segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Eu Acuso

                                         
         Émile Zola publica no jornal l’Aurore, a treze de janeiro de 1898 o célebre J’Accuse (Eu Acuso). Essa famosa catilinária, divulgada três dias depois do escandaloso juízo militar que  inocentara o verdadeiro culpado pelo crime de traição, o oficial Charles Ferdinand Esterhazy, na verdade reabriu o affaire Dreyfus. O inocente Alfred Dreyfus fora ignominiosamente despojado de suas insígnias militares e mandado para a famigerada prisão da Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. De lá voltaria, com a inocência reafirmada, mas  homem alquebrado pela brutal severidade de execrável episódio de antissemitismo. Esterhazy, refugiado na Inglaterra, excluído o espontâneo consenso de opinião pública, jamais sofreria ação judicial ou qualquer eventual punição pelo crime de alta traição que cometera. Nascido em 1847, faleceu na inglesa Harpenden, em 1923. Dreyfus, por sua vez, indultado em 1899, e reabilitado em 1906, morreu em 1935 (nascera em 1859).
         As injustiças,  posto que clamorosamente trazidas a lume, continuam a repetir-se. O suplício do povo sírio hoje submetido aos cruéis caprichos de Bashar al-Assad, de profissão oftalmólogo, mas déspota por  vocação familial, e de seu regime alauíta, sustentado pelo irmão Maher al-Assad e por toda a parafernália do  respectivo sistema de repressão  por quanto tempo ainda será toleradopela comunidade internacional ?
          A insurreição síria, iniciada em março de 2011, reveste a principio orientação pacífica, centrada em manifestações populares, que reclamam da ditadura alauíta a democracia. A despeito de promessas de Bashar al-Assad, inclusive com a acenada supressão de leis de exceção, às palavras de abertura, muitas delas proferidas da curul presidencial, não corresponderam atos concretos. Com efeito, os atos do regime, aplicados seja pelas forças de segurança, seja pelo exército e notadamente a 4ª divisão blindada do irmão Maher, seja enfim – e de forma tão solerte quão continuada – por  atiradores assassinos, abraçaram com cruel denodo a autêntica resposta de todo tirano ameaçado.
         Acuso, por conseguinte, a Bashar al-Assad, de querer perpetuar-se no poder através do sangue dos súditos. É a nua repressão a resposta do ditador aos gritos pela liberdade de seu povo. Pelo falto cômputo das organizações de direitos humanos, a ponta do iceberg da chacina síria corresponde a 5800 mortes, sem falar da tortura e das masmorras, que escondem o sofrimento anônimo de multidões, culpadas do anseio por um governo mais livre.  Além dos manifestantes derribados pelo crime de gritar nas ruas e praças por um regime democrático, há inúmeras crianças vítimas da sanha dos carrascos.
         A população síria tomou caminho mais árduo e solitário na prossecução da luta pela liberdade. Os esbirros de Bashar torturaram um caricaturista, Ali Ferzat, pelo traço em que o tirano de Damasco toma carona com Muammar Kaddafi, então homiziado em Sirte. Sem as bombas da Nato, nem os contingentes do Qatar, a escolha do povo sírio se expressa em passeatas e na surda resistência de cidades como Homs e Dara. Através do exemplo e da insatisfação geral, a resistência se espraia às divisões comuns do exército, com o fenômeno da confraternização do cidadão armado. É a manifesta injustiça que apressa o contágio revolucionário. Inúmeras revoluções no passado, como a Francesa, assinalam essa característica do processo, quando a conscientização se espalha e se aprofunda.
       No entanto, a sublevação síria, malgrado ocasionais exceções, se marca pelo respectivo caráter pacífico,a  que a repressão desapiedada das forças identificadas com o regime ignora com a sua intrínseca crueldade. No desespero de sistema fundado na coerção, prevalece a  lei do fuzil que só serve para matar.
       Perante o tribunal da opinião pública mundial, Bashar al-Assad não está sozinho no banco dos réus.
      Nessa sala, visitada pelo cheiro acre da pólvora e a fumaça de tantas dissimulações, vejo algumas figuras que a seu contragosto carecem de maior exposição.
      Acuso os governantes e diplomacias da República Popular da China e da Federação Russa. Por afinidades ideológicas, e pelo consequente temor do exemplo, Beijing e Moscou têm sido sédulos protetores do tirano Bashar. Não é pequena ajuda, por impossibilitar, através do veto, qualquer ação internacional em nome do Conselho de Segurança das Nações Unidas,  o único órgão autorizado para intervir em situações como a da Síria, em que os direitos humanos são escarnecidos, conspurcados e pisoteados.
     Acuso  governos representados nas Nações Unidas que, por premeditada omissão,  ou pretendida crença na suposta boa-fé e honestidade do déspota Bashar, se prestam a  triste comédia de inócuas visitas de representantes de direitos humanos, visitas essas que não salvam  nenhum manifestante, mas ensejam a um regime violento e cambaleante a oportunidade de exibi-las como provas de confiança e apoio, o que na verdade são, pelo fato de implicitamente reconhecerem a cruel e corrupta ditadura.
    Acuso, por fim, a Missão da Liga Árabe, pela encenação de monitoramente, de que encarregou como chefe o sudanês general Mohamed al-Dabi, comparsa do general Omar al-Bashir, réprobo indiciado pelo Tribunal Penal Internacional. Tal missão tem sido cruamente empregada como biombo daninho. O próprio líder do grupo, al-Dabi, não se pejou de dizer que ‘não há provas até agora da atuação de snipers[1].
     A esse propósito, Ali Salem al-Deqbasi, chefe do grupo de assessoria da Liga Árabe, acertadamente recomendou a retirada de seus observadores da Síria, por “dar cobertura para o exercício de práticas inumanas sob as vistas da Liga Árabe”.
      A reprovação internacional, dos Estados Unidos à União Européia, da Turquia a Arábia Saudita, da Jordânia e até de modulado distanciamento do Lider Supremo do regime dos ayatollahs, precisa ganhar mais ímpeto e vigor, a fim de impedir a afrontosa continuação de cínico massacre, que deseja vencer pela imitação do sinistro método aplicado pelo predecessor Hafez al-Assad, contra a cidadela de Hama, em 1982. Não pela palavra, mas pela eliminação nua e crua de seus opositores.  
      O Primeiro Ministro da Turquia, Recip Erdogan,  recomendou  recentemente a Bashar a renúncia, se não deseja imitar a sorte reserva a Kaddafi. E até mesmo o rei Abdullah II, da Jordânia, procurou mostrar-lhe essa porta, cuja abertura in extremis pode durar pouco.
       Se Bashar é o homem doente do Oriente Médio, seria melhor para ele que se conscientizasse do caráter terminal desta condição.
       Por sua vez, o silêncio não é a resposta mais adequada das principais nações. Pela pressão, tornar mais onerosa e desgastante a recusa dos seus grandes patrocinadores remanescentes. Pela palavra e o acirramento das medidas cabíveis, fazer ainda mais inútil a violência exercida na cínica instrumentalização de uma visita de alegado monitoramento.
      Em outras palavras, transformar o idílico propósito do ditador de uma macabra Vila Potionkin no inferno da certeza de que, quer queira ou não, Bashar al-Assad, caminhe, enquanto é tempo, para o próprio fim político.
     Basta com o sonho megalomaníaco de desejar apegar-se ao poder. Não se deve, nem se pode admitir que um déspota se eternize utilizando a própria população como refém.  
 



( Fonte: CNN )





[1] Atiradores isolados.

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