Baltasar Garzón, Juiz da Audiência Nacional espanhola, desde muito se assinala pela defesa dos direitos humanos e pelos mandados de prisão internacionais contra violadores contumazes desses direitos humanos. Foi por mandado de prisão (1998), por ele expedido, contra o ex-ditador Augusto Pinochet, e acolhido pela justiça inglesa, que se determinou a sua prisão domiciliar. Pinochet, então em visita à boa amiga Margareth Thatcher, se acreditava protegido por imunidades parlamentares, originadas de condições espúrias por ele próprio exigidas quando da transição para o regime democrático. Com o mandado do juiz se iniciou processo que nada teve de simbólico (ficou detido por mais de ano), e quando retornou à pátria, encontrou ambiente diverso e magistrados mais conscientizados dos próprios deveres para com o povo chileno.
Em função de queixa protocolada pela ONG espanhola “Associação pela Dignidade dos Prisioneiros”, o Juiz Garzón redigiu documento de 98 páginas, ora encaminhado à instância do Promotor-Geral para decidir da expedição de mandado de prisão para a Justiça territorial competente, no caso a dos Estados Unidos da América.
São seis as pessoas a serem indiciadas, sob acusação de envolvimento com torturas e maus-tratos de prisioneiros durante a chamada guerra contra o terrorismo da Administração de George W.Bush.
Trata-se dos notórios ‘arquitetos jurídicos’ do sistema que buscou fundamentar ‘legalmente’ a prática da tortura no interrogatório dos prisioneiros, ao arrepio do direito internacional (Convenções de Genebra e outros instumentos internacionais de que Washington é Parte signatária): Alberto Gonzalez, quando a Prisão de Guantánamo foi instalada, assessor jurídico do Pres. Bush e, posteriormente, Secretário de Justiça (Attorney General); John C. Yoo, advogado da Secretaria da Justiça, autor de memoranduns confidenciais em que defende o suposto privilégio da autoridade presidencial de ignorar as Convenções de Genebras (definidas como ‘antiquadas’); Douglas J. Feith (ex-subsecretário de Defesa); David S. Addington (chefe de gabinete e conselheiro jurídico do vice-presidente Dick Cheney; William J. Haynes II, (ex-conselheiro do Departamento de Defesa); e Jay S. Bybee, antigo chefe de John Yoo no Departamento de Justiça.
Lawrence Wilkerson, alto funcionário do State Department na época de Colin Powell, perante comissão do Congresso Americano, testemunhou sob juramento de que o sexteto indigitado acima associou-se (‘colluded’) para desenvolver uma fundamentação (‘rationale’) legal para possibilitar que os detidos pudessem ser submetidos a interrogatórios duros (‘harsh’).
A base jurídica para a eventual expedição do mandado de prisão pela Justiça espanhola reside na circunstância de que cinco cidadãos ou residentes na Espanha, quando detidos no campo de Guantánamo, declararam terem sido aí torturados. Deportados para o país de origem, os cinco foram processados e as ações arquivadas, porque a Suprema Corte espanhola negou conhecer de supostas provas obtidas sob tortura.
O New York Times, ao cobrir o assunto, refere que a ação do Juiz Baltasar Garzón representa um passo para determinar a culpa de membros do alto escalão na recriação de um sistema ‘legal’ de interrogatórios duros (eufemismo para a tortura). Contudo, o artigo se apressa em acrescentar que, consoante alguns especialistas americanos (não designados), mesmo se os mandados forem expedidos o seu significado será mais simbólico do que prático, eis que tais mandados não determinariam em princípio detenções, se os acusados não deixarem os Estados Unidos.
Peço vênia para discordar. A ação do Juiz Baltasar Garzón pode ser denominada simbólica no sentido etimológico do vocábulo grego originário, v.g. sumbolos, isto é sinal de identidade.
Diante da inação de muitos, é importante a iniciativa do magistrado espanhol não só para estimagtizar a restauração da tortura como meio legal na oitiva de depoimentos, senão para identificar publicamente os responsáveis.
A partir da denúncia legal se inicia para os indiciados – e a lista está longe de ser completa – uma nova fase existencial. Qualquer deslocamento ao exterior deve ser sopesado com muito cuidado. O general Augusto Pinochet disto forneceu involuntário exemplo.
segunda-feira, 30 de março de 2009
sábado, 28 de março de 2009
Colcha de Retalhos (III)
O Casal Kirchner – discípulos do professor Hugo Chávez
Cristina e Nestor Kirchner lograram o seu objetivo – antecipar para o próximo dia 28 de junho as eleições legislativas, que renovarão metade da Câmara e um terço do Senado. Com isso contam evitar – ou pelo menor diminuir – o desgaste político com a crise. Há protestos de pressões do Executivo Federal sobre os governadores estaduais, com abruptas e suspeitas mudanças de voto, como no caso da província da Terra do Fogo.
Continua, por outro lado, o combate do casal K com o grupo Clarin. Em breve será encaminhado ao Congresso projeto de lei sobre serviços de Comunicação Audiovisual, que visa derrogar a vigente Lei de Radiodifusão. Comenta-se que as mudanças na legislação têm escopo casuista, criando dificuldades para o grupo Clarín.
O ímpeto do casal, no entanto, parece ir mais além. Houve uma assaz estranha interferência no satélite da empresa Artear (do grupo Clarin), que provocou a suspensão temporária de suas transmissões de rádio e tevê para o interior da Argentina e outros países do continente. Como a interferência afetou apenas a Artear, formula-se a hipótese de que a interrupção das transmissões foi intencional. O problema está sendo investigado pela Intelsat. Há maneiras de determinar a origem das falhas no funcionamento do satélite.
Pelo visto, o casal K está resolvido a aplicar na Argentina os métodos da “democracia adjetivada” do caudilho Hugo Chávez.
Um Milhão de Moradias
O presidente Lula anunciou pacote para construir um milhão de moradias populares. Conforme afirmou taxativamente, porém, não há prazo para a conclusão do programa, o que reforça a suspeita de que não será terminado no atual governo. Há alguns pontos no pacote habitacional que provocaram críticas.
O custo orçado do pacote é de 34 bilhões de reais, isto é, como assinalou O Globo, cinco vezes menor que o reajuste do servidor (R$ 175 bilhões).
Com efeito, houve grande inchação no funcionalismo com o governo petista. E este aumento no número de funcionários tem um preço bastante salgado, ao afetar - e de modo não apenas conjuntural - a capacidade do Estado de investir em educação, saúde, segurança, saneamento, transportes, etc.
.A Daslu de novo na página policial A atualidade do Marquês de Beccaria
Eliana Tranchesi. proprietária da conhecida loja Daslu, e seu irmão Antonio Carlos Piva de Albuquerque, ex-diretor financeiro da loja, foram condenados pela juíza Maria Isabel do Prado, da 2ª Vara Federal de Guarulhos a 94 anos e seis meses de prisão, por participarem de organização criminosa, que agiu reiteradamente para não pagar impostos na importação de produtos de luxo. Por sua vez, Celso de Lima, ex-contador da loja e proprietário da importadora Multimport foi condenado a 53 anos de prisão. Todos eles foram presos por determinação da juíza. O autor da denúncia contra os réus foi o procurador Matheus Baraldi Magnani que considerou “corajosa” a decisão da juíza. No entender do procurador “um criminoso não é somente um desgraçado com um fuzil na mão, que está no topo de um morro. A arma de uma organização criminosa também pode ser a corrupção.” Assinale-se que a sentença da juíza tem 543 páginas. Ela destaca a “ganância”de Tranchesi, que “demonstrou ter personalidade integralmente voltada para o crime”.
