Nota Explicativa
Pedro Carlos Neves da Rocha morreu no
outono de 2006. “Mauro, preciso pensar o que fazer dos meus livros”. Por um instante, olhei intrigado para ele.
Válido e lépido como sempre, atribuí a frase à circunstância de que faria
oitenta e dois em uns poucos dias.
E, no entanto, foram as últimas palavras
que dele ouvi.
Éramos colegas de profissão. Ambos
diplomatas e sobretudo irmãos nos pendores culturais. Mais velho do que eu, a amizade
se consolidara na alturas de Quito. Se o gosto pelos livros já trouxera comigo,
lá ele me apresentou às grandes livrarias de seu mapa de encomendas,
distribuídas pelos Estados Unidos e a Europa. Se tudo que conhecimento fosse o
interessava, tinha especial devoção pelo Humanismo e a cultura da Antiguidade
Clássica. Com prazeroso ânimo, procurei seguir-lhe as pegadas.
Mais tarde, quando eu vivia no Rio ou por
aqui passava, almoçávamos no centro da cidade. O encontro marcado era sempre em
um sebo. Depois de inspecionar as estantes poeirentas, rumava para o
restaurante com Pedro e Antonio Rezende, professor de filosofia da PUC,
completando o trio.
Por isso, dez dias depois do último
almoço, quando ouvi a voz de Rezende ao telefone dizer-me “Mauro, tenho uma
notícia muito triste para lhe dar” soube que perdera Pedro, meu inestimável
interlocutor de quarenta anos.
As cruéis Parcas cortaram o fio da vida e
eu já não tinha com quem trocar ideias, seja nos almoços, seja por carta ou
telefone, acerca de uma agenda intelectual de tantos anos.
Quando voltei para a Grécia, em maio de
2006, a presença de Pedro se tornou constante. Não havia no mundo cidade mais
propícia do que Atenas para evocar a cultura clássica, e em especial
Aristóteles, sobre quem escrevera meu amigo o livro ‘A Crítica do Animal
Político’.
As Cartas ao Amigo Ausente são
decorrência daquelas jornadas. Essa estranha correspondência terá sido a
maneira por mim encontrada para lidar com o brutal silêncio.
Ora tenciono publicá-las em intervalos
semanais.
Cartas ao
Amigo Ausente
I
Meu mui prezado e bom Amigo Pedro,
Ao retomar nossa
correspondência, me valerei de uma tantas liberdades. Primo, confiante de que doravante prescindes do correio,
abstenho-me de postar essas cartas. Secondo,
me permitirei dizer-te coisas, partilhar impressões e antecipar projetos,
temores et al. que a tua condição
anterior me desaconselhava fazer.
Quando recebi na terça-feira o
telefonema do Rezend, que me dizia ter notícia muito triste para comunicar,
invadiu-me a quase certeza da tua partida. Então, na sexte-feira, fiz, em
sentido inverso, a viagem de que foste, por esses anos afora, assíduo
freguês.
Após desembarcar na vasta e
excêntrica rodoviária, tomamos um taxi e rumamos, por primeira vez, para a casa
da Visconde do Uruguai, 128. Lá chegamos, Ana e eu, pelas dez e meia. Como
desconhecíamos o local, batemos na porta errada, até que assomou uma empregada
para nos indicar a entrada. Thérèse, que nos esperava, não tardou em aparecer. A
residência, com o pátio interno, e a disposição térrea recordava o solar
da avenida Barão do Rio Branco, que visitara
na década de noventa.
Conversamos com a tua amada esposa por
cerca de duas horas. A princípio, ela nos conduziu pelos cômodos da mansão, e
nos relatou as circunstâncias dos teus últimos seis dias de vida, a partir do
problema circulatório que se revelou na terça-feira. Excetuadas as dependências
íntimass, Thérèse nos mostrou até o chamado quarto de hóspedes, para onde te
levaram depois que voltaste do hospital.
Devo confidenciar-te que, pela
dificuldade em dialogar com ela, por força da surdez, o histórico desses dias
fatídicos se me afigurou algo nebuloso e mesmo contraditório em certos
aspectos. Mais tarde, como saberás, tive oportunidade de esclarecer alguns
tópicos, mas me resta a incômoda suspeita de que jamais hei de inteirar-me de o
que realmente aconteceu naquelas agourentas jornadas.
