quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O Escândalo da Censura ao Estadão

A 31 de julho de 2009, o Desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal informa o jornal ‘O Estado de São Paulo’ da proibição de publicar informações sobre a Operação Boi Barrica envolvendo Fernando Sarney.
Na verdade, este não é o início do processo movido por Fernando Sarney. Em ação inibitória, com pedido de liminar contra o Estado, Fernando Sarney alega que o jornal “feriu seu direito à privacidade”quando publicou diálogos telefônicos interceptados pela Polícia Federal. A liminar foi negada pelo juiz Daniel Felipe Machado, da 12ª Vara Cível de Brasília.
Infelizmente, tal sentença, que honra juiz de primeira instância, pelo respeito às disposições constitucionais, foi suspensa, por recurso de ‘agravo de instrumento’, no TJ/DF, requerendo Fernando Sarney novo pedido de liminar, para que o jornal fosse censurado.
A história seria diversa se a decisão de primeira instância houvesse sido mantida.
A três de agosto de 2009, no meu blog “Censura: o quê fazer para extirpá-la” me ocupo por primeira vez dessa liminar. É a repercussão inicial, com a geral exprobração da medida, informada pelo previsível repúdio. A esse respeito, julgo oportuno transcrever juízos de personalidades sobre a interveniência no caso do aludido desembargador.
Maurício Azêdo, Presidente da ABI, classificou como antiética a decisão do desembargador. Por ter convívio social com a família Sarney, deveria declarar-se impedido.
O jurista Fabio Konder Comparato é mais taxativo: “O desembargador não poderia decidir nada sobre a família Sarney porque é amigo íntimo do clã, atentando contra princípios elementares de imparcialidade.”
Por sua vez, o jornalista Jânio de Freitas: “À parte a derrubada ou permanência da liminar da censura, é outra aberração (...) que fosse concedida por um desembargador, Dácio Vieira, dado publicamente como ex-consultor jurídico do Senado e devedor de sua nomeação para o TJ/DF a um movimento de apoio conduzido, entre senadores e outros políticos, pelo então influente Agaciel Maia.”
Tendo presentes as avaliações acima, havia fundadas razões para que fosse acolhida a exceção de suspeição, levantada pelo advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, junto ao TJ/DF, acerca do desembargador Dácio Vieira, que atendera a reivindicação de Fernando Sarney, filho do Presidente do Senado, José Sarney ?
Errado ! (vide a solução do enigma em linhas abaixo).
No blog de 15 de agosto de 2009, “Prolongada a Censura Judicial em favor de Fernando Sarney”, trato dos primeiros passos da citada questão sob a jurisdição do TJ/DF. A par da exceção de suspeição, sobre cujo destino se tratará oportunamente, o advogado Manuel Alceu Ferreira, com o propósito de desfazer o ato inconstitucional de Vieira, entrou com pedido de liminar em mandado de segurança contra o referido ditame do desembargador Dácio Vieira.
A esse respeito, o Desembargador Waldir Leôncio Cordeiro Lopes Júnior, da 2ª Câmara Cível do TJ, não acolheu o pedido de liminar. Em decisão interlocutória, invoca prudência, deixando para deliberar acerca da questão apenas depois de receber informações do próprio Dácio Vieira e o parecer da Procuradoria de Justiça.
Nesta apreciação cronológica da expectativa da ação da Justiça no que tange à censura, semelha importante citar o blog de 3 de setembro de 2009, “Ainda a Censura Judicial”. Há pouco mais de trinta dias da imposição da censura, o Coordenador de Liberdade de Imprensa da Sociedad Interamericana de Prensa (SIP) estima que a censura favorável à família de José Sarney já deveria ter sido derrubada.
A 16 de setembro de 2009, comento no blogPrimeiro Passo na Derrubada da Censura” que sessão secreta do Conselho Especial do TJ/DF, com os 16 desembargadores mais antigos, decretou o afastamento de Dácio Vieira. Em peculiar decisão, o Conselho Especial o considerou suspeito para conceder a liminar, mas estranhamente não julgou que a dita suspeição contaminasse o conteúdo da liminar.
Por isso, não a considerou nula, determinando a redistribuição da ação para outro desembargador.
O blog de 1º de outubro de 2009, “Escândalo Jurídico” reporta com assombro decisão do TJ/DF com relação à ação impetrada por Fernando Sarney. Na verdade, a sentença da 5ª Turma Cível do TJ se insere na estratégia seguida pelo tribunal.