A advogada da ré, Joyce Roysen, entrou com pedido de habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, alegando que a prisão é ilegal, arbitrária, desnecessária e cruel. Em consequência, já no principio da noite de ontem, 27 de março, os três acusados foram libertados por disposição do Tribunal.
Não me cabe aqui discutir se os acusados são culpados ou não. Por decisão recente do Supremo, de acordo com interpretação de dispositivo constitucional, os réus, mesmo condenados, têm o direito de permanecer em liberdade, até que a sentença passe em julgado, o que em muitos casos implica em decisão de última instância do próprio STF. Já emiti a respeito a minha opinião quanto a esta sentença do Supremo, que se transforma em súmula vinculante para a primeira e a segunda instâncias.
Na questão da Daslu, e tendo em vista a pesada sentença de 94 anos e seis contra Eliana Tranchesi (que sofre de câncer do pulmão) e seu irmão, por crimes contra o erário público, penso no Marquês de Beccaria, e na sua clássica obra Dei Delitti e delle Pene (Dos Delitos e das Penas). A obra de Beccaria, publicada em 1764, renovou e humanizou o Direito Penal. Respondendo aos apelos dos filósofos da época do Iluminismo, combateu a pena capital e a desigualdade dos castigos segundo as pessoas. Grande foi a sua influência sobre a humanização do processo e das penas infligidas. Por vários títulos, continua a ser livro de grande atualidade nos dias que correm.
Cristina e Nestor Kirchner lograram o seu objetivo – antecipar para o próximo dia 28 de junho as eleições legislativas, que renovarão metade da Câmara e um terço do Senado. Com isso contam evitar – ou pelo menor diminuir – o desgaste político com a crise. Há protestos de pressões do Executivo Federal sobre os governadores estaduais, com abruptas e suspeitas mudanças de voto, como no caso da província da Terra do Fogo.
Continua, por outro lado, o combate do casal K com o grupo Clarin. Em breve será encaminhado ao Congresso projeto de lei sobre serviços de Comunicação Audiovisual, que visa derrogar a vigente Lei de Radiodifusão. Comenta-se que as mudanças na legislação têm escopo casuista, criando dificuldades para o grupo Clarín.
O ímpeto do casal, no entanto, parece ir mais além. Houve uma assaz estranha interferência no satélite da empresa Artear (do grupo Clarin), que provocou a suspensão temporária de suas transmissões de rádio e tevê para o interior da Argentina e outros países do continente. Como a interferência afetou apenas a Artear, formula-se a hipótese de que a interrupção das transmissões foi intencional. O problema está sendo investigado pela Intelsat. Há maneiras de determinar a origem das falhas no funcionamento do satélite.
Pelo visto, o casal K está resolvido a aplicar na Argentina os métodos da “democracia adjetivada” do caudilho Hugo Chávez.
Um Milhão de Moradias
O presidente Lula anunciou pacote para construir um milhão de moradias populares. Conforme afirmou taxativamente, porém, não há prazo para a conclusão do programa, o que reforça a suspeita de que não será terminado no atual governo. Há alguns pontos no pacote habitacional que provocaram críticas.
O custo orçado do pacote é de 34 bilhões de reais, isto é, como assinalou O Globo, cinco vezes menor que o reajuste do servidor (R$ 175 bilhões).
Com efeito, houve grande inchação no funcionalismo com o governo petista. E este aumento no número de funcionários tem um preço bastante salgado, ao afetar - e de modo não apenas conjuntural - a capacidade do Estado de investir em educação, saúde, segurança, saneamento, transportes, etc.
.A Daslu de novo na página policial A atualidade do Marquês de Beccaria
Eliana Tranchesi. proprietária da conhecida loja Daslu, e seu irmão Antonio Carlos Piva de Albuquerque, ex-diretor financeiro da loja, foram condenados pela juíza Maria Isabel do Prado, da 2ª Vara Federal de Guarulhos a 94 anos e seis meses de prisão, por participarem de organização criminosa, que agiu reiteradamente para não pagar impostos na importação de produtos de luxo. Por sua vez, Celso de Lima, ex-contador da loja e proprietário da importadora Multimport foi condenado a 53 anos de prisão. Todos eles foram presos por determinação da juíza. O autor da denúncia contra os réus foi o procurador Matheus Baraldi Magnani que considerou “corajosa” a decisão da juíza. No entender do procurador “um criminoso não é somente um desgraçado com um fuzil na mão, que está no topo de um morro. A arma de uma organização criminosa também pode ser a corrupção.” Assinale-se que a sentença da juíza tem 543 páginas. Ela destaca a “ganância”de Tranchesi, que “demonstrou ter personalidade integralmente voltada para o crime”.
A advogada da ré, Joyce Roysen, entrou com pedido de habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, alegando que a prisão é ilegal, arbitrária, desnecessária e cruel. Em consequência, já no principio da noite de ontem, 27 de março, os três acusados foram libertados por disposição do Tribunal.
Não me cabe aqui discutir se os acusados são culpados ou não. Por decisão recente do Supremo, de acordo com interpretação de dispositivo constitucional, os réus, mesmo condenados, têm o direito de permanecer em liberdade, até que a sentença passe em julgado, o que em muitos casos implica em decisão de última instância do próprio STF. Já emiti a respeito a minha opinião quanto a esta sentença do Supremo, que se transforma em súmula vinculante para a primeira e a segunda instâncias.
Na questão da Daslu, e tendo em vista a pesada sentença de 94 anos e seis contra Eliana Tranchesi (que sofre de câncer do pulmão) e seu irmão, por crimes contra o erário público, penso no Marquês de Beccaria, e na sua clássica obra Dei Delitti e delle Pene (Dos Delitos e das Penas). A obra de Beccaria, publicada em 1764, renovou e humanizou o Direito Penal. Respondendo aos apelos dos filósofos da época do Iluminismo, combateu a pena capital e a desigualdade dos castigos segundo as pessoas. Grande foi a sua influência sobre a humanização do processo e das penas infligidas. Por vários títulos, continua a ser livro de grande atualidade nos dias que correm.
sexta-feira, 27 de março de 2009
Brancos, de olhos azuis...
Há muitos anos, recordo-me de crítica feita por um jornalista, Lord Altrincham, à Rainha Elizabeth, dizendo sentir uma dor no pescoço ( a pain in the neck ) ao ouvi-la discursar. A despeito da expressão vulgar, nela havia um quê de verdade, tanto que, talvez sob o aguilhão da mordacidade, a elocução de Sua Majestade Britânica melhorou bastante desde então.
