quinta-feira, 3 de março de 2011

O Problema Kadaffi

Pelo temperamento e suas idiossincrasias, já não seria difícil antever que o caso do coronel Muammar Kadaffi tenderia a diferençar-se das duas amostras pregressas da revolução democrática. Ao contrário de seus vizinhos Ben Ali, na Tunísia, e Hosni Mubarak, no Egito que, a despeito de também ditadores, acabaram por curvar-se à vontade popular, e a deixar o poder a que se tinham apegado por tanto tempo, o coronel Kadaffi, cuja ditadura se implantara em 1969 – bem antes portanto dos adventos da dupla acima referida – não revela a menor intenção de submeter-se à manifesta vontade da maioria dos líbios.
Pela sua postura messiânica, pela aparente convicção pessoal da respectiva indispensabilidade, e não menos por causa da longa prática do poder absoluto, como assinalei em blog anterior, Kadaffi é o retrato a céu aberto de Dorian Gray. No seu entender, turvado decerto, mas assumido com a correspondente convicção, os habitantes da Jamairia não tem a capacidade de decidir acerca do destino nacional.
Se, no auge do desvairo, eles pretenderem escolher sobre quem deva governá-lo e, sobretudo, a respeito de quem já não mais deva presidir a nação líbica, a reação do autocrata será sempre igual em considerá-los incapazes de tomar tão relevante decisão. Nesse sentido, dependendo das circunstâncias, ele os tratará com soberano menosprezo, ou então os apodará de cães raivosos, ou coisa que valha, de acordo com a mais ofensiva terminologia islâmica.
Malgrado se haja esforçado em ocultar da comunidade internacional a sua maneira de enfrentar o desafio da revolução – em que seguiu a cartilha iraniana, que é o modelo atualizado da resposta dos tiranos às ameaças dos súditos insatisfeitos -, o mundo tem assistido ao levante de disparatada, porém corajosa coalizão opositora contra o domínio do coronel. Em função da rejeição provocada pelo ditador, embora em termos de armamentos e equipamento bélico, exista marcada diferença, a frente das oposições tem ido muito mais além de o que se poderia esperar.
A disposição de livrar-se do jugo do tirano não é bastante para lograr o objetivo, se Kadaffi retém, por vínculos tribais e a força inercial do poder estabelecido, meios bastantes para colocar em dúvida o resultado final desse prélio. A imagem recente de opositores que se dispõem a enfrentar a artilharia do coronel com coquetéis molotov semelha a propósito deveras ilustrativa.
Diante dos crimes contra a humanidade de Kadaffi – que levaram o Conselho de Segurança a adotar várias sanções contra o governo da Líbia, assim como a referir ao Tribunal Penal Internacional a investigação dos alegados crimes do coronel – a comunidade internacional tem apoiado a coalizão opositora e condenado as transgressões do coronel. O próprio Barack Obama – e sua Secretária de Estado Hillary Clinton – não tem deixado dúvidas quanto ao sentimento de que Muammar Kadaffi deva renunciar sem mais delongas.
A tais admoestações verbais, Kadaffi tem respondido com o emprego intensivo das forças que lhe restam, sobretudo as aéreas, com seus bombardeios das cidades liberadas pela oposição, bem como com arrebanhamento de mercenários, que são mandados expugnar os bastiões adversários.
É inevitável vislumbrar na presente situação inquietante paralelo com o que ocorreu no Iraque, tão logo finda a breve Guerra do Golfo (Operação Tempestade no Deserto, de 25 a 28 de fevereiro de 1991), que escorraçou o exército de Saddam Hussein do Coveite, impondo-lhe fragorosa derrota. Na oportunidade, e com menos ênfase de que seu atual sucessor na Casa Branca, a Administração de George Bush sênior incentivou levante da população xiita no sul do Iraque, através de promessa de derrubada de Saddam Hussein.
Acreditando na probabilidade de apoio efetivo, os xiitas do sul se levantaram, para serem dizimados pela Guarda Republicana de Saddam, sem que, como se sabe, houvesse qualquer intervenção das forças americanas.
Conquanto no papel a movimentação diplomática internacional terá sido maior, até o momento ela não se converteu em nenhuma medida militar (salvo os navios de guerra americanos em águas próximas da Líbia).
A retórica, mesmo forte, não semelha de molde a impressionar o coronel Kadaffi. Se o Ocidente deseja constranger o ditador a respeitar os direitos humanos e, sobretudo, a voz do povo oprimido, deveria pelo menos considerar a implantação de zonas de interdição de tráfego aéreo (no fly zones), a exemplo de o que, mais tarde, imporia a Saddam Hussein. Se não considera ter a força ou as condições políticas de fazê-lo, que se cale, para não induzir, uma vez mais, população perseguida e ameaçada pelo tirano de turno, a levantar-se, na vã esperança, de um apoio que não se concretizará.

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