhar os livros objeto de tuas consultas e pesquisas, sem esquecer as obras de referência, que preferias ter mais à mão. Faltavam agora não apenas a tua irrequieta pessoa, sentada na poltrona de alto espaldar, senão os teus gestos largos e imprevistos, nem sempre coordenados. Mas, repensando, quiçá houvesse outras diferenças, menos óbvias e, não obstante, tristemente reveladoras por mais próximas da improvisa tribulação. Reporto-me à carência de papéis e a exígua pilha de uns dois ou três livros sem maior importância que jazia à esquerda do tampo da escrivaninha. Com desconforto, ali deparei, meu bom amigo Pedro, a abrupta, inopinada intromissão da doença, com toda a sua cauda de aborrecidas, incômodas, inelutáveis fraquezas.
       Muitas coisas que imaginava encontrar, não as entrevi, nem seria, de resto, natural que as lobrigasse em tão curto intervalo de tempo, acossado pelas perguntas da viúva e um tanto sufocado por impressões várias, muitas delas acima descritas, e todas atinentes ao que denominaria a tua saudosa e remanescente presença naquelas paragens.
        Se incorro no risco de parecer algo repetitivo, me atrevo a apontar o sentimento que me ficou como a memória essencial da dolorosa experiência. Eis que o ingresso no teu refúgio de tantos anos me transmite não a passageira impressão, mas a penosa, ineludível certeza de que falta alguém naqueles cômodos, alguém que abra as janelas, que compulse os livros, que coteje as passagens apropriadas, que carregue um que outro volume para a escrivaninha atopetada de papéis, maços e outros compêndios, alguém que pela simples presença dê significado àquelas coleções de tantos projetos e ilusões, alguém que venha arejar o que agora ameaça transformar-se em recinto quedo e cerrado, úmido e bolorento, em amontoado enfim de obras a que somente a tua pessoa, e mais, a tua personalidade existencial dera sentido e relevância.
       Dentre as minhas confissões, devo agregar e não a contragosto, mais uma: reconheço que procurei abreviar a passagem pelo teu especial e precioso santuário, não só pela inerente identificação dele com a tua pessoa, senão pela apreensão da condição humana, e do caráter melancolicamente veleitário de nossa atividade nessa terra. Também relembrei-me das tuas palavras, em nosso último almoço no restaurante Urich: “Mauro, preciso pensar o que fazer dos meus livros”. A observação me surpreendeu, porque, por primeira vez, intuía no amigo inquietude relacionada com a mortalidade.
       Mas voltemos à visita petropolitana a Thérèse. Por protegê-la demasiado, meu caro Pedro, tu a deixaste por inteiro exposta às vicissitudes dessa adversidade. Nada sabia de contas bancárias, de cadernetas de cheque e outros que tais. Em torno, não mais contidos pelo respeito antes infundido pelo senhor da casa, enxergamos a criadagem, que pressente mudanças, as quais ainda não sabe se deva temer ou prelibar. De todas essas aves de arribação, a que mais me preocupa é o teu antigo motorista que me é sobremaneira difícil entender porque o mantiveste.
      Longe de mim, porém, querer censurar-te por eventuais distrações. Sei do teu amor por Thérèse, e do quanto desejarias que as coisas não tivessem sucedido dessa maneira.
      Na verdade, quem diria, Pedro, que o homem válido e vigoroso, a carregar três sacolas de livros e de encomendas da esposa, a comer com a sólita voracidade o prato de frango na chapa, arroz com brócolis, e a avançar sem cerimônia na travessa de batatas fritas do amigo, e que se despedia com temidos tapas nas costas, que afinal essa criatura bem disposta estivesse votada a desaparecer no espaço de dezoito dias, vítima de o que antes se chamava de leve insulto cerebral, de paralisia da perna esquerda, e da resultante afecção das vias respiratórias ?
      Com efeito, acredito que não estarás de acordo com o burocrático diagnóstico das causae mortis, que alinha o atestado de óbito: “infecção aguda das vias respiratórias e infarto agudo do miocárdio”. Tomando liberdade que me outorga o fatal desenlace, ouso inserir outras causas para essa ocorrência, de todo evitável segundo o meu leigo juízo. A principal terá sido a tua idiossincrática aversão aos controles médicos. Não foi por diversa razão que denegaste o pedido do Dr. Brito da indispensável internação no hospital, onde não só serias melhor e mais apropriadamente tratado, mas também terias assegurada maior possibilidade de sobrevida. Por falar em cousas médicas, a menção do Doutor Brito levanta aspecto sem dúvida interessante para apreciação abrangente da conjunção perversa de fatores que, a meu ver, antecipou a tua morte.
     The grim reaper[1] desvela muitos segredos. Nem eu, nem o teu antigo amigo Rezende sabíamos sequer da existência desse Doutor Manoel Brito. Antes do Presidente Clinton, já eras, portanto, um atilado adepto da compartimentação da informação... A despeito da tua ojeriza pelos discípulos de Hipócrates, cultivaste por muitos anos a amizade do Dr. Brito, a quem recorreste quando do acidente circulatório, e com quem te comunicavas regularmente (para ele, o horário dos telefonemas era o das nove e trinta da noite), além de periódicos almoços no Falcone. Não vás, porém, tomar como censura as indicações que colhi do próprio, ao me vir procurar quando da missa de sétimo dia que fiz rezar por ti. Ateu ou agnóstico que eras, não creio te haja desgostado o ofício litúrgico, sobremodo pela devida homenagem que implicava.
       Fiquei mais do que satisfeito em conhecê-lo, pois logo entrevi uma boa pessoa e amigo desinteressado, que pode ser de muita valia para a Thérèse, tão indefesa diante das armadilhas bancárias e burocráticas, e sem poder recorrer a mais ninguém, pois o Rezende, com os seus oitenta e sete, já não tem mais condições para tanto, nem eu, a mais de mil milhas de distância por contingências (e perseverança) diplomáticas.
      De minha parte, hoje, sete de junho, vou ficando por aqui. Se as maçadas da chancelaria m’o permitirem, continuo amanhã, com o almoço no Urich, em que Rezende e eu, sem disfarçar a sopitada saudade, falamos do amigo ausente. De mortuis nisi bonum, com uma pitada de malícia carioca que não enjeitarias.
      Eternamente – e não há fecho mais adequado para esta correspondência -, do teu amigo de sempre,