Dentro em breve o Presidente, Luiz Inacio Lula da Silva, deverá fazer visita oficial à Rainha. No contexto de relações estreitas, sucederá à atual vinda ao Brasil do Primeiro Ministro inglês, Gordon Brown. No encontro dos dois chefes de governo, no Palácio da Alvorada, terão tratado, entre outros assuntos, da próxima reunião do G-20.
Na conferência de imprensa que se seguiu, o Presidente Lula disse notadamente: “É uma crise causada, fomentada, por comportamentos irracionais de gente branca, de olhos azuis, que antes da crise parecia que sabia tudo e que, agora, demonstra não saber nada”.
Gordon Brown, que estava ao lado e acompanhava pela tradução simultânea o que Lula afirmava, não fez qualquer comentário, embora parecesse um tanto constrangido.
Questionado por jornalista inglês da BBC se por acaso as declarações não continham um viés ideológico, o presidente não recuou, mantendo sua posição, acrescentando não conhecer “nenhum banqueiro negro ou índio”.
Como é sabido, o presidente Lula da Silva enjeita a leitura de discursos, preferindo falar de improviso. Na eventualidade de conferência de imprensa, obviamente não há discursos lidos, mas se cabe declaração introdutória – como acredito tenha sido o caso – não se descarta a leitura de texto preparado.
Lula, fundado na sua experiência de líder sindical, se sente mais à vontade ao improvisar as alocuções. Faz parte de sua auto-imagem presidencial, de pessoa que exerce controle pleno sobre seus atos e palavras, e que tem prazer em demonstrá-lo.
Ora, por que, em geral, preferem os seus homólogos – e, no passado, os próprios antecessores no Brasil – ler e não improvisar ? Tentando resumir, se me afigura que o fazem por duas considerações básicas: prudência (pelas implicações e peso das palavras do chefe de governo) e a liturgia do cargo.
Se se contra-argumenta que em conferências de imprensa o improviso é a regra – deixando de lado a possibilidade acima mencionada de declaração lida – semelha provável que já preparara a observação em tela, porque não é crível, pelas suas implicâncias, que tenha sido comentário extemporâneo.
Conquanto haja negado o viés ideológico, a negativa me parece capenga. A generalização no caso é tão extremada que a intenção presidencial – descontada a alternativa da pilhéria, em que o exagero costuma ser instrumento usual – não se sustenta, por deslocar a suposta causa eficiente da crise para fatores, os quais são circunstanciais e adjetivos, nunca determinantes.
As causas da crise, consoante se verifica na série de artigos sobre A Crise Financeira Americana, são decerto muitas, e nada têm a ver com raça, pigmentação da íris ou da pele.
Dentro em breve o Presidente, Luiz Inacio Lula da Silva, deverá fazer visita oficial à Rainha. No contexto de relações estreitas, sucederá à atual vinda ao Brasil do Primeiro Ministro inglês, Gordon Brown. No encontro dos dois chefes de governo, no Palácio da Alvorada, terão tratado, entre outros assuntos, da próxima reunião do G-20.
Na conferência de imprensa que se seguiu, o Presidente Lula disse notadamente: “É uma crise causada, fomentada, por comportamentos irracionais de gente branca, de olhos azuis, que antes da crise parecia que sabia tudo e que, agora, demonstra não saber nada”.
Gordon Brown, que estava ao lado e acompanhava pela tradução simultânea o que Lula afirmava, não fez qualquer comentário, embora parecesse um tanto constrangido.
Questionado por jornalista inglês da BBC se por acaso as declarações não continham um viés ideológico, o presidente não recuou, mantendo sua posição, acrescentando não conhecer “nenhum banqueiro negro ou índio”.
Como é sabido, o presidente Lula da Silva enjeita a leitura de discursos, preferindo falar de improviso. Na eventualidade de conferência de imprensa, obviamente não há discursos lidos, mas se cabe declaração introdutória – como acredito tenha sido o caso – não se descarta a leitura de texto preparado.
Lula, fundado na sua experiência de líder sindical, se sente mais à vontade ao improvisar as alocuções. Faz parte de sua auto-imagem presidencial, de pessoa que exerce controle pleno sobre seus atos e palavras, e que tem prazer em demonstrá-lo.
Ora, por que, em geral, preferem os seus homólogos – e, no passado, os próprios antecessores no Brasil – ler e não improvisar ? Tentando resumir, se me afigura que o fazem por duas considerações básicas: prudência (pelas implicações e peso das palavras do chefe de governo) e a liturgia do cargo.
Se se contra-argumenta que em conferências de imprensa o improviso é a regra – deixando de lado a possibilidade acima mencionada de declaração lida – semelha provável que já preparara a observação em tela, porque não é crível, pelas suas implicâncias, que tenha sido comentário extemporâneo.
Conquanto haja negado o viés ideológico, a negativa me parece capenga. A generalização no caso é tão extremada que a intenção presidencial – descontada a alternativa da pilhéria, em que o exagero costuma ser instrumento usual – não se sustenta, por deslocar a suposta causa eficiente da crise para fatores, os quais são circunstanciais e adjetivos, nunca determinantes.
As causas da crise, consoante se verifica na série de artigos sobre A Crise Financeira Americana, são decerto muitas, e nada têm a ver com raça, pigmentação da íris ou da pele.
quinta-feira, 26 de março de 2009
Colcha de Retalhos (II)
Choque de Ordem na Rocinha
Depois de batalha judiciária, com duas liminares sucessivas embargando a demolição, a 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça derrubou a sentença de efeito suspensivo do desembargador Sérgio Jerônimo. Desta feita, a Prefeitura do Rio não deixou para o dia seguinte. Às dezesseis horas, passadas menos de três horas da autorização judicial, sessenta policiais do 23º BPM (Leblon) entraram na favela e pôde ser em seguida iniciada a demolição, com golpes de marreta nas paredes de tijolo.
Não houve resistência popular, a despeito de a demolição haver sido acompanhada por grande número de pessoas. A suposta proprietária, Maria Clara dos Santos, a MC Boquinha, a princípio não queria sair do imóvel, no qual se achava com os cinco filhos. Acabou desistindo, embora haja prometido que reconstruirá a casa.
O Prefeito Eduardo Paes, da cidade americana de Denver, onde se encontrava para divulgar a candidatura do Rio à Olimpíada, disse que a demolição do prédio é uma sinalização da prefeitura de que não mais será permitida a proliferação de construções irregulares no Rio de Janeiro.
Depois de tantos anos de abulia da gestão Cesar Maia, em que o poder municipal permitiu o crescimento desordenado de construções abusivas, o que foi epitomizado pela expressão “Ilegal, e daí ?”, a determinação do novo Prefeito e do Secretário da Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, merece ser assinalada. A observação da lei e a derrubada das construções sem licença tenderá a dissuadir no futuro, se implementada pela prefeitura sem tergiversações, que continue a perdurar a cultura do ilegal e daí. As transgressões da lei e o desrespeito aos embargos do órgão municipal de parte dos especuladores imobiliários, diante da virtual certeza da não-realização de seus escopos ilegais, perderão a razão de ser. Ninguém gosta de jogar dinheiro fora à toa.