Agora o TJ/DF não se considera foro competente para conhecer da questão e nesse sentido a manda para a 1ª Instância da Justiça Federal do Maranhão ! A censura, sem embargo, continua mantida. Impõe-se, por conseguinte, a conclusão de que não há outra lógica nas decisões do TJ/DF senão a de assegurar a censura pela maior extensão possível de tempo sobre a investigação de Fernando Sarney.
Diante do impasse, o juiz Marlon Reis, do Movimento contra a Corrupção Eleitoral (MCCE)[1] , considera que “pode ter chegado o momento de o Supremo ser estimulado a editar uma súmula vinculante. OAB e ANJ deveriam provocar o Supremo”.
Com o blog de 11 de outubro, “O Requentado Escândalo Jurídico” se menciona o atraso na publicação dos acórdãos no Diário da Justiça e a possível saída para a questão através de recurso ao Supremo Tribunal Federal para obter a salvadora súmula vinculante.
Perpassa aos blogs de novembro uma inconsciente ironia. Não considero, em momento algum, por impensável, a possibilidade de que o Supremo Tribunal Federal, a nossa Corte Constitucional, o tribunal que derrubara a Lei de Imprensa da ditadura, pudesse manifestar-se de outra forma que não a do restabelecimento pleno de cláusula pétrea da Constituição Cidadã, cinzelada nos artigos 5º, inciso IX e 220, com seu parágrafo 2º.
No blog de 2 de novembro, “Censura à Imprensa na América do Sul”, reitero a esperança de súmula vinculante, enquanto se aguarda a liminar do Ministro Cezar Peluso: “hoje esta simbólica mordaça a um jornal que tanto se distinguiu na luta contra a censura do regime militar aguarda a liminar do Ministro do STF, Cezar Peluso.”
O mesmo otimismo se acha no blog de 18 de novembro, com o seu título “É chegada a hora da Súmula Vinculante”. Já em blog de 22 de novembro, malgrado o título, “Continua a Censura”, idêntica e comovente certeza quanto ao desfecho inexorável: “Enquanto se aguarda que o Ministro Cezar Peluso conheça do recurso de reclamação do Estado de São Paulo e conceda a solicitada liminar suspendendo a censura judicial àquele jornal ...”
O ano de 2009 que assistira ao crescimento da expectativa de final feliz na campanha contra a censura judicial, ouviu incrédulo, a dez de dezembro, a nênia que cantava, nas vozes de seis ministros, a sobrevida da censura. O blog de onze de dezembro de 2009 tem como título “Censura: Grave Retrocesso”.
O parecer do relator da liminar, o Ministro Cezar Peluso, rejeitara o recurso de reclamação dos advogados do Estado, sob o argumento de que a revogação da Lei de Imprensa não se aplicava ao caso. Ironicamente, o Ministro Ayres Britto, que fora o relator daquela sentença-marco do Supremo, acolheu o recurso. Também à Ministra Carmen Lúcia não escapou o valor maior que estava em jogo, e que não se poderia perder de vista por ocasionais filigranas jurídicas.
A tal propósito, o intróito do blog se reporta de forma incisiva à preferência do incidental em detrimento de o que importa: “Bizâncio não está morto, nem sepulto sob a horda turca.”
O decano do tribunal, Ministro Celso de Mello, que foi um dos três a sufragar a boa causa (ausentes os Ministros Joaquim Barbosa e Marco Aurélio Mello que muito provavelmente não integrariam a maioria que, objetivamente, permitiu a prorrogação da inconstitucional censura) fez duas importantes observações. De um lado, aludindo aos 41 anos do AI-5 mostrou o que se dissimula por trás da hidra da censura; por outro, assinalou com igual oportunidade que “o poder de cautela é o novo nome da censura no nosso País”.
Para a amarga decepção que nos pregou a inesperada derrota de dezembro,o ano de 2010 surgiu como a contraparte apropriada. Os termos do censura, nunca mais! conservaram as tintas nostálgicas de um passado que, diante da desenvoltura de novos censores, se empalidecia progressivamente.
O ano de 2009 registra, ainda, no entanto, os seguintes recursos, impetrados pela banca que representa o Estado:
- recurso de 23 de novembro, ao Superior Tribunal de Justiça, pedindo que a ação fique em Brasília;
- recurso extraordinário, da mesma data, pedindo ao Supremo Tribunal Federal o fim da censura.
Até o presente, os recursos acima não foram julgados. Segundo observa o Suplemento especial, publicado em 31 de julho de 2010, ‘ (esses) recursos do jornal esbarram na burocracia forense e nos caminhos tortuosos dos códigos’.
Por fim, em 18 de dezembro de 2009, Fernando Sarney desistiu da ação, mas o Estado de São Paulo rejeitou o arquivamento do caso, preferindo aguardar o julgamento do mérito.