Não é, contudo, o momento de discutir de
tua relativa solitude, e das consequentes limitações assumidas com a escolha
das alturas petropolitanas. Retornemos, pois, àquela manhã ensolarada.
Infelizmente, como não ignoras, o sol não é um visitante bem-vindo e costumeiro
nas dependências decoradas com tamanho esmero e intensidade por tua mulher.
Dessarte, além do ar sombrio a pairar sobre o ambiente, a fria umidade e a
sensação
de arraigado mofo perpassa as
diversas e contíguas salas.
Em
saleta próxima da cozinha, Terezinha nos expôs as suas inquietudes e
perplexidades. Senti-a de todo despreparada diante de tua subitânea saída de
cena. Disso me ocuparei com mais vagar oportunamente. Por isso, preocupou-me
deveras a sua situação, mormente se a realizarmos submetida às vistas atentas
e intrusas de uma criadagem que sentes
onipresente. Como disse Ana, ali as paredes têm ouvidos.
Após certa hesitação, que atribuo mais a
seu estado de espírito, que a uma negativa personalizada, Thérèse se decidiu a
mostrar-me a tua bibilioteca.Admirei o sobrado que fizeste construir sobre a
garagem e, com inegável emoção, subi os degraus da escada disposta lateralmente
à construção. É
um percurso suave, que
culmina em alpendre. Sob o dístico
Humanitas
e a companhia da coruja de Pallas Athena, o eventual visitante enceta os
poucos passos a separá-lo da porta de entrada, que consiste de duas batentes
venezianas cerradas por frágil fechadura.
Talvez
por causa da comoção, não posso dizer-te hoje se estive em três ou quatro
aposentos. Que importância terá esse detalhe para ti, que tão entranhadas terás
na memória aquelas dependências ?
Como
hás de recordar-te, a última vez que estive na biblioteca ainda fora no pavilhão
da casa da avenida Rio Branco.
A minha
primeira impressão foi a de deparar recinto não tão amplo quanto o anterior.
Não sei se pelo incremento físico dos volumes dispostos ou empilhados nas
prateleiras, ou se por limitações relativas de espaço, o ambiente ora me
pareceu menos aberto, quiçá mais confinado.
Tampouco
era acolhedora a predominante umidade, causada pelas janelas cerradas e a
decorrente falta de ventilação. Já como que se formara um bolorento véu, pelo
fechamento, por mais de semana, daquele local de leitura e estudo. A tua
ausência, de início, devido à doença. e, em seguida, pela fatalidade,
conformara, material e figurativamente, uma atmosfera opressa, quase inóspita,
o oposto dos livres ares que as tuas atividades livrescas soíam proporcionar. É
bem verdade que o clima de Petrópolis não se distingue pela secura.
Todavia, a tua movimentação entre aquelas
paredes e a própria abertura não só para as correntes do saber cuidou em trazer
para o estimado reduto o afluxo necessário para oxigenar as miríades de páginas
que congregaras ao longo dos anos.
Não
sei se igualmente certa timidez ou, melhor falando, algum pudor me impedia de
adentrar-me mais a fundo nos teus caros e particulares domínios. Como poderia,
tão de chofre, dissociar-te a presença das profusas estantes e das pilhas de
volumes que se espalhavam até mesmo pelo compartimento sanitário ? Descobria-me
algo constrangido, como se estivesse me intrometendo na intimidade de uma
biblioteca que sempre considerara a extensão natural da tua pessoa, tão
estreitamente ela condicionou a tua
âßïò.
Assim me explico o inconsciente acanhamento, que me cerceou no perlustrar as
muitas – e convidativas – lombadas.
Por
mais, no entanto, que te sentisse a acompanhar-me na incursão, não me escaparam
determinados títulos, como, v.g., os quatro tomos da enciclopédia sobre o
ateísmo, os
in-octavo do teu admirado
Pierre Bayle, algumas traduções setecentistas de Diogenes Laertio, e uns poucos
mais. Demasiado poucos, em verdade. Desconheço se para tanto também contribuíu
a voz estrídula de Terezinha, a perguntar-me mais do valor venal da coleção do
que da qualidade intrínseca de cada livro.
Curioso,
procurei pelo precioso exemplar da edição quinhentista de Manuntius de Diogenes
Laertes, que me confiaste não faz muito haver sido a tua mais custosa
aquisição. Perscrutei a prateleira das compras do bibliófilo, em que por
prezares mais o espírito do que a matéria,mui raramente as praticaste. Espiei,
convenhamos que de modo dessultório, nas fileiras clássicas e nas biográficas.