 

P.S.  Hás de relevar a eventual numeração dos dias, os hoje, os amanhã, sem aludir aos ontem. Sei que no assento etéreo onde subiste, pouca ou nenhuma atenção se dá a tais precisões terrenas. Encareço, portanto, a tua paciência com esses mofinos pormenores, a que decerto não mais darás importância.

 



[1] O sombrio ceifador,  metáfora para a morte em inglês.

O Bastão de Obama

                                 
        Como Presidente, Barack Obama tem mostrado resolução e coragem em momentos nos quais outros teriam titubeado. Determinou, sem a absoluta certeza da individuação do alvo, a arriscada operação dos comandos da Marinha, que deram cabo do inimigo público nº 1 dos Estados Unidos, Osama bin Laden.
       Fê-lo com determinação e, com o êxito, calou muitas bocas. Malogros em tais empresas podem manchar uma presidência, como ocorreu com o intento aprovado por Jimmy Carter de salvar os reféns na embaixada estadunidense em Teerã.
      Tampouco o 44º presidente tem hesitado em autorizar intervenções letais dessa nova arma da tecnologia americana, o drone,  que é mensageiro da morte; para muitos suspeito de terrorismo (e para os infelizes que porventura estejam à sua volta). Posto que a polêmica continue – e os recentes debates no Senado são prova disso - esse novel instrumento continuará a ser empregado, com fundamento em investigações da CIA.
      Sem embargo, Obama atravessa agora momento que semelha reminiscente do biênio perdido (a despeito da Lei da Reforma da Saúde (Affordable Care Act), da Lei Dodd-Frank de controle da Wall Street e dos Estímulos à economia que, malgrado o fogo da oposição republicana, foram medidas mais do que acertadas. Então, a aparente irresolução e falta de comunicação alimentaram a revolta ultra-direitista do Tea Party, que desaguou no shellacking (tunda) da eleição intermediária de 2010, com a consequente perda da maioria democrata na Câmara de Representantes.
      Dada a falta de qualquer espírito de respeito à primazia do interesse nacional – o que importa para o GOP e sua ala de direita, o Tea Party, é o maniqueísmo anti-Obama – ficam inteligíveis os episódios subsequentes com a utilização da burocrática aprovação da elevação do teto fiscal para a tentativa de extorsão de leis sob medida republicana (preservação dos baixos tributos para os riscos, e retirada dos programas voltados para o público mais necessitado, i.e., pobres e idosos).   
       Se no primeiro embate, o presidente se enfraqueceu, a experiência terá sido benéfica para ele, ao transmitir nos meses seguintes à opinião pública a visão de um outro líder, que apesar de alguns tropeços (como a estranha performance do primeiro debate) se iria recuperar amplamente, transmitindo ao povo americano imagem de todo diversa daquela dada pelo George W. Bush ao ensejo do Katrina, quando do furacão Sandy, a ponto de ser profusamente elogiado por Chris Christie, republicano governador de New Jersey. O opositor Christie, a quem coubera o prestigioso encargo de apresentar à Convenção de Tampa, na Flórida Mitt Romney como candidato a presidente, reconheceu a proficiência e o apoio manifestados por Obama diante da catástrofe. O presidente transmitiu então à sociedade americana o que deveria ser a reação de ocupante da Casa Branca em tais circunstâncias, o que traçava contraste destruidor para a anterior benigna negligência de Bush jr.
      Se o segundo mandato, por tradição histórica, não sói ser generoso com os presidentes – excetuado FDR -, Barack Obama parecia melhor afinado com a realidade, como o deixara claro quando das tragédias de Newtown e da maratona de Boston.
