quarta-feira, 23 de março de 2011

O Ícone da Revolução

Até o dia em que tomou a decisão mais importante da existência, a vida de Mohamed Bouazizi não havia diferido daquela de outros moradores do lugar. Muita labuta e poucas oportunidades de emprego na atrasada, esquecida cidadezinha do interior da Tunísia.
Com trabalho de sol a sol, empurrando a carrocinha de frutas, se esforçava em amealhar o equivalente a dez dólares para que não faltasse comida na mesa da família. Saía para faina dura, e não só pelos magros recursos dos fregueses. Esses nem sempre conseguiam pôr alguns trocados de lado para adquirir produtos que para os pobres poderiam parecer supérfluos.
Para Mohamed, no entanto, não era este o principal obstáculo no seu diuturno caminho. Haveria acaso comparação entre a amical convivência com a sofrida gente do lugar e a sarna dos inspetores venais ?
Não estava sozinho em arrostar a inesperada e sempre importuna presença dos temíveis fiscais do município, decerto mais interessados em achacar os vendedores de rua, do que em verificar-lhes a conformidade com posturas citadinas. Se não tinha escolha, pois não lograra exercer nenhum outro meio honesto de prover o sustento familiar, não era sem preocupação que enfrentava a árdua jornada, diante da alternativa de ter a velha carrocinha confiscada ou desembolsar quantia equivalente a cinquenta dólares. Aonde encontrar uma tal soma, ele que diariamente corria atrás do correspondente a um quinto dessa propina ?
Naquela manhã de dezessete de dezembro, com largas passadas e o ritual anúncio dos minguados frutos da estação, Mohamed se acercou do centro de Sidi Bouzid. A princípio, não se deu conta de que algum fiscal viesse em seu encalço.
Sem meias palavras, Faida Hamdy, inspetora municipal, o intima a apresentar a autorização competente.
Um parêntese semelha aqui necessário. Mestre Michel Foucault nos ensina que, ao contrário do pensado por muitos, o poder se aninha até nos postos mais mofinos e obscuros. A seus detentores, basta-lhes brandir a dupla vara de vigiar e punir[1].
Por certo, sem saber do estudo do professor da Sorbonne, a inspetora, ao dirigir a palavra àquele vendedor, nesse dia dezessete – que, para um povo vizinho e mediterrâneo, é número de mau augúrio – o faz com a visceral, afrontosa segurança da autoridade.
O pobre Mohamed Bouazizi não tem consigo nenhum papel. Poderia dizer talvez que se cansou de buscá-lo nos meandros da eterna burocracia do subdesenvolvimento. Ou então ponderar que o fato de haver nascido pobre na loteria do nascimento o submete a esquálida viagem em um quase deserto.
Tais frases, contudo, não moram no cotidiano do vendedor de frutas. Muito cedo aprendera o próprio ofício, constrangido por fome e necessidade, e adentrou as ruas sem mesmo ter ideia do que poderia ser a universidade para os mais bafejados pela sorte.
Existe difundida crença de que tudo está escrito. Maktub. Nesse quadro, sem documentos, a altercação de Mohamed com Faida Hamdy não parecia ser a derradeira e desesperada tentativa de quem se descobre perdido.
É um triste e iníquo diálogo que não se encena apenas em Sidi Bouzid mas nas ruas, praças e travessas desse vasto mundo. Lá se encontram os prepostos do poder estabelecido e o povaréu honesto que nesses logradouros, de peito aberto, busca alimento com o suor de sua fronte.
A fiscal Faida se julga desrespeitada e, em nome do município, se apodera das vetustas balanças de que se servia Mohamed. A representante do poder público não se detém, todavia, na apreensão dos instrumentos do ganha-pão do modesto vendedor rueiro.
Em frente da gente do lugar, que sempre acorre quando algo de diverso acontece na cercania, a inspetora municipal não trepidou em esbofetear um adulto, cidadão como ela da República da Tunísia. Dirão alguns que é a voz do zé-povinho, e por isso falta de fundamento. Quem sabe, um historiador no futuro glosará o acréscimo, como previsível floreio em coroa de espinhos.
Sem embargo, o humilhado Mohamed Bouazizi ainda não se desencoraja. Talvez por ora ignore que, como outrem no passado, é vítima de processo em que se acha condenado a priori.
O desapossado Mohamed, sob o aguilhão da esperança, intenta pleitear na sede do município a atenção dos funcionários para a sua causa, a qual, por mísera que se afigure, não deixa de ter, para este trabalhador, suma e vital importância.
Dizem que não se cansou com as primeiras mostras de indiferença e menosprezo que veio a colher nessa travessia de crescente e raivoso desespero. Se as portas do palácio público se fecham, se os poderosos do lugarejo lhe dão as costas, Bouazizi persiste no aturado empenho, até o instante em que, como raio a riscar antes risonho céu, algo se forme dentro da própria mente.
É cólera milenar que na batalha contra a injustiça o liga – sem que o saiba – a herói da antiguidade e a outros personagens que no fio dos tempos não hesitaram em dar-lhe livre curso, malgrado as consequências.
Neste momento, Mohamed Bouazizi se distancia do resto dos homens. Decide ser mártir. Tampouco sabe que é palavra rica, vinda do grego antigo. Mas sem ter tido lazer nem horas a jogar fora em bolorentos livros, Mohamed conhece o essencial, pois que ele também quer dar um testemunho.
Em frente do palácio municipal, a exemplo dos antigos sacrifícios, Mohamed dispõe a sua pira. Ao invés dos gravetos e da lenha, decide, por uma e determinante vez, transformar-se na fogueira que arderá menos em desespero, do que em denúncia da inaceitável situação.
Como todo herói, Bouazizi tem vaga, incerta noção dos resultados de seu ato extremo. Move a ele, no entanto, a férrea resolução do protesto contra a injustiça, da qual doravante se dissocia para todo o sempre.
Mal sabia que através deste gesto ele atearia a centelha da esperança para uma vasta nação. Do canto perdido do interior da Tunísia,ressurgiria a teimosa chama da liberdade. Como rastilho de pólvora, o testemunho de Bouazizi desencadearia pressões inauditas e obrigaria, a 28 de dezembro, o tirano Ben Ali a descer as escadas palacianas e prestar patética homenagem à figura enfaixada, com os lábios carbonizados à mostra. A quatro de janeiro, o sofrimento do ícone da liberdade e da democracia, cessaria afinal.
Com estranhável assombro dos funcionários municipais que lhe tinham votado o desprezo de praxe, por sua causa outras partidas se sucederiam. Primeiro, Ben Ali, depois de 23 anos como senhor absoluto da Tunísia. Segundo, Hosni Moubarak, após três decênios. Quais serão os próximos, não nos é permitido antever.
Entrementes, ladeado pelo rubro pavilhão da Tunísia, no caiado branco austero da sepultura, repousa o antes pobre Mohamed Bouazizi, que hoje vive na memória dos homens, no seleto círculo dos poucos que souberam dar tão profundo sentido à sua passagem terrena.

( Fonte subsidiária: CNN )

[1] Surveiller et punir, Éditions Gallimard, 1975.

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