Debalde. Aonde terás metido essa jóia editorial, só se saberá após meticulosa
classificação do teu acervo.
Tampouco
dei com os arquivos de notas e registros. De feitio propenso à reserva, jamais
mencionaste como organizaras a tua erudição, a colação das várias obras, os
respectivos títulos e os nomes dos autores, as citações ou, consoante a maneira
de outros tempos, a coleção de
common
places. Intelectual formado à antiga, abominavas a era do computador e da
internet. A despeito da fadiga e da
azáfama mesmo que a velha máquina de escrever Olivetti não podia evitar, nunca
sequer consideraste a hipótese de servir-te da informática como instrumento de
trabalho. Se não podia concordar com tal postura, pelo seu caráter epimetéico,
sempre respeitei a tua convicção.
Homem
das primeiras décadas do século vinte, não admitias sobretudo o novo paradigma
no sentido kuhniano que o computador trouxera para o mundo das letras e da
cultura. Não ignoramos o destino de tais resistências, mas jamais te neguei a
admiração que compete aos desassombros do velho do Restelo.
Enquanto estiver por essas bandas, guardarei
zelosamente as tuas laudas, todas datilografadas na indefectível Olivetti, com
que partilhaste comigo a tua experiência e me apontaste tantos caminhos nas
ínvias florestas da profusa produção livresca.
Eis-me
a enveredar por nova digressão. Que tais questões fiquem para mais tarde, e
retornemos a tua citadela.
Depois
das buscas infrutíferas, empreendidas com o já mencionado ânimo meio
descorçoado e irresoluto, topei, em um canto da biblioteca, com a famosa mesa,
que mandaste fazer em Quito, por volta dos anos sessenta. No pavilhão da Rio
Branco, a dispuseras em espaço menos atravancado pelas estantes. Recordo-me do
teu vezo de ali empilhar os livros objeto de tuas consultas e pesquisas, sem
esquecer as obras de referência, que preferias ter mais à mão. Faltavam agora
não apenas a tua irrequieta pessoa, sentada na poltrona de alto espaldar, senão
os teus gestos largos e imprevistos, nem sempre coordenados. Mas, repensando,
quiçá houvesse outras diferenças, menos óbvias e, não obstante, tristemente
reveladoras por mais próximas da improvisa tribulação. Reporto-me à carência de
papéis e a exígua pilha de uns dois ou três livros sem maior importância que
jazia à esquerda do tampo da escrivaninha. Com desconforto, ali deparei, meu
bom amigo Pedro, a abrupta, inopinada intromissão da doença, com toda a sua
cauda de aborrecidas, incômodas, inelutáveis fraquezas.
Muitas
coisas que imaginava encontrar, não as entrevi, nem seria, de resto, natural
que as lobrigasse em tão curto intervalo de tempo, acossado pelas perguntas da
viúva e um tanto sufocado por impressões várias, muitas delas acima descritas,
e todas atinentes ao que denominaria a tua saudosa e remanescente presença
naquelas paragens.
Se incorro no risco de parecer algo
repetitivo, me atrevo a apontar o sentimento que me ficou como a memória
essencial da dolorosa experiência. Eis que o ingresso no teu refúgio de tantos
anos me transmite não a passageira impressão, mas a penosa, ineludível certeza
de que falta alguém naqueles cômodos, alguém que abra as janelas, que compulse
os livros, que coteje as passagens apropriadas, que carregue um que outro
volume para a escrivaninha atopetada de papéis, maços e outros compêndios,
alguém que pela simples presença dê significado àquelas coleções de tantos
projetos e ilusões, alguém que venha arejar o que agora ameaça transformar-se
em recinto quedo e cerrado, úmido e bolorento, em amontoado enfim de obras a
que somente a tua pessoa, e mais, a tua personalidade existencial dera sentido
e relevância.
Dentre as minhas confissões, devo
agregar e não a contragosto, mais uma: reconheço que procurei abreviar a
passagem pelo teu especial e precioso santuário, não só pela inerente
identificação dele com a tua pessoa, senão pela apreensão da condição humana, e
do caráter melancolicamente veleitário de nossa atividade nessa terra. Também
relembrei-me das tuas palavras, em nosso último almoço no restaurante Urich:
“Mauro, preciso pensar o que fazer dos meus livros”. A observação me
surpreendeu, porque, por primeira vez, intuía no amigo inquietude relacionada
com a mortalidade.