Comentário.

Desde 29 de janeiro de 2010, o Estado de São Paulo aguarda definição judicial sobre o processo que o impede de divulgar informações a respeito da Operação Boi Barrica. Nesse sentido, consoante consta de nota publicada em todas as suas edições diárias a partir daquela data – O Estado de São Paulo sob censura – o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira apresentou ao TJ-DF manifestação em que sustenta a preferência do jornal pelo prosseguimento da ação, para que o mérito seja julgado. Na referida nota se registra por quantos dias se estende a censura. Na data de hoje, 24 de fevereiro de 2011, o cômputo é de 573 dias.
Fala-se amiúde em lentidão da justiça. Neste caso, no ano de 2010 o único evento digno de menção foi a publicação do citado Suplemento Especial, a 31 de julho, para assinalar o transcurso do primeiro aniversário da censura inconstitucional imposta ao Estado. Dessarte, excluído o pedido acima de que o mérito seja julgado, não houve qualquer ação digna de menção nas três cortes de que se aguarda resposta.
Data venia, portanto, caberia na questão em tela até o dia de hoje referir, ao invés da lentidão, a inação da justiça.
Diante da situação, em que problema relevante como a de uma liminar manifestamente inconstitucional perdura por tanto tempo, cabe indagar pelas causas determinantes de o que, no juízo presumido do constituinte de 1988, deveria ter sido prontamente derrubado.
Ao contrário desta expectativa, por que prevalecem as condições para continuada permanência da censura inconstitucional ?
Primo, a sociedade civil, depois da expressão de repúdio no primeiro momento, não dá sequência consentânea à tal rejeição. A própria atitude da imprensa reflete essa realidade. Depois da inicial manifestação de formal solidariedade de parte dos grandes órgãos de imprensa, a reação ulterior é de desconsiderar o problema no seu aspecto de classe.
Secondo, a imprensa em geral delega às associações de categoria os reclamos sobre a censura, dentro de enfoque de que constitui problema genérico e que não ameaçaria diretamente a cada um deles.
Terzo, a consequente omissão generalizada de uma denúncia social da persistência da censura tende a levar a justiça nos seus diversos níveis à avaliação de que o problema não reveste urgência, nem teria o indispensável peso para eventual mobilização social.
A falta de conscientização da gravidade do desrespeito explica muitos epifenômenos, como o da insensibilidade da maioria dos ministros do Supremo em não atender, na sessão de dez de dezembro de 2009, o que deveria haver constituido amplo reclamo da sociedade.
Não se trata, como é óbvio, de pressões diretas da sociedade e de seus órgãos representativos para induzir o organismo judicial a agir em consequência, mas manifestações difusas das implicações atribuídas à apreciação de determinada questão em função de sua importância específica, de modo a conscientizar o órgão responsável do peso dispensado pela opinião ao caso em apreço, dada a sua excepcionalidade.
Foi a omissão de qualquer sinalização quanto ao caráter atípico de o que estava sendo julgado naquele dia que terá induzido boa parte da maioria dos ministros a encarar o juizo como episódio ordinário, sem o valor simbólico que continha. Se tal não escapou ao Ministro Celso de Mello, a sua percepção como membro do colegiado não poderia mostrar aos demais que não se poderia dar visão burocrático-jurídica àquela sentença, o que de fato ocorreu, com a prevalência dos critérios procedimentais enunciados pelo relator Peluso. Por força disso, a Corte não cresceu diante da oportunidade, preferindo ater-se a regras de índole estritamente processual.
A fraca participação da sociedade – o que não ocorreria, v.g., na sessão dedicada à vigência da Lei da Ficha Limpa – deixou de contribuir para que a corte empolgasse a ocasião e privilegiasse o essencial – a quebra da censura – sobre o acessório (se o recurso de reclamação escolhido pelos advogados do Estado se adequava ou não, em termos processuais, aos fins colimados).
O papel do Supremo, assim como o da sociedade civil, tem grande importância para a defesa e salvaguarda da democracia. Por conseguinte, a escolha dos ministros deveria ser realizada com maior seriedade. A arguição do primeiro ministro designado pela Presidente Dilma Rousseff não teve a propriedade e a abrangência que seriam necessárias – no que, de resto, apenas repetiram rotina de aprovações de afogadilho que deveriam ser evitadas. Se há sobejos indícios de que a escolha do juiz Luiz Fux foi uma boa escolha, importa que o processo de avaliação pelo Senado Federal venha a corresponder à importância do Supremo Tribunal Federal para a construção da democracia nacional.
A censura em todas as suas formas deve ser banida do cenário nacional. A sociedade carece de maior conhecimento quanto à relevância da total supressão da censura, máxime no seu avatar mais pernicioso, que é o da censura judicial.[2] O direito à informação é um privilégio geral da sociedade. Não é prerrogativa de nenhuma classe em especial, mas sim de todas elas, sem exceção.
Logo após a longa noite da supressão do conhecimento, o ódio à mordaça estava bem arraigado em sociedade que havia pago, com sua libra de carne, o exorbitante preço exigido pelos carimbos da censura policialesca. O censura, nunca mais ! era expresso sem ambages pelo Ministro da Justiça Fernando Lyra, e pela plêiade de constituintes que realmente se empenharam em plasmar a Constituição Cidadã de Ulysses Guimarães.
Qualquer cidadão precisa conhecer da longa, difícil luta que afinal conduziu ao banimento da censura pela Constituição de 5 de outubro de 1988. Ela é ignominiosa em todas as formas e disfarces, a começar pela judicial. Na verdade, a censura togada representa virtual punhalada nas costas da democracia, pois o juiz não pode trair a sua própria missão que é a da defesa da Lei. E haverá lei digna desse nome se a Constituição for desrespeitada ?

[1] Dessa oportuna iniciativa surgiria a lei popular chamada da ‘Ficha Limpa’, i.e., a lei complementar nr. 135/2010.
[2] Conforme Carlos Lauria, coordenador do Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ), o principal problema no Brasil é a censura judicial.

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