Uma das tristes características do sistema jurídico que herdamos por via dos séculos da colonização lusa, com as suas ordenações et al., é a pomposidade do discurso legal, sua suposta abrangência e seu efetivo distanciamento da realidade prática.
Por isso, publicações estrangeiras podem afirmar que o Brasil é um país de muitas leis, muitas das quais não se aplicam. Corolário disso seria o dito popular de que por aqui existam leis que pegam, e outras que não.
Durante muitos anos o nome Brasil na Europa e Estados Unidos era vagamente conhecido e, quando o fosse, associado a futebol e carnaval. Nessa mesma linha, um país que não é sério (de Gaulle) ou sem personalidade (nondescript – Edward Said).
De uns tempos para cá, o anagrama BRICs, cunhado por Jim O’Neill, economista-chefe do Banco Goldman Sachs, veio mostrar uma outra realidade. O Brasil como uma das principais economias emergentes, possuidor de moeda estável, apreciada em relação ao dólar estadunidense, e bom destino para inversões a curto e médio prazos.
Não foi Lula nem o PT, como apregoam, quem criou este novo Brasil. Resolvido pelo Plano Real o problema da hiperinflação, dados os nossos recursos e potencialidades, a antiga terra de Santa Cruz pode começar a crescer e a ocupar espaços no comércio internacional.
Será que deixamos afinal de ser o País do Futuro, aquele do livro encomendado ao pobre Stefan Zweig ? Será que o futuro transformou-se por fim no glorioso presente ?
Devagar com o andor, porque o santo ainda é de barro. Na verdade, futuro e passado se dão as mãos, no que tem de pior e de melhor.
Veja-se, por exemplo, a questão das leis acima referida. O progresso teria enfim varrido tanto a verborragia dos leguleios, quanto o absurdo de institutos legais que, a um tempo, são vistos como vitrinas do orgulho nacional, e, a um outro, semelham trastes descartáveis jogados em fundo de quintal.
Muito já escrevi sobre o significado da supressão da censura em todos os seus avatares pela Nova República, através da Constituição Cidadã, de cinco de outubro de 1988. Depois de um vintênio da cultura policiesca da repressão, os artigos 5º, inciso IX, e 220º , parágrafos primeiro e segundo da Carta Magna transmitiram aos contemporâneos do Ministro da Justiça Fernando Lyra a certeza de que se vivia afinal em um Estado de Direito, onde a frase Censura, nunca mais ! não se afigurava um slogan.
Não cansarei o leitor com longas enumerações dessas grandes expectativas, que deram à cláusula de ab-rogação de qualquer censura o designativo de pétrea. Ora, que país é este, cujos magistrados maquinalmente repetem tão bela e promissora qualificação, para em seguida adotarem uma linha sinuosa, como se tal norma constitucional fosse dispositivo com duas caras.
No anverso, as letras douradas da Constituição, cinzeladas no ático mármore da lei imorredoura. No verso, contudo, em superfície que tratam como se palimpsesto fora, vamos deparar garatujadas a censura contra o Estado de São Paulo, implantada pelo desembargador Dácio Vieira, e que favorece o filho Fernando do inabalável e inexpugnável José Sarney; outros desatinos similares, praticadas no interior e nos grotões da república, em que a mordaça se aplica a críticos corajosos dos potentados locais; e agora, enterrada em página interna de jornal, reedita, com a desenvoltura passada dos anos de chumbo, a censura prévia a uma revista ilustrada, por meio da prepotência das tarjas pretas, que não desfiguram somente a composição gráfica.
Entrementes, dormem os defensores da Constituição. E dormem todos – seja a sociedade civil, que parece achar irrelevantes o abusos cometidos quando atingem tão somente a outrem; a grande imprensa que, ou não a julga matéria publicável, ou a enfurna em cantos obscuros, como se cumprisse um ato pro-forma; e os ministros do Supremo, que tardam em conhecer da censura contra o Estado de São Paulo, o qual, por sua vez, se cinge a, quase cartorialmente, relegá-la a discreta nota pré-paginada, repetida como se ladaínha fora.
A hidra da censura tem muitas cabeças. Para cortá-las, não basta a letra da Constituição. Há muitos interesses inconfessos que estão bem despertos na sua faina de através de representantes da Justiça subverter ou mutilar o conhecimento. Se me recuso a acreditar que a tendência seja generalizada, salta aos olhos que o ataque se afigura sempre mais ousado e frequente.
Qualquer censura, qualquer tarja negra é tão ignóbil e deletéria, sem importar a substância e o público a quem priva da liberdade outorgada pela Constituição Cidadã. A censura não é nem atalho, nem panaceia. Será sempre uma torpe mordaça, seja quem for a autoridade que busque ignorar o mandamento constitucional.
Ou será que estamos destinados a comemorar, em vazias mesuras, cláusulas que foram forjadas com o sangue e a tortura de tantos anônimos lutadores, que caíram para que ressurgisse a plena democracia ?
( Fonte: O Globo )
sexta-feira, 1 de abril de 2011
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