Mas voltemos à visita petropolitana a
Thérèse. Por protegê-la demasiado, meu caro Pedro, tu a deixaste por inteiro
exposta às vicissitudes dessa adversidade. Nada sabia de contas bancárias, de
cadernetas de cheque e outros que tais. Em torno, não mais contidos pelo
respeito antes infundido pelo senhor da casa, enxergamos a criadagem, que
pressente mudanças, as quais ainda não sabe se deva temer ou prelibar. De todas
essas aves de arribação, a que mais me preocupa é o teu antigo motorista que me
é sobremaneira difícil entender porque o mantiveste.
Longe de mim, porém, querer censurar-te
por eventuais distrações. Sei do teu amor por Thérèse, e do quanto desejarias
que as coisas não tivessem sucedido dessa maneira.
Na verdade, quem diria, Pedro, que o
homem válido e vigoroso, a carregar três sacolas de livros e de encomendas da
esposa, a comer com a sólita voracidade o prato de frango na chapa, arroz com
brócolis, e a avançar sem cerimônia na travessa de batatas fritas do amigo, e
que se despedia com temidos tapas nas costas, que afinal essa criatura bem
disposta estivesse votada a desaparecer no espaço de dezoito dias, vítima de o
que antes se chamava de leve insulto cerebral, de paralisia da perna esquerda,
e da resultante afecção das vias respiratórias ?
Com efeito, acredito que não estarás de
acordo com o burocrático diagnóstico das
causae
mortis, que alinha o atestado de óbito: “infecção aguda das vias
respiratórias e infarto agudo do miocárdio”. Tomando liberdade que me outorga o
fatal desenlace, ouso inserir outras causas para essa ocorrência, de todo
evitável segundo o meu leigo juízo. A principal terá sido a tua idiossincrática
aversão aos controles médicos. Não foi por diversa razão que denegaste o pedido
do Dr. Brito da indispensável internação no hospital, onde não só serias melhor
e mais apropriadamente tratado, mas também terias assegurada maior
possibilidade de sobrevida. Por falar em cousas médicas, a menção do
Doutor Brito levanta aspecto sem dúvida
interessante para apreciação abrangente da conjunção perversa de fatores que, a
meu ver, antecipou a tua morte.
The
grim reaper desvela muitos
segredos. Nem eu, nem o teu antigo amigo Rezende sabíamos sequer da existência
desse Doutor Manoel Brito. Antes do Presidente Clinton, já eras, portanto, um
atilado adepto da compartimentação da informação... A despeito da tua ojeriza
pelos discípulos de Hipócrates, cultivaste por muitos anos a amizade do Dr.
Brito, a quem recorreste quando do acidente circulatório, e com quem te
comunicavas regularmente (para ele, o horário dos telefonemas era o das nove e
trinta da noite), além de periódicos almoços no
Falcone. Não vás, porém, tomar como censura as indicações que colhi
do próprio, ao me vir procurar quando da missa de sétimo dia que fiz rezar por
ti. Ateu ou agnóstico que eras, não creio te haja desgostado o ofício
litúrgico, sobremodo pela devida homenagem que implicava.
Fiquei mais do que satisfeito em
conhecê-lo, pois logo entrevi uma boa pessoa e amigo desinteressado, que pode
ser de muita valia para a Thérèse, tão indefesa diante das armadilhas bancárias
e burocráticas, e sem poder recorrer a mais ninguém, pois o Rezende, com os
seus oitenta e sete, já não tem mais condições para tanto, nem eu, a mais de
mil milhas de distância por contingências (e perseverança) diplomáticas.
De minha parte, hoje, sete de junho, vou
ficando por aqui. Se as maçadas da chancelaria m’o permitirem, continuo amanhã,
com o almoço no Urich, em que Rezende e eu, sem disfarçar a sopitada saudade,
falamos do amigo ausente.
De mortuis nisi
bonum, com uma pitada de malícia carioca que não enjeitarias.
Eternamente – e não há fecho mais
adequado para esta correspondência -, do teu amigo de sempre,
P.S. Hás de relevar a eventual numeração dos dias,
os hoje, os amanhã, sem aludir aos ontem. Sei que no assento etéreo onde
subiste, pouca ou nenhuma atenção se dá a tais precisões terrenas. Encareço,
portanto, a tua paciência com esses mofinos pormenores, a que decerto não mais
darás importância.