Em seu artigo de ontem, o jornalista Janio de Freitas se ocupa na Folha da forma com que o atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes ‘se põe a criticar a conduta de Lula, publicamente’, o que a seu ver ‘não está na ordem das coisas’.
Da declaração em tela já a reportara no blog Obra faraônica ?, de 26 de outubro corrente. Antes de opinar sobre a oportunidade da intervenção do Ministro Gilmar Mendes, creio que caberia versar uma questão mais ampla, também aludida pelo citado colunista, por ele intitulada ‘A desordem das coisas’.
Tenho para mim que no Brasil vivemos momento de deriva. Corresponde ao conceito estudado por Arnold J. Toynbee, em seu monumental – e hoje temporariamente esquecido - A Study of History[1], que ele designa pela palavra inglesa drift. Este sentir, comum aos contemporâneos da fase histórica denominada pelo historiador time of troubles[2], reflete a sensação contemporânea de princípios fluidos e de valores pouco respeitados, entre outras características.
Há várias causas que se podem tentativamente alinhar para a presente situação de desordem institucional. É importante que se frise que não falo de anomia. Não é de falta de leis que padecemos. O nosso país, que foi taxado por Edward W. Said como sem personalidade (nondescript), teria até leis demais (consoante lhe foi acoimado por tradicional revista inglesa). Um de nossos problemas estaria – e não sempre segundo o olhar estrangeiro – em que muitas delas não seriam cumpridas.
Será triste herança do legalismo luso-ibérico, a começar pelas ordenações filipinas. Terá herdado o brasileiro essa totêmica fé na realidade escrita, que muita vez é havida por suficiente ? Entraria aí a teoria climática – não a do desastre ora anunciado pelo sumo desrespeito de outra ordem, a da natureza – mas aquela que alguns teóricos fazem remontar a Aristóteles, e que climaticamente determinaria a vocação das populações respectivas. Em consequência, discorrer dos trópicos e de sua nefária influência não é pequeno passo, conquanto equivalha a grande preconceito.
A Constituição de cinco de outubro de 1988, a dita Cidadã por Ulysses Guimarães, tem muitas qualidades e não poucos defeitos. Um deles terá sido que foi elaborada não a partir de pré-projeto articulado (apressadamente enjeitou o proto-texto da Comissão Afonso Arinos) e sim com base no conglomerado Frankenstein. Outro senão – e quiçá mais grave – foi a circunstância de o constituinte pensar construir regime parlamentarista, que ao fim e ao cabo virou presidencialista. Daí, remanescentes de certa indefinição e ambiguidade não só conceitual.
Entretanto, a desordem institucional igualmente terá a ver com os tempos e as pessoas. A propósito da crise do Legislativo muito terá sido escrito. Pelo fato de ela atualmente achar-se em compasso de espera – aqui o tempo, se não resolve os problemas, sobre eles asperge o pó mágico do esquecimento condicional – só na sua superação acreditam os loucos e os parlamentares, a revisitar-nos nesta hora pré-eleitoral, com suas patranhas e promessas de Barão de Münchhausen.
Não apenas o Senado mas também a Câmara se debate nos baixios da mediocridade, da corrupção sistêmica e do corporativismo. A Câmara Alta continua com um presidente que é refém de muitos escândalos e prisioneiro de Renan Calheiros e de sua soturna tropa de choque. Por sua vez, a Câmara baixa tem presidente que ao receber, contrafeito, projeto de iniciativa pública contra a corrupção, deitou fala que lhe ia n’alma (apressou-se em apontar-lhe supostos defeitos), ao invés de elogiar a boa empresa política.
Por isso, o Congresso não tem, a dizer verdade, presença afirmada institucional. Por isso, admite a chamada judicialização, que é a invasão pelo Judiciário de suas atribuições constitucionais (que ele deixa sáfaras). Por isso, se curva ao chorrilho das medidas provisórias, que desvirtuam e engasgam o poder legislativo constitucional.Por isso, admite que o destino de suas mesas seja decidido pelo Executivo, vizinho na chamada Praça dos Três Poderes.
Quanto à Justiça, as suas instâncias máximas mandam igualmente sinais conflitantes para a harmonia das instituições. A dizer verdade, a denominada judicialização é criatura que visa a preencher um vazio, e por tal razão a culpa maior estará não em quem a urde, mas em quem cria as condições para que exista. Certamente o Conselho Nacional de Justiça se empenha em combater nas togas não só o corporativismo, mas igualmente o compadrio. A própria atividade, todavia, se ressente de barreiras, como o demonstra o acinte da inconstitucional censura judicial, que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a princípio através de liminar do Desembargador Dacio Vieira, ousou impor – em favor de Fernando Sarney, filho do Presidente do Senado – sobre as colunas do jornal O Estado de São Paulo. Dentro da morosidade que a caracteriza e a ocasional ineficácia, a permanência do recurso à censura é chaga purulenta e desrespeito à Constituição e àqueles que gritaram, ao ensejo de sua promulgação, Censura, nunca mais !
Chegamos, por esse aturado caminho, aos páramos da Primeira Magistratura da Nação. Dela tenho pouco a falar, por muito já haver-lhe dito a respeito. Refira-se apenas que participa – e com as gostosas delícias referidas por Aristófanes [3]– da presente desordem institucional.
[1] Um Estudo de História.
[2] Tempos dífíceis (tradução livre).
[3] Poeta cômico ateniense, 445 – 386 a.C.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
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Um comentário:
Talvez esta figura citada no artigo "conglomerado Frankenstein"expresse uma angústia que eu tenho: perdeu-se a capacidade, no âmbito público,de se pensar um todo coerente, de se produzir um conjunto com estrutura e não, um todo com "cara"de somatório de partes desconexas atendendo a interesses particulares, fingindo atender aos interesses coletivos. Não tem saída, vence o pedaço, a parte.
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