quarta-feira, 9 de março de 2011

O Problema Kadaffi (II)

A negação da realidade não é apenas um traço na estratégia de Muammar Kadaffi, mas característica central em personalidade megalômana e delirante.
Nos seus mais de quarenta anos de ditadura, o projeto de poder do major Kadaffi não se baseou no desígnio de construir a união em um país desértico, cujas principais cidades, também como caranguejos, se apegam ao litoral.
Nação fraca e retrógrada, ao longo de seu comprido, quase interminável mando, Kadaffi não se preocupou em fazê-la superar os laços tribais que nela fomentam a desunião e o atraso. Pelo contrário.Não buscou promover a reconciliação com a tribu oriental que prosperara ao ensejo do reino de Idris I. A antiga província da Cirenaica seria castigada ad aeternum por abrigar os Senoussi, culpados de serem partidários do deposto rei.
Por outro lado, tratou de beneficiar a própria tribo e suas aliadas. A par do culto da personalidade, que se afirmou notadamente na publicação do Livro Verde, a seis anos da gloriosa revolução, com o qual se autolaureava profeta e tirano, a subsequente riqueza petrolífera se traduziria em visiões pan-africanas e projetos terroristas.
A própria e delirante imagem da realidade, desde cedo Kadaffi cuidaria de propalá-la nos respectivos domínios. Temeroso de carismas rivais, o ditador alimentaria com demencial pertinácia o seu projeto. Assim, os meios de comunicação líbicos tudo de bom atribuem a Kadaffi que, embora modesta e formalmente destituído de todos os cargos públicos, a tudo provê.
Seria ridículo se não fosse trágico que o insano mutismo acerca de outras individualidades se estenda até a jogadores de futebol, que para não ofuscarem, inda que por instantes, o nume da divindade, devem ser designados por números e não nomes ou alcunhas.
Esse tiranete que não se pejava em comprar títulos doutorais para os próprios filhos – o que era gostosamente reciprocado por respeitáveis instituições de ensino como a London School of Economics – acabara supostamente por convencer-se de que a sua condição de pária internacional não lhe aproveitava. Por isso, pôs fim ao programa nuclear líbico e aceitou entregar os executores do megacídio de Lockerbie.
Quando a revolução democrática árabe bateria às suas portas, as encontraria escancaradas, dada a privação extrema que o Supremo Líder da Jamairia impunha a seus ingratos filhos.
Não obstante, essa alienação da realidade que a tantos predispunha a aceitar a oferta do cálice da liberdade iria conduzir o ditador a cruel e inveterada negação de tudo o que assinalara a passagem dos ventos da insurreição em outras plagas.
A negação seria erigida em política abrangente. Primo, serviria para contestar qualquer realidade à revolta. De acordo com os meios de comunicação do ditador, ninguém se levantava contra ele. Os eventuais contestadores não passavam de jovens drogados e iludidos pelas maquinações da al Qaida. Secondo, batalhas são transformadas em vitórias, e a palavra do grande condutor é obedecida em toda parte. Terzo, esta dissociação da realidade também serve para justificar os bombardeios de civis, porque, na verdade, não passam de punhados de loucos e drogados, que, pela própria insensatez, se dissociam da Nação líbica.
De tal forma, Ben Ali, na Tunísia, e Hosni Mubarak, no Egito, são modelos de racionalidade e de temperança democrática, se cotejados com o coronel Muammar el-Kadaffi.
Pela sua manifesta disposição à resistência extremada, que emula a de outros líderes no passado, Kadaffi a dificultar não só uma composição interna – a exemplo do ocorrido nas duas passagens precedentes da revolução -, senão a acirrar a estratégia de extermínio da própria gente.
Corrompido pelo poder absoluto, e com tal profusão de ilusões a turbar-lhe a mente, o tirano tenderá a desconhecer o que a maioria opositora escreve nos esquálidos muros de um país que é o retrato de um projeto insano de governo.
E, no entanto, as retorcidas letras da tosca mensagem, garatujadas com o carvão das ruinas e o sangue das vítimas, crescem diante dele, imperiosas e ineludíveis.
Por outro lado, o Ocidente ameaça com a intervenção da zona de exclusão aérea, o Tribunal Penal Internacional examina o ajuizamento do ditador por crimes contra a humanidade, e se acena com a convocação do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
É bom lembrar, todavia, que resolução autorizando a imposição da no fly zone carece da aprovação unânime das potências detentoras do veto. Será que a Federação Russa e a República Popular da China estarão concordes ?

( Fontes: International Herald Tribune e O Globo )

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