O Brasil, esse impávido colosso, esse gigante pela própria natureza, será o el-Dorado, mítico lugar que, pela ingênua cobiça das entradas e das bandeiras, tanto contribuíu para alargar as lindes luso-brasileiras ? Pedro Teixeira, a mando de Jácome Raimundo de Noronha, um bom governante do Maranhão, foi até as nascentes do Amazonas. Tamanha audácia exasperou os espanhóis de Quito e despertou o Conselho das Indias a exigir severas penas para o atrevido explorador. A burocracia de Castela não importunaria aquela industriosa gente, pois soara a hora de os Bragança reivindicarem a coroa de Portugal.
Pensando em Susan Sontag, que se reportara à doença como metáfora, me ocorreu a ideia de que, nesses tempos hodiernos, talvez a dengue nos sirva para tanto.
Desde que o Aedes aegypti desaparecera no Brasil, por mérito do governo de Juscelino Kubitschek, seu retorno pela Venezuela tardaria uns vinte anos. A partir desse reingresso, podemos considerá-lo como definitivamente radicado em nossa terra, onde o acolheram com o tapete vermelho da inépcia burocrática e a negligência e o relaxamento de boa parte da população.
É por obra de tais estafermos que essa praga infesta os estados brasileiros e colhe o seu macabro dízimo de carne humana nos verões e outonos austrais. A primeira epidemia de dengue no Rio de Janeiro aconteceu em 1986. Desde então, se assiste no estado a uma sucessão de surtos epidêmicos. O clima carioca, com a extensão dos calores da estação quente, tornam verão e outono uma espécie de longa pista de decolagem para esse mosquito – vetor tanto da febre amarela, quanto da dengue. Por outro lado, ele agradece comovido a negligência dos poderes estatais. Dada a cercania, tenderá a observar com maior preocupação a capacidade de reação da administração municipal.
No século XXI, há duas grandes epidemias de dengue no Rio de Janeiro. A primeira, em 2001/2002, com Cesar Maia, registrou no segundo ano picos de quarenta mil casos mensais, o que se repetiu, em 2007/2008, também em gestão de Cesar Maia. Na dinâmica dessa enfermidade, os totais do primeiro ano (8.478 em maio) ganham força inercial no segundo, para afinal despencarem com os meses do inverno carioca.
Como está a frente dessa inglória batalha no começo de abril ? Noticia-se que a epidemia já atinge uma dezena de municípios (Bom Jesus de Itabapoana, Cabo Frio, Cantagalo,Cordeiro, Guapimirim, Magé, Mangaratiba, Santo Antonio de Pádua e Silva Jardim, a par da capital). A cidade do Rio de Janeiro registrou no período o maior número de óbitos – sete.
Desde janeiro, foram notificados 31.412 casos no estado – em contraposição aos 4.188 no ano passado. Para o Superintendente de Vigilância na Secretaria estadual de Saúde e Defesa Civil, a tendência agora é de diminuição. “O pico da doença foi a primeira quinzena de março. Todas as cidades estão tendo queda no número de casos, com exceção da capital”.
Não obstante, na capital já foram notificados 12.261 casos neste ano. Desses, 817 foram registrados no último dia do cômputo. Nas áreas de maior incidência a Secretria Municipal de Saúde informa que estão programados mutirões e outras atividades de combate aos focos do Aedes aegypti, inclusive o uso do fumacê.
Basta assinalar tais providências municipais, para que se desvele o que há de fundamentalmente errado na estratégia da luta contra a dengue. Por força da falta de empenho da autoridade citadina, depois da porta arrombada se fala em colocar a tranca.
Não estamos, é verdade, diante da patética atitude de Cesar Maia, por ocasião da epidemia de 2008, quando disse que se deveria rezar para que os mosquitos voassem para o mar. Tal poderia ser havido como a epígrafe na desastrosa campanha daquele ano.
Não há, contudo, diferença fundamental na postura contra a dengue. É atitude precipuamente reativa. A crise é grave ? A curva dos casos registra inquietante pico? Então as autoridades correm atrás.
Falta determinação, falta vontade nesse combate. Ministro da Saúde, governadores, prefeitos vem à televisão e advertem contra o perigo da dengue. Por outro lado, atores globais e outros aparecem na tevê, fazendo recomendações para a prevenção dos focos da dengue.
Todos esses apelos genéricos têm capacidade muito fraca de sensibilizar a população. O que é necessário é o contato direto, é o aprendizado in loco, são as providências pontuais para debelar os focos, de resto ultra conhecidos: casas fechadas ou abandonadas, ferros-velho, depósitos, ruínas, obras mal-acabadas.
Em meio à epidemia, o funcionário fala de mutirão, de fumacê, etc. Tudo isso, se feito antes, em contato direto com a população de maior risco, é muito mais eficaz. Se desejamos conviver com a dengue endêmica – as autoridades médicas dizem que o flagelo não é suscetível de extinção – com baixíssimas incidências, não é cabível essa política do menor esforço, esses reclamos genéricos, que são a fantasia do descaso.
Como podemos referir a estúpida ameaça criada por um espelho d’água na Praça General Osório – a que já me referi em notas do blog ao Prefeito, e de se ocupa nesta semana O Globo ? A reação da autoridade, seja ela alta ou baixa, costuma ser duplamente negativa: o silêncio vem junto com a inação.
Não espanta tampouco que o atendimento às vítimas da dengue se caracterize, na vertente clínica, pela improvisação e a incompetência. Não é só o caso da menina diagnosticada com afecção na garganta, quando na realidade tinha dengue. Será que servirá para salvar vidas futuras a foto do pai mostrando os inúteis remedios prescritos para a filha morta ?
Dado o triste histórico de nosso estado enquanto foco de dengue, como é possível admitir que muitos profissionais da saúde estejam despreparados para o diagnóstico e o tratamento dessa doença, que pode ser letal ?
A profusão de exemplos de outra face desse descaso da autoridade com relação aos cidadãos – excluída apenas a época da campanha eleitoral, quando tudo prometem – os deparamos por toda a parte. Estão nos prédios municipais, ativos como focos suplementares do mosquito, estão nos buracos abertos – e inundados pela chuva – de obras ou mal encetadas, ou mal termindas, estão na sua cômoda ausência das áreas de risco (áreas mal urbanizadas, favelas, lixões, terrenos baldios etc.).
Agora pensam em fazer mutirões para enfrentar uma epidemia já deflagrada. Precisamos dar precedência a uma estratégia pró-ativa, que se proponha atuar e ajudar essas comunidades mais fragilizadas pela ignorância – não é que seja, de resto, privilégio dos pobres. É mais cômodo, é mais simples providenciar aparição televisiva de alguma celebridade para alertar acerca do perigo.
No entanto, se se deseja evitar epidemias, então o remédio tem de ser outro. Pôr a mão na massa, educar as comunidades, auxiliá-las pelo exemplo a eliminar os focos, chegar, em suma, até a população mais diretamente ameaçada.
Toda essa estratégia global, de fátuos avisos de distantes personagens, equivale a notas de pé de página dentro de uma campanha abrangente e sustentada no combate ao Aedes aegypti.
Se se continuar nesse combate pró-forma e comodista, não é preciso ser profeta para antecipar o que vai acontecer.
( Fonte: O Globo )
sábado, 2 de abril de 2011
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