O filme de Jan Schütte ‘Love comes lately’ (2007) se inspira em três contos de Isaac Bashevis Singer, o Prêmio Nobel que se refugiara em New York, e que escrevia em iídiche, o idioma da comunidade judia da Polônia.
O personagem central Max Kohn (Otto Tausig), escritor de contos sobre gente comum, como o descreve a apresentadora em uma de suas conferências. Kohn vive com uma eterna namorada, Reisele (Rhea Perlman), em típico apartamento da classe média de Manhattan. Embora ela o trate mais como um irmão ranzinza, está sempre alerta para as suas aventuras. Não pode, contudo, acompanhá-lo em suas viagens a convite de universidades, porque tem de cuidar de sua mãe. Tal presença materna não precisa aparecer, para reter Reisele em New York e condená-la aos próprios ciúmes.
Os três episódios da trama se passam em Hannover, Miami e Springfield. A morte está sempre presente nessas estórias, tecidas com o displicente humor judeu nas fazendas de realidade, sonho e fantasia. Já a maestria de Schütte, vagando com a facilidade do pensamento em áreas tão diversas, dificulta por vezes a compreensão do espectador do plano em que ora se encontre Kohn.
Perseguem o personagem mais os pesadelos do que os azuis sonhos de realizadas fantasias. Neles a figura do cobrador personifica com o próprio uniforme o guarda que irrompe no subconsciente de Kohn para inquiri-lo de suas intenções (decerto maldosas), de sua atuação sexual, com a implícita insinuação da impotência. Tudo isso, mesmo na lógica onírica – afinal a sua única culpa é de não encontrar a passagem do trem – vai num crescendo, até que a angústia o empurre para a realidade da cama quase-conjugal com Reisele.
A figura de Tausig, ator austríaco, lembra a de Woody Allen, unidos que são pelo jeito de intelectual judeu e nova-iorquino, no esplendor de seus setenta anos. Kohn é também o escritor esquecidiço, sempre a perder coisas, enquanto a secretária e amante busca organizar-lhe a vida.
Kohn costuma ir de trem para os seus compromissos. Interessante o contraste entre Hannover e Springfield. Na primeira cidade, o conferencista tem a esperá-lo um comitê de admiradoras, que o conduzem para a conferência. Lá o professor-titular que o convidara não dá as caras, mandando outro professor que nada conhecia de sua obra. Kohn lê a conferência preparada para um auditório, cheio de cadeiras vazias, e que não faz perguntas.
Em outra esfera, contudo, a incursão lhe acena com antigos amores. Reencontra Rosalie (Barbara Hershey), que foi sua estudante e com quem teve um caso. Ela se revela um espelho feminino das conquistas de Kohn, eis que tampouco as suas relações têm o selo da estabilidade – e é o que de novo os atrai, por uma noite.
Tudo muda na ida para a escala de Springfield. O cobrador é atencioso, ao acordar o viajante exausto para a chegada na próxima estação, destino do professor-conferencista. Desta vez, contudo, na plataforma não há ninguém a esperá-lo e ele tem de tomar um táxi para procurar o hotel.
Na verdade, para seu espanto, é apenas um albergue. O empregado da noite, um sikh hindu, com turbante e tudo, o ignora completamente. Não há, na hospedaria de terceira classe, reserva alguma em seu nome. O hindu toda vez que o nomeia, o faz com um sobrenome diverso: é Khan, é Cohen, mas nunca, apesar dos apelos do escritor – eu me chamo Max Kohn - tem condições de chamá-lo corretamente.
Parece pesadelo, mas Kohn se defronta com imprevista realidade. Por fim, consegue um quarto sem banheiro. Pouco depois, o porteiro volta para advertir Mr. Khan que de modo algum saia do aposento. O motivo ? a mulher que dormia no quarto ao lado se suicidara e estavam removendo o corpo.
Sem dinheiro e sem modo de contactar os anfitriões – uma tentativa desesperada para que a namorada lhe transfira dinheiro bate no rochedo da raiva de Reisele que ao redescobrir-se,mais uma vez, traída pelo companheiro (ele não estava no hotel de Hannover e ela não teve dúvidas de que partilhava a cama com as ... de sempre – deixo para o leitor o palavrão). Chega até a mandar-lhe recado pelo eterno sikh, que repete para Mr. Cohen o desabafo raivoso de Reisele.
Nesse momento, só em seu quartinho, resolve esquecer o aperto, e escrever um conto.
Por fim, o sofrimento do herói goza do benefício de uma pausa. O comitê universitário que o convidara vem buscá-lo. Como não lograra dar com o bilhete de Reisele, em que estava o nome do hotel, trocara as bolas e fora parar no Springfield Mountain e não no Springfield Fountain, onde tudo estava preparado para ele.
Nessa univerdade, o espera um auditório repleto, e quem o apresenta, o faz em palavras de conhecedora do consagrado escritor de contos sobre gente comum. E ele os cativa não com a conferência – perdida junto com a pasta que lhe dera Reisele – mas com a narração da estória que acabara de redigir.
Neste episódio se repete o personagem distraído de Miami, a quem as mulheres procuram e se oferecem, em um ritmo que mais semelha ditado por regras que fluem com inacreditável naturalidade onírica. Passivo, ele convive com absurdas situações – como a do homem que o carrega, como testemunha, para a casa da ex-mulher e do companheiro, a quem vai exterminar com uma quase bazuka.
A esperança renasce quando o procura a vizinha Ethel (Tovah Feldshuh). Tudo parece correr à maravilha, tanto que ela o convida para almoçar no seu apartamento, que é contíguo ao do heterônimo de Kohn, no caso Bendeman.
Ethel está encantada com as parecenças do personagem Bendeman com as de seu falecido esposo. A tal ponto está entusiasmada que pensa na possibilidade de unir-se com Bendeman. Este, induzido pela abertura de Ethel, a beija longamente na boca. No entanto, esse abandono da passividade será fatal para a relação e para a própria Ethel.
Decerto, por culpar-se dessa traição ao morto, ela pede a Bendeman que saia de sua casa, e deixa claro que deseja dar um tempo nos respectivos ardores. Para surpresa do personagem, ele não tardará a saber que a senhora morte interveio mais uma vez, agora pelo suicídio de Ethel.
Em Max Kohn, escritor de relativa fama, que pode receber o súbito pedido de autógrafo de jovem admiradora, convivem diversos personagens, o do refugiado que teme os interrogatórios da Gestapo, o conquistador-passivo, a vítima de pesadelos que o visitam tanto nas poltronas de um trem, quanto no próprio quarto, o paciente que se queixa da operação da próstata, o nova-iorquino de classe média, cercado e por vezes sufocado pelas atenções da namorada-amiga.
O espectador agradece a Jan Schütte haver sabido retirar da obra de Singer, e de forma tão harmônica, muitos dos dybbuks (demônios) que lhe assombram os livros, e que Max Kohn (Otto Tausig) ora nos apresenta com um quase jeitão de Woody Allen.
sexta-feira, 22 de abril de 2011
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