      Despertou perplexidade até na bancada minoritária do GOP no Senado que o presidente não haja logrado sessenta votos em uma questão onde tinha o apoio de noventa por cento da opinião pública.
      Pensar que a emoção baste para arregimentar votos é fazer prova ou de inexperiência política, ou de singular incapacidade de obter apoios, não para ele, mas para o interesse do próprio povo americano.  Como presidente em segundo mandato, e vindo do microcosmo do estado de Illinois, não se pode atribuir a amadorismo ou a ingenuidade, uma tal derrota.
     De nada serve rotular de vergonhosa a situação, se o presidente n­ão se valeu da plenitude do poder presidencial.  Sentar-se no gabinete oval, não é só para distribuir as rituais canetas quando da assinatura de leis importantes. Com a paralisia no Legislativo – que se deve ao controle republicano da Câmara baixa -, espanta que, em um Senado onde detém maioria, não possa interromper mais uma filibuster porque a bancada da N.R.A.  (Associação de portadores de armas) consegue impedir-lhe de atingir o número regimental de sessenta votos.
      O poder – como já ensinara Theodore Roosevelt – depende não só da cenoura, mas também do bastão.  Se Obama se recusa a utilizar o bastão,  sua influência não será levada a sério. Corre o risco de tornar-se uma figura patética, cuja liderança não motiva, nem atemoriza, a seus próprios correligionários. A imprensa estadunidense individuou entre os senadores democratas – e até os republicanos – muitos que ,ou lhe devem préstimos, ou esperam dele recebê-los em breve prazo.  
      Nâo adianta congregar coalizões que contem com pessoas do nível e do sofrimento da ex-deputada Gabrielle Giffords, que vem lutando até hoje para livrar-se das sequelas que lhe foram causadas por um atirador demencial, que semeou, com as armas que o atual descontrole enseja, a morte e a incapacitação, em um comício no Arizona. Há outras maneiras, mesmo para os energúmenos, de expressar a respectiva discordância política.   
     O Presidente – V. FDR e Lyndon Johnson – para ser seguido e obedecido não pode circunscrever-se a piedosas expressões de compadecimento. Ele carece de personalizar o respectivo cargo como vetor das aspirações da sociedade. Nada obterá dos políticos e ainda mais dos senadores, se eles não se derem conta que uma traição, um voto negado, pode custar-lhes caro.
     Ou será que Obama prefere circunscrever-se ao papel de compadecedor oficial, como se fosse um ator encarregado de expressar empatia e tristeza diante de  calamidades ? Uma espécie de mestre de cerimônias de alto bordo ?
      O 44º Presidente, em uma Washington marcada pela divisão partidária e pela ausência do espírito do bipartidismo, se continuar a proceder dessa forma, corre maior perigo de o que ver contrariados os próprios objetivos.  Ao mostrar-se  incapaz de motivar até os democratas a votar pelas suas causas, que neste exemplo, eram também as da sociedade americana, Barack Obama corre risco bem maior. Não apenas o de um eventual malogro, mas de ser visto como figura quase patética, que enjeita exercer a plenitude do cargo. O temor é uma das faces do poder. Omitir-se nesse campo é debilitar a respectiva capacidade de fazer o bem, como, por exemplo, no que respeita às  armas, estabelecer um regime menos permissivo, que estabeleça limites para a sua aquisição, com o intuito de evitar massacres tão bestiais quanto foi o de Newtown, no estado de Connecticut, e a longa lista dos Columbine que o antecederam.
       

 
( Fonte: International Herald Tribune )