As cavernas e um estranho decreto presidencial
Provoca espécie notícia publicada em página interior de O Globo, de 25 de março corrente. A despeito de suas profissões de fé de partidário do meio ambiente, tal alegado propósito do Presidente Lula, se elogiável como discurso, infelizmente não vem sendo corroborado na práxis.
Depois da exoneração, a pedido, da Ministra Marina Silva – cansada com a falta de apoio presidencial à preservação da floresta amazônica, entre outras metas da defesa ambiental -, e a sua sucessão por Carlos Minc que, a despeito do empenho e a experiência na matéria, não tem o peso político da Senadora pelo Acre, a situação nesse campo não tem decerto melhorado. Ao invés de diminuir, aumenta a lista de desmatadores na Amazônia, como se verifica pela leitura dos jornais.
As surpresas no meio ambiente não se limitam, porém, àquelas ameaças bem conhecidas da opinião pública. O decreto 6.640, assinado pelo Presidente a sete de novembro p.p., incrivelmente permite destruir cavernas e grutas espalhadas pelo país. Após proceder a classificação das cavernas em quatro categorias por grau de relevância (máximo, alto, médio e baixo), estipula que apenas as cavidades consideradas de máxima relevância serão poupadas de destruição. As demais serão destruídas.
Segundo cálculos de espeleólogos, existem no Brasil 4.672 cavernas. Minas Gerais é a recordista em cavernas, com 1656, seguida por Goiás (665), Bahia (540) e São Paulo (520). Semelha provável que o governo haja cedido – e modificado a legislação anterior, sob número 99.556, de 1990, sob pressão de setores econômicos, notadamente o de mineração e o elétrico.
Em resposta à singular iniciativa no campo ambiental do Governo federal, a Sociedade Brasileira de Espeleologia recorreu à Procuradoria Geral da República, pedindo ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra o Decreto. Nesse sentido, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu, a 24 do corrente, ofício do Ministro Eros Grau, do STF, pedindo explicações sobre a medida. Serão igualmente ouvidos pelo STF a Advocacia Geral da União e o Procurador-Geral da República, Antonio Fernando de Souza.
Segundo afirma o Procurador-Geral, este Decreto subverte o modelo constitucional e altera o regime jurídico de preservação de espaços territoriais especialmente protegidos. Solicita, por conseguinte, a suspensão da validade do decreto, “em vista da possibilidade de que empreendimentos econômicos sejam de pronto instalados, em detrimento do patrimônio espeleológico brasileiro.”
Quanto ao mérito desta infeliz canetada já se afigura predestinada, se prevalecer o bom senso, ao amplo depósito das iniciativas malogradas e consignadas ao esquecimento. Seria, no entanto, de alguma oportunidade que, no capítulo, se observasse um conselho de Mao Zedong. Consoante sua recomendação, antes de examinar a qualidade de um projeto qualquer, importava determinar a sua origem, isto é, quem o propusera. Nesse particular seria interessante saber quem referendou o estranho decreto.
Depois de batalha judiciária, com duas liminares sucessivas embargando a demolição, a 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça derrubou a sentença de efeito suspensivo do desembargador Sérgio Jerônimo. Desta feita, a Prefeitura do Rio não deixou para o dia seguinte. Às dezesseis horas, passadas menos de três horas da autorização judicial, sessenta policiais do 23º BPM (Leblon) entraram na favela e pôde ser em seguida iniciada a demolição, com golpes de marreta nas paredes de tijolo.
Não houve resistência popular, a despeito de a demolição haver sido acompanhada por grande número de pessoas. A suposta proprietária, Maria Clara dos Santos, a MC Boquinha, a princípio não queria sair do imóvel, no qual se achava com os cinco filhos. Acabou desistindo, embora haja prometido que reconstruirá a casa.
O Prefeito Eduardo Paes, da cidade americana de Denver, onde se encontrava para divulgar a candidatura do Rio à Olimpíada, disse que a demolição do prédio é uma sinalização da prefeitura de que não mais será permitida a proliferação de construções irregulares no Rio de Janeiro.
Depois de tantos anos de abulia da gestão Cesar Maia, em que o poder municipal permitiu o crescimento desordenado de construções abusivas, o que foi epitomizado pela expressão “Ilegal, e daí ?”, a determinação do novo Prefeito e do Secretário da Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, merece ser assinalada. A observação da lei e a derrubada das construções sem licença tenderá a dissuadir no futuro, se implementada pela prefeitura sem tergiversações, que continue a perdurar a cultura do ilegal e daí. As transgressões da lei e o desrespeito aos embargos do órgão municipal de parte dos especuladores imobiliários, diante da virtual certeza da não-realização de seus escopos ilegais, perderão a razão de ser. Ninguém gosta de jogar dinheiro fora à toa.
As cavernas e um estranho decreto presidencial
Provoca espécie notícia publicada em página interior de O Globo, de 25 de março corrente. A despeito de suas profissões de fé de partidário do meio ambiente, tal alegado propósito do Presidente Lula, se elogiável como discurso, infelizmente não vem sendo corroborado na práxis.
Depois da exoneração, a pedido, da Ministra Marina Silva – cansada com a falta de apoio presidencial à preservação da floresta amazônica, entre outras metas da defesa ambiental -, e a sua sucessão por Carlos Minc que, a despeito do empenho e a experiência na matéria, não tem o peso político da Senadora pelo Acre, a situação nesse campo não tem decerto melhorado. Ao invés de diminuir, aumenta a lista de desmatadores na Amazônia, como se verifica pela leitura dos jornais.
As surpresas no meio ambiente não se limitam, porém, àquelas ameaças bem conhecidas da opinião pública. O decreto 6.640, assinado pelo Presidente a sete de novembro p.p., incrivelmente permite destruir cavernas e grutas espalhadas pelo país. Após proceder a classificação das cavernas em quatro categorias por grau de relevância (máximo, alto, médio e baixo), estipula que apenas as cavidades consideradas de máxima relevância serão poupadas de destruição. As demais serão destruídas.
Segundo cálculos de espeleólogos, existem no Brasil 4.672 cavernas. Minas Gerais é a recordista em cavernas, com 1656, seguida por Goiás (665), Bahia (540) e São Paulo (520). Semelha provável que o governo haja cedido – e modificado a legislação anterior, sob número 99.556, de 1990, sob pressão de setores econômicos, notadamente o de mineração e o elétrico.
Em resposta à singular iniciativa no campo ambiental do Governo federal, a Sociedade Brasileira de Espeleologia recorreu à Procuradoria Geral da República, pedindo ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra o Decreto. Nesse sentido, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu, a 24 do corrente, ofício do Ministro Eros Grau, do STF, pedindo explicações sobre a medida. Serão igualmente ouvidos pelo STF a Advocacia Geral da União e o Procurador-Geral da República, Antonio Fernando de Souza.
Segundo afirma o Procurador-Geral, este Decreto subverte o modelo constitucional e altera o regime jurídico de preservação de espaços territoriais especialmente protegidos. Solicita, por conseguinte, a suspensão da validade do decreto, “em vista da possibilidade de que empreendimentos econômicos sejam de pronto instalados, em detrimento do patrimônio espeleológico brasileiro.”
