quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A Triste Sina do Juiz Garzón

                                
        O que está acontecendo na Espanha com o juiz Baltazar Garzón talvez nem um escritor de ficção se atrevesse a imaginar e muito menos a colocar no papel. Como releva a tal ponto do absurdo, temeria afugentar o leitor ao embrenhar-se em descrições que lhe pareceriam tão longe da realidade e do bom senso.
       Pois o perigo aí mesmo reside. Não se pode esquecer de que se trata de terra onde personagens reais, em meio a uma guerra civil fratricida, gritam a plenos pulmões ‘Viva a morte!’
      O magistrado Baltazar Garzón é um gigante no direito penal internacional. Foi ele que acabou com a impunidade de figuras como a do general Augusto Pinochet, que pensara poder visitar em 1998 com toda tranquilidade em Londres  sua particular amiga Lady Thatcher, fiando-se em status especial que ele próprio se autoconcedera.
     A sua detenção no Reino Unido, e a luta para livrar-se do longo braço da Lei – que afinal o Ministro do Interior, Jack Straw, do gabinete de Tony Blair lhe concederia – serviria para redespertar a justiça chilena na avaliação da responsabilidade do Ditador Pinochet quanto ao atropelo dos direitos humanos durante a noite do regime militar que caíu sobre o Chile após a derrubada e assassínio do Presidente Allende.
     Farsa ou deboche seriam palavras que quiçá não definiriam adequadamente o que ora o Tribunal Supremo da Justiça espanhola semelha empenhado em infligir contra um juiz que se alevantou muito acima de o que se espera de seu ofício.
    Como se um não fosse bastante, os perseguidores de Garzón intentam contra ele – bem arrimados pelo Partido do Povo (PP), ora no poder – três processos, todos eles pressurosamente acolhidos pelo Tribunal Supremo. No primeiro deles, Baltazar Garzón é acusado de abuso deliberado de seus poderes como juiz (assinale-se que a promotoria espanhola se recusou a participar da acusação.
    Nesse caso, se lhe acusa de violar as normas processuais de conversas de advogados de defesa e os prisioneiros. A investigação de corrupção atinge o PP do primeiro Ministro Mariano Rajoy (que criticara a atuação de Garzón no caso Gürtel, que implicara dirigentes do PP em Valencia e Madri).
    No segundo julgamento, Garzón será acusado de distorcer a lei ao abrir investigação judicial sobre a morte ou desaparecimento de cento e dez mil pessoas, assassinada durante o regime do general Francisco Franco.
    O terceiro caso se refere a alegações de que o juiz Garzón deveria ter recusado envolvimento em investigação contra o Banco Santander. De acordo com o autor  da ação, por haver recebido fundos do Santander em um ano sabático, o juiz deveria ter alegado suspeição.
    Está em curso um autêntico teatro do absurdo, que Ionescu talvez reconhecesse. Os acusadores de Garzón desejam suprir pelo número das ações a sua falta de pertinência.
    A esse propósito, há comentários que desnudam as reais intenções dos verdugos do juiz Baltazar Garzón. “Passados 36 anos da morte de Franco, a Espanha está enfim processando alguém em relação aos crimes de sua ditadura – o juiz que tentou investigar esses crimes (!)”, consoante declarou Reed Brody, assessor jurídico da Human Rights Watch.    
     Diante do tribunal que parece empenhado em transformá-lo em exemplo (do que é difícil determinar) grupos de manifestantes gritam em apoio ao homem que perseguiu ditadores e políticos corruptos de todo o planeta (inclusive a camarilha jurídica de George Bush, que procurou dar fundamento às prisões indefinidas de Guantánamo), assim como quadrilhas de traficantes e o grupo terrorista basco ETA.
    O mundo está virado de cabeça para baixo. Querem pegá-lo”, disse a argentina Manoli Labrador, com o lenço branco das Mães da Praça de Maio.
    A intenção dos magistrados do Tribunal Supremo se afigura óbvia. Desejam livrar-se da incômoda e intemerata figura de Baltazar Garzón. Para tanto, pensando valer-se da curul para afastar muitos anos do exercício da justiça alguém que pelo porte, coragem, e seriedade se distingue.  Nesse sentido, e no afã de condená-lo, ousam fazê-lo ao arrepio dos próprios promotores. Com efeito, como sublinhou o juiz Baltazar Garzon “os promotores do Estado estão para garantir que as normas processuais sejam seguidas e decidiram conscientemente que não contestariam minha decisão.”
    Como se vê, as supostas razões dos que se assanham contra Garzón têm muito a ver com os ‘argumentos’ do lobo para com o cordeiro: ‘se não foi seu pai, foi seu avô!’.
    A caminhada e o ordálio de Garzón serão longos e cruéis. Da direita e dos defensores da ditadura franquista não se poderia esperar outra coisa. O que surpreende é que tais argumentos prosperem em uma democracia.
    Mais tarde a Corte Europeia dos Direitos Humanos, que há muito não mais reconhece  anístia para a tortura e atentados contra os direitos humanos[1], deverá derrubar a iníqua sentença que ora se maquina no dito Tribunal Supremo. Mas será a tempo de proporcionar a Baltazar Garzón a verdadeira justiça ?



(Fontes: Folha de S. Paulo, El Pais )



[1] Evolução importante do direito humanitário, que a maioria do Supremo Tribunal Federal, malgrado o pensar  de ministros como Ayres Britto, ainda não assimilou devidamente.

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