sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Os Processos contra o Juiz Garzón

       
        Será com assombro e estranheza que a sociedade espanhola observa o inaudito e concertado ataque da direita contra o juiz Baltasar Garzón ? Qual a motivação dessa investida, que logrou colocar no banco dos réus  magistrado caracterizado não só pela independência e coragem, mas também pelas próprias realizações, a começar pela marcante iniciativa de requerer a extradição do ex-ditador General Augusto Pinochet, então em visita na Inglaterra à dileta amiga Lady Margareth Thatcher ?
       A doutrina da justiça espanhola de jurisdição universal permitira a esse ainda desconhecido juiz, em outubro de 1998, escrever relevante precedente no direito penal internacional. Os infratores dos direitos humanos – e não apenas o notório general Pinochet – sentiram o golpe , sobretudo o inesperado longo braço da Justiça.
      A detenção domiciliar do déspota, a apreciação da questão pela Alta Corte da Câmara dos Lords, fragilizariam as anteriores blindagens desses lúgubres personagens. Dessarte, Pinochet, ao regressar a pátria, se depararia com justiça mais consciente dos respectivos deveres. Além disso, a gesta pioneira de Garzón está associada com a criação do Tribunal Penal Internacional.
       Se este caso célebre lhe assegurava a presença na evolução dessa modalidade de direito, na aturada luta contra a impunidade, tampouco terá sido motivo para que o magistrado espanhol pensasse haver já contribuído o bastante.
      A tríade de ações desencadeadas contra Garzón constitui prova não só de que a direita continua a encará-lo como ameaça, senão do peculiar e insólito poder que ela dá a impressão de manter na justiça.   
      De todos os processos – e o fato de ter acolhido três tende a lançar pesadas sombras acerca das perspectivas do ilustre réu superar o inaudito desafio – movidos no âmbito do Tribunal Supremo de Espanha, o de maior relevo será aquele impetrado  pela associação de extrema-direita Manos Limpias, em que se acusa o juiz Garzón de abuso de poder.
      Em outubro de 2008 Garzón iniciara investigação de milhares de mortes e desaparecimentos ocorridos na guerra civil espanhola e durante a longa ditadura de Francisco Franco. Questionado o seu direito de jurisdição, o magistrado concedeu às autoridades locais o direito de exumar os corpos não-identificados nas fossas comuns.
     Ironicamente, como assinala Lucia Socam, coordenadora dos parentes das vítimas, acabam de ser exumados 17 corpos de mulheres liquidadas pelas tropas de Franco, em novembro de 1937, acusadas de serem partidárias ou terem laços de parentesco com os opositores do general Franco. Nas suas palavras, “Garzón foi o único juiz que estava pronto a ouvi-las. É por isso absurda ironia que, ao lhes ser feita justiça, ele deva agora defender-se por fazer o que deveria ser encargo de qualquer sistema democrático”.
     A ‘falta’ de Baltasar Garzón, segundo Manos Limpias, teria sido haver transgredido os seus deveres legais, desrespeitando a anistia geral de 1977 que abrange os crimes cometidos durante a guerra civil.         
     Nesta primeira ação, a par da tentativa de impedir que, para terem sepultura digna, as vítimas da guerra civil espanhola saiam das fossas comuns a que o ódio franquista as consignara, assombra igualmente ‘a ameaça aos direitos humanos e a independência judicial’. Essas últimas palavras - que são a justificativa da presença da Anistia Internacional – bem refletem a afronta ao direito internacional humanitário, e o escândalo da situação. A tal propósito, o jornal El País manifestou preocupação com o dano infligido pelo processo para a imagem da Espanha democrática.
     O papel exercido na ação pelo juiz Luciano Varela, que pronunciou o indiciamento de Baltasar Garzón, desperta mais do que espécie. Por isso, o advogado de Garzón pediu que o Tribunal Supremo não acolhesse o processo, dada a suspeição do juiz Varela, que orientou Manos Limpias quanto à redação de sua acusação contra Garzón. Se tal incrível intervenção não fora bastante para inviabilizar uma causa ...
     Os outros dois processos mais indicam a tendência da Corte espanhola de ouvir acusações contra o juiz Garzón, a quem se apresentaria como magistrado problemático. Dentro dessa interpretação, que tende para o pessimismo, o segundo e sobretudo o terceiro mais parecem compor um suposto naipe de infrações, de modo a justificar possível condenação.
    Desses dois, o alegado desvio de financiamento de pesquisa, recebido do Banco Santander, em viagem aos Estados Unidos, é o que semelha de menor peso.
     O outro se aplica à determinação de escuta das conversas entre advogados e acusados de lavagens de fundos. Considerada ilegal pela defesa dos réus, a intervenção de Garzón foi aprovada pela promotoria, que por essa razão não participou da acusação contra o juiz.
     Como se verifica, o Tribunal Supremo, malgrado  vícios redibitórios nas ações – suspeição do juiz Varela – além da negativa da Promotoria Pública de associar-se na acusação contra o juiz Baltasar Garzón, semelha inexorável no desígnio de levar a cabo o julgamento.
    Sobre o intrépido juiz pende a espada de Dâmocles de  suspensão na magistratura de até vinte anos. Sem entrar no mérito da incriminação, como Baltasar Garzón tem 56 anos, a confirmação de tal despautério implicaria em iniqua e inapelável condenação.
    Seria de augurar-se que a visão sombria seja afastada. O erro na apreciação seria motivo de regozijo. Infelizmente, o comportamento até agora do Tribunal Supremo não corrobora votos formulados por esperança, tão tenaz quanto humana.



( Fonte: International Herald Tribune )   

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