Quanto ao mérito desta infeliz canetada já se afigura predestinada, se prevalecer o bom senso, ao amplo depósito das iniciativas malogradas e consignadas ao esquecimento. Seria, no entanto, de alguma oportunidade que, no capítulo, se observasse um conselho de Mao Zedong. Consoante sua recomendação, antes de examinar a qualidade de um projeto qualquer, importava determinar a sua origem, isto é, quem o propusera. Nesse particular seria interessante saber quem referendou o estranho decreto.
quarta-feira, 25 de março de 2009
Desdobramentos da Crise Financeira Americana
A complexa relação financeira EUA - RPC
A República Popular da China (RPC), que já se tornou a terceira economia mundial, tem grande saldo em sua balança comercial com os Estados Unidos. É uma relação singular entre a maior potência mundial e aquela que se apresenta como seu potencial desafiante no futuro. O deficit no intercâmbio de Estados Unidos e China tem várias faces: à primeira vista, é um desequilíbrio na balança comercial entre a superpotência e o seu eventual desafiante, saldo negativo este que favorece a China. No entanto, esta ‘dívida’ estadunidense alimenta o crescimento da economia chinesa através de suas exportações. Ora, este saldo estimula estreita relação entre os dois gigantes, eis que, sob o prisma financeiro, vem transformando a RPC no maior credor da dívida externa estadunidense. Com efeito, a China é o maior detentor dos títulos do Tesouro Americano, eis que o seu saldo positivo da balança comercial bilateral vem sendo aplicado na aquisição de tais títulos, denominados em dólares americanos.
Não para aí a imbricação das duas economias. Desde muito, a balança comercial estadunidense ficou deficitária. Com a elevação dos custos locais de muitas manufaturas, se tornou mais rentável para as corporações americanas terceirizar (outsource) parcela relevante da respectiva produção para países em que a mão de obra e demais custos correlatos tenham vantagens comparativas. Nesse contexto, parte importante do saldo positivo do comércio da RPC com os EUA na verdade decorre de empresas americanas sediadas na China.
A economia americana, a despeito do governo ruinoso de Bush júnior, ainda goza dos privilégios de sua singular situação no imediato após-guerra (com os acordos de Bretton Woods, quando da constituição do sistema econômico-financeiro mundial).
Muita coisa ocorreu desde então – desligamento na presidência Nixon do US dólar do ouro, transformação nos termos de intercâmbio com o enfraquecimento relativo da moeda americana, etc. – mas a situação de o dólar continuar como a principal moeda de reserva internacional, assim a permanência do statu quo institucional (com reajustes tópicos) sinaliza para relação que não apresenta grandes mudanças efetivas, se comparadas com o longínquo momento histórico em que o presente sistema surgiu.
Dessarte, as declarações do governador do Banco da República Popular da China sugerindo a expansão da alternativa dos S.D.R. (direitos especiais de saque) do Fundo Monetário Internacional – moeda contábil calculada sobre o euro, o yen japonês, a libra esterlina e o dolar estadunidense – podem apontar para um movimento estratégico deste grande credor do Tesouro americano, no sentido de reduzir a atual dependência de uma única moeda de reserva, limitando por conseguinte os eventuais efeitos da política fiscal de um país (leia-se Estados Unidos).
Não obstante, a ‘sugestão’ do principal banqueiro chinês pode ser contextualizada como manobra tática (e não estratégica), de preparação para a agenda da reunião, marcada para a próxima semana, do G-20, de que, entre outros, participa também o Brasil, e cujo peso é de 85% do Produto Bruto Mundial.
A Crise Financeira Americana.
Tendo presente a acima citada declaração à imprensa do governador do Banco da RPC (quanto a limitar os efeitos da política fiscal de um só país) , semelha oportuna a referência à coluna do economista Paulo Rabello de Castro (Folha de 25 do corrente). Como interpretar a emissão pela Federal Reserve de um trilhão de dólares sem lastro,que se segue a outro trilhão, emitido em 2008 ?
Como a crise americana é determinada pelo geral endividamento, a aposta de Bernanke é que tal maciça injeção de recursos chega a mercado bancário pouco disposto a fazer esse dinheiro circular. Não haveria, portanto, pressão imediata sobre a demanda, com o consequente incremento no nível dos preços.
Dentro da linha de raciocínio de Rabello de Castro, não havendo vontade de gastar, e sendo grande a propensão do americano a economizar e pagar dívidas, o novo trilhão não terá efeito instantâneo sobre a inflação do dólar estadunidense.
Quanto aos efeitos imediatos perseguidos pela Federal Reserve, parece oportuno transcrever as considerações da citada coluna: “ Ao comprar títulos do Tesouro em circulação para sua carteira, o Fed tenta matar vários coelhos com uma paulada. Responde aos chineses, que haviam cobrado mais garantias para os títulos da dívida americana.(...) Tira parte de seus títulos de circulação, quando todos ainda querem comprá-los, tornando-os mais escassos. O preço do papel sobe, e o juro embutido na transação cai. No dia seguinte, vem o Tesouro americano e poderá rolar (os quase dois trilhões de dólares) com juros mínimos. O objetivo de economizar juros para o governo americano é atingido.”
É uma jogada arriscada, porque quando a economia despertar de seu letargo, com o pletora de recursos injetados sem lastro a pressão inflacionária se fará sentir. Tal desafio, todavia, não é imediato e sim mediato.
Como todo endividado, as providências do Tesouro americano têm de lidar com os problemas de curtíssimo prazo. Se afastada a ameaça mais próxima, será o caso de então enfrentar a de médio prazo. A originalidade da estratégia de Bernanke é que nela estão embutidos esses dois momentos. Resta saber se o tão nosso conhecido dragão da inflação lá será mantido à distância.
A República Popular da China (RPC), que já se tornou a terceira economia mundial, tem grande saldo em sua balança comercial com os Estados Unidos. É uma relação singular entre a maior potência mundial e aquela que se apresenta como seu potencial desafiante no futuro. O deficit no intercâmbio de Estados Unidos e China tem várias faces: à primeira vista, é um desequilíbrio na balança comercial entre a superpotência e o seu eventual desafiante, saldo negativo este que favorece a China. No entanto, esta ‘dívida’ estadunidense alimenta o crescimento da economia chinesa através de suas exportações. Ora, este saldo estimula estreita relação entre os dois gigantes, eis que, sob o prisma financeiro, vem transformando a RPC no maior credor da dívida externa estadunidense. Com efeito, a China é o maior detentor dos títulos do Tesouro Americano, eis que o seu saldo positivo da balança comercial bilateral vem sendo aplicado na aquisição de tais títulos, denominados em dólares americanos.
Não para aí a imbricação das duas economias. Desde muito, a balança comercial estadunidense ficou deficitária. Com a elevação dos custos locais de muitas manufaturas, se tornou mais rentável para as corporações americanas terceirizar (outsource) parcela relevante da respectiva produção para países em que a mão de obra e demais custos correlatos tenham vantagens comparativas. Nesse contexto, parte importante do saldo positivo do comércio da RPC com os EUA na verdade decorre de empresas americanas sediadas na China.
A economia americana, a despeito do governo ruinoso de Bush júnior, ainda goza dos privilégios de sua singular situação no imediato após-guerra (com os acordos de Bretton Woods, quando da constituição do sistema econômico-financeiro mundial).
Muita coisa ocorreu desde então – desligamento na presidência Nixon do US dólar do ouro, transformação nos termos de intercâmbio com o enfraquecimento relativo da moeda americana, etc. – mas a situação de o dólar continuar como a principal moeda de reserva internacional, assim a permanência do statu quo institucional (com reajustes tópicos) sinaliza para relação que não apresenta grandes mudanças efetivas, se comparadas com o longínquo momento histórico em que o presente sistema surgiu.
Dessarte, as declarações do governador do Banco da República Popular da China sugerindo a expansão da alternativa dos S.D.R. (direitos especiais de saque) do Fundo Monetário Internacional – moeda contábil calculada sobre o euro, o yen japonês, a libra esterlina e o dolar estadunidense – podem apontar para um movimento estratégico deste grande credor do Tesouro americano, no sentido de reduzir a atual dependência de uma única moeda de reserva, limitando por conseguinte os eventuais efeitos da política fiscal de um país (leia-se Estados Unidos).
Não obstante, a ‘sugestão’ do principal banqueiro chinês pode ser contextualizada como manobra tática (e não estratégica), de preparação para a agenda da reunião, marcada para a próxima semana, do G-20, de que, entre outros, participa também o Brasil, e cujo peso é de 85% do Produto Bruto Mundial.
A Crise Financeira Americana.
Tendo presente a acima citada declaração à imprensa do governador do Banco da RPC (quanto a limitar os efeitos da política fiscal de um só país) , semelha oportuna a referência à coluna do economista Paulo Rabello de Castro (Folha de 25 do corrente). Como interpretar a emissão pela Federal Reserve de um trilhão de dólares sem lastro,que se segue a outro trilhão, emitido em 2008 ?
Como a crise americana é determinada pelo geral endividamento, a aposta de Bernanke é que tal maciça injeção de recursos chega a mercado bancário pouco disposto a fazer esse dinheiro circular. Não haveria, portanto, pressão imediata sobre a demanda, com o consequente incremento no nível dos preços.
Dentro da linha de raciocínio de Rabello de Castro, não havendo vontade de gastar, e sendo grande a propensão do americano a economizar e pagar dívidas, o novo trilhão não terá efeito instantâneo sobre a inflação do dólar estadunidense.
Quanto aos efeitos imediatos perseguidos pela Federal Reserve, parece oportuno transcrever as considerações da citada coluna: “ Ao comprar títulos do Tesouro em circulação para sua carteira, o Fed tenta matar vários coelhos com uma paulada. Responde aos chineses, que haviam cobrado mais garantias para os títulos da dívida americana.(...) Tira parte de seus títulos de circulação, quando todos ainda querem comprá-los, tornando-os mais escassos. O preço do papel sobe, e o juro embutido na transação cai. No dia seguinte, vem o Tesouro americano e poderá rolar (os quase dois trilhões de dólares) com juros mínimos. O objetivo de economizar juros para o governo americano é atingido.”
É uma jogada arriscada, porque quando a economia despertar de seu letargo, com o pletora de recursos injetados sem lastro a pressão inflacionária se fará sentir. Tal desafio, todavia, não é imediato e sim mediato.
Como todo endividado, as providências do Tesouro americano têm de lidar com os problemas de curtíssimo prazo. Se afastada a ameaça mais próxima, será o caso de então enfrentar a de médio prazo. A originalidade da estratégia de Bernanke é que nela estão embutidos esses dois momentos. Resta saber se o tão nosso conhecido dragão da inflação lá será mantido à distância.
terça-feira, 24 de março de 2009
Colcha de Retalhos
Um triste dia para a democracia sul-africana
A União Sul-Africana projetava realizar Conferência Internacional de Paz, em Johannesburgo. O evento se inseria igualmente na programação para a próxima Copa do Mundo, a ser sediada pela Africa do Sul, em 2010.
Para surpresa de muitos dos convidados, o governo de Pretória tomou decisão, a um tempo inepta e submissa, de negar visto ao Dalai Lama, que manifestara interesse em participar da Conferência.
Provocou consternação a timorata atitude do novo governo sul-africano, cedendo à habitual pressão da China, que ameaçara criar restrições ao intercâmbio bilateral.
O tiro saíu pela culatra. Não tardou muito para que, diante da repercussão negativa da inesperada decisão (com vários cancelamentos de participação), o porta-voz Irvin Khosa anunciasse o adiamento sine-die da Conferência. Fê-lo na presença do Chefe Mandla Mandela, neto de Nelson Mandela, que disse ser um dia triste para a democracia sul-africana e para a África, que o governo da União Sul-Africana tivesse negado visto ao Dalai Lama. E acrescentou: a Africa do Sul não deve ceder a pressões internacionais.
Estripulias de Hugo Chávez
O prolixo e indiscreto caudilho venezuelano continua a fazer das suas. Além de mandar o exército invadir portos e aeroportos em cidades administradas pela oposição, voltou a não atentar para o sábio conselho que lhe dera o Rei da Espanha – por que no te callas ? -, com isso criando dificuldades para ele próprio.
Desde a posse do novo Presidente americano, vinha Chávez seguindo linha de inusitada cautela, pensando decerto no reatamento das relações, que tempos atrás rompera em desinteligências com o seu desafeto George Bush.
Em suas intermináveis charlas televisivas, que são impingidas aos telespectadores venezuelanos, Chávez cometeu uma grosseria.
Na verdade, essa incivilidade fora precedida por uma suposta indiscrição, dita em entrevista à Tevê Al Jazeera, do Catar. Segundo notícia transmitida pelo correspondente da Folha em Caracas, o presidente Luiz Inacio Lula da Silva, consoante declarou Chávez, “não ficou muito satisfeito” com a sua conversa com Barack Obama, no Salão Oval da Casa Branca. A esse respeito, Chávez – que dera a Lula carta branca para discutir com Obama a relação entre Caracas e Washington -, insinuou ter ouvido de Lula que o americano “sofre de algo que pode ser superado: a ignorância do que acontece de verdade na América Latina.”
Aqui, obviamente, uma luz vermelha se acende sobre a oportunidade ou não de um Chefe de Estado contar a outro de suas impressões sobre conversa mantida com o novo Presidente americano, sobretudo se este outro é Hugo Chávez, que não prima por excessiva reserva.
A compulsão de falastrão levaria Chávez na sua habitual sessão – que as tevês venezuelanas são obrigadas a veicular – a pôr os pés pelas mãos, supostamente reagindo a acusação de estar ele envolvido com a exportação do terrorismo. É difícil entender por que Chávez haja decidido – após considerável compasso de espera – alimentar a polêmica, ao afirmar : “Obama é um pobre ignorante e deveria estudar” (a realidade latino-americana).
A pergunta do Rei Juan Carlos continua na ordem do dia...
Fim da Justiça Militar (Contd.)
O leitor se recordará que no blog Dos Jornais XXIX, postado a 28 de fevereiro último, me ocupei da abolição da Justiça Militar na Argentina, e me perguntei, no particular, sobre um pouco provável acompanhamento pelo legislador brasileiro.
Há um desenvolvimento promissor, com a iniciativa do presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Armínio José Abreu Lima da Rosa, prevista para princípios de abril, de envio à Assembléia Legislativa de projeto de emenda constitucional propondo a extinção da Justiça militar no Estado.
Lima da Rosa, em entrevista à Folha, disse que a decisão foi tomada com base em denúncias sobre irregularidades no TJM-RS. Pesquisa realizada com 596 juízes do Estado apontou 93% deles favorável à extinção da corte militar em segundo grau (o TJM-RS) e 82% defendendo a extinção da justiça castrense em 1º e 2º graus.
Por outro lado, em entrevista, o cientista político Jorge Zaverucha, atual coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da Universidade Federal de Pernambuco, declarou que mais importante do que a existência ou não de tribunais militares é assegurar que os códigos penais militares estejam em conformidade com o Estado democrático.
Nesse sentido, ainda vige no Brasil o Código Penal Militar de 1969. Nesse sentido, “o primeiro passo é mudar o Código Penal Militar”. Se a jurisdição militar hoje no país faz do Brasil uma “semidemocracia”, não se explica “que se tenha um código de 69, ápice do regime militar. Nenhuma democracia, que mereça esse nome, segue o padrão brasileiro.”
Indagado de eventuais tentativas de mudança, disse Zaverucha: “o governo Fernando Henrique Cardoso tentou criar uma comissão para fazer mudança (no Codigo Penal Militar), mas ela foi logo abortada.Desde então não se toca no assunto. Os militares têm força política muito grande.”
Não creio que sob o atual Chefe da Nação a questão deverá progredir. No futuro, resta-nos esperar que o espírito republicano e a primazia do Poder Civil – em desenvolvimento reminiscente do Presidente Epitácio Pessoa – possam reaparecer, para que a legislação nacional se coadune com as normas das grandes democracia.
A União Sul-Africana projetava realizar Conferência Internacional de Paz, em Johannesburgo. O evento se inseria igualmente na programação para a próxima Copa do Mundo, a ser sediada pela Africa do Sul, em 2010.
Para surpresa de muitos dos convidados, o governo de Pretória tomou decisão, a um tempo inepta e submissa, de negar visto ao Dalai Lama, que manifestara interesse em participar da Conferência.
Provocou consternação a timorata atitude do novo governo sul-africano, cedendo à habitual pressão da China, que ameaçara criar restrições ao intercâmbio bilateral.
O tiro saíu pela culatra. Não tardou muito para que, diante da repercussão negativa da inesperada decisão (com vários cancelamentos de participação), o porta-voz Irvin Khosa anunciasse o adiamento sine-die da Conferência. Fê-lo na presença do Chefe Mandla Mandela, neto de Nelson Mandela, que disse ser um dia triste para a democracia sul-africana e para a África, que o governo da União Sul-Africana tivesse negado visto ao Dalai Lama. E acrescentou: a Africa do Sul não deve ceder a pressões internacionais.
Estripulias de Hugo Chávez
O prolixo e indiscreto caudilho venezuelano continua a fazer das suas. Além de mandar o exército invadir portos e aeroportos em cidades administradas pela oposição, voltou a não atentar para o sábio conselho que lhe dera o Rei da Espanha – por que no te callas ? -, com isso criando dificuldades para ele próprio.
Desde a posse do novo Presidente americano, vinha Chávez seguindo linha de inusitada cautela, pensando decerto no reatamento das relações, que tempos atrás rompera em desinteligências com o seu desafeto George Bush.
Em suas intermináveis charlas televisivas, que são impingidas aos telespectadores venezuelanos, Chávez cometeu uma grosseria.
Na verdade, essa incivilidade fora precedida por uma suposta indiscrição, dita em entrevista à Tevê Al Jazeera, do Catar. Segundo notícia transmitida pelo correspondente da Folha em Caracas, o presidente Luiz Inacio Lula da Silva, consoante declarou Chávez, “não ficou muito satisfeito” com a sua conversa com Barack Obama, no Salão Oval da Casa Branca. A esse respeito, Chávez – que dera a Lula carta branca para discutir com Obama a relação entre Caracas e Washington -, insinuou ter ouvido de Lula que o americano “sofre de algo que pode ser superado: a ignorância do que acontece de verdade na América Latina.”
Aqui, obviamente, uma luz vermelha se acende sobre a oportunidade ou não de um Chefe de Estado contar a outro de suas impressões sobre conversa mantida com o novo Presidente americano, sobretudo se este outro é Hugo Chávez, que não prima por excessiva reserva.
A compulsão de falastrão levaria Chávez na sua habitual sessão – que as tevês venezuelanas são obrigadas a veicular – a pôr os pés pelas mãos, supostamente reagindo a acusação de estar ele envolvido com a exportação do terrorismo. É difícil entender por que Chávez haja decidido – após considerável compasso de espera – alimentar a polêmica, ao afirmar : “Obama é um pobre ignorante e deveria estudar” (a realidade latino-americana).
A pergunta do Rei Juan Carlos continua na ordem do dia...
Fim da Justiça Militar (Contd.)
O leitor se recordará que no blog Dos Jornais XXIX, postado a 28 de fevereiro último, me ocupei da abolição da Justiça Militar na Argentina, e me perguntei, no particular, sobre um pouco provável acompanhamento pelo legislador brasileiro.
Há um desenvolvimento promissor, com a iniciativa do presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Armínio José Abreu Lima da Rosa, prevista para princípios de abril, de envio à Assembléia Legislativa de projeto de emenda constitucional propondo a extinção da Justiça militar no Estado.
Lima da Rosa, em entrevista à Folha, disse que a decisão foi tomada com base em denúncias sobre irregularidades no TJM-RS. Pesquisa realizada com 596 juízes do Estado apontou 93% deles favorável à extinção da corte militar em segundo grau (o TJM-RS) e 82% defendendo a extinção da justiça castrense em 1º e 2º graus.
Por outro lado, em entrevista, o cientista político Jorge Zaverucha, atual coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da Universidade Federal de Pernambuco, declarou que mais importante do que a existência ou não de tribunais militares é assegurar que os códigos penais militares estejam em conformidade com o Estado democrático.
Nesse sentido, ainda vige no Brasil o Código Penal Militar de 1969. Nesse sentido, “o primeiro passo é mudar o Código Penal Militar”. Se a jurisdição militar hoje no país faz do Brasil uma “semidemocracia”, não se explica “que se tenha um código de 69, ápice do regime militar. Nenhuma democracia, que mereça esse nome, segue o padrão brasileiro.”
Indagado de eventuais tentativas de mudança, disse Zaverucha: “o governo Fernando Henrique Cardoso tentou criar uma comissão para fazer mudança (no Codigo Penal Militar), mas ela foi logo abortada.Desde então não se toca no assunto. Os militares têm força política muito grande.”
Não creio que sob o atual Chefe da Nação a questão deverá progredir. No futuro, resta-nos esperar que o espírito republicano e a primazia do Poder Civil – em desenvolvimento reminiscente do Presidente Epitácio Pessoa – possam reaparecer, para que a legislação nacional se coadune com as normas das grandes democracia.
segunda-feira, 23 de março de 2009
A Primeira Crise da Presidência Obama
Existe no povo americano uma surda raiva contra os diretores-executivos que se locupletam, com a cumplicidade dos presidentes das empresas, dos bônus contratuais que percebem ao cabo de sua atividade. Os desproporcionais ganhos dos executivos, que já despertavam a irritação do público em tempos normais, como serão vistos agora, em meio à grave crise e à séria recessão, causadas em não pequena medida por sua irresponsável desenvoltura e ganância, descritas nos três artigos dedicados à Crise Financeira ?
É dificil entender a mente de diretores que se julgam com direito a receber polpudas gratificações (os chamados bônus), ao sairem da empresa. Que suposta paga é esta por operações que provocaram à instituição pesados prejuízos, a ponto de colocá-la sob o risco concreto da falência ?
Uma instituição praticamente falida não terá obviamente recursos para pagar os bônus aos seus executivos. No entanto, no caso da A.I.G., a mega-seguradora – que recebeu cento e setenta bilhões de dólares de dinheiro do contribuinte – não hesitou em remunerar a incompetência ruinosa de tais diretores com os famigerados bônus, assim como despender boa parte do auxílio estatal no pagamento de “parceiros de jogo e ganância”, a Goldman Sachs e o Citigroup, a par de empresas estrangeiras como a Société Générale e o Deutsche Bank.
Não falemos, porém, de transparência nessas operações. Além dos favorecidos, o diretor-presidente da AIG daria conhecimento da concessão dos bônus a uns poucos, entre os quais Timothy Geithner, o novel Secretário do Tesouro. Este, que é egresso do mundo financeiro, não se opôs de início ao pagamento.
Entrementes, os detalhes da questão eram descobertos pela imprensa e surgiam as primeiras reações no Congresso. O Presidente da AIG ainda tentou salvar os anéis de seus diretores, na árdua caminhada de alguém que havia autorizado o pagamento subvencionado pelo dinheiro público, e que aos poucos vai acordando para o mundo lá fora em que os tortuosos direitos dos executivos não são vistos com bons olhos.
O colunista do New York Times, Frank Rich, escreve agora artigo intitulado “O escândalo dos bônus da AIG: o Katrina de Obama ?”
Epa, epa, epa ! dizia aquele personagem da novela Portelinha, diante de qualquer coisa nova que o surpreendesse ou não lhe agradasse. Algo está errado aqui, eis que no escândalo dos bônus, aparece o presidente Barack Obama como um dos envolvidos, a ponto de compará-lo com o fracasso de Bush junior em outro escândalo, o do furacão Katrina.
Frank Rich pertence àquela grei de articulistas do Times que são supostamente favoráveis aos democratas, mas que dispensam a seus líderes aquele tough love (amor de malandro, em tradução livre), como o experimentou o próprio Bill Clinton, durante a sua presidência.
Rich poderá acaso estar carregando nas tintas, mas, parafraseando Aporelli, há algo mais no ar além dos aviões de carreira.
No campo das finanças – que ganharia com a crise extrema relevância para o cidadão comum – o Presidente Obama se cercou de colaboradores que se sentem talvez demasiado à vontade em microcosmo sobre o qual recai a desconfiança da opinião pública. Na evolução da crise, se soube depois que Timothy Geithner – cuja confirmação pelo Senado foi árdua, por irregularidades fiscais – fora informado pelo Presidente da AIG e não objetara à concessão dos bônus.
Sabedor da escorregadela de Geithner, Obama, por julgá-lo indispensável, o manteve no cargo, determinando que o Secretário do Tesouro tudo fizesse para inviabilizar o pagamento dos bônus. Mais tarde se saberia que os ditos executivos já haviam recebido os bônus. Muito provavelmente, isso não seria segredo para Geithner, informado tempestivamente pelo presidente da AIG. Diante disso, por que não informara o Presidente ? Ou teria informado ?
É necessário concordar com Frank Rich que faltou sensibilidade política a Obama ao empregar Lawrence Summers, o seu principal assessor econômico, como porta-voz quando o episódio dos bônus da AIG estava chegando ao seu ápice. Assim, ele apesar de evasivo, não logrou esconder que o governo não sabia o que os bancos tinham feito com o dinheiro que lhes fora entregue. Ficou claro, de resto, o desperdício da AIG nos pagamentos retirados dos 170 bilhões. Por outro lado, embora referindo a sensação de ‘ultraje’sofrido, Summers enveredou por um sermão acerca da “tradição de cumprir a lei”, o que tornava impossível cancelar os acordos de bônus. A intervenção foi tão desastrosa em que em menos de 24 horas Summers foi desautorizado por Obama, que prometeu “percorrer todos os caminhos legais” para bloquear os bônus.
Em uma crise como a presente, é perigoso que se difunda a impressão de que o Presidente aje a reboque dos acontecimentos, forçado pela reação da opinião pública. Como se ele não soubesse que rota deva seguir. A questão, segundo Rich, não é apenas indagar por que a Casa Branca foi a última a saber sobre os bônus, mas por que foi tão lenta para perceber que a raiva pública não poderia ser contida com os legalismos de Summers, nem com o mantra da palavra “ultrajante”.
Com o agravamento da crise, o Presidente tem de se conscientizar que precisa tomar medidas drásticas. Dessarte, não vai acalmar o clamor a tributo de noventa por cento estabelecida sobre os bônus dos banqueiros. Tampouco bastaria a exoneração de Timothy Geithner. Para superar a raiva, no entendimento de Rich, Obama precisa fazer o que tem reiteradamente prometido: fazer que todas as suas políticas econômicas sejam transparentes e tornar cada um responsável por seus atos.
Seu governo precisa começar a responder perguntas a que Summers e Geithner se têm esquivado. Os americanos têm o direito de saber por que levou seis meses para descobrir-se o que a AIG fez com seu dinheiro, por que parte deste dinheiro foi dado a bancos estrangeiros, e por que é tão frouxo o controle do Estado sobre estas instituições financeiras, a despeito de que a sua maior parte ora pertença ao contribuinte.
Sem respostas amplas e inequívocas não haverá clima político para justificar um segundo resgate bancário com mais bilhões de dólares. E se a credibilidade do Presidente Obama for atingida, os supostos vencedores dessa luta serão os partidários do “quanto pior, melhor”. Tudo o que aproveitaria a Rush Limbaugh et caterva não está no interesse dos Estados Unidos da America e de seus contribuintes.
É o momento de Barack Obama demonstrar a sua têmpera, o compromisso com a transparência, a compreensão enfim da gravidade da crise e o que está efetivamente em jogo. A Administração Obama pode estar no começo, mas a crise tem a sua própria lógica. No fim de contas, não é do presente que se trata, eis que, em verdade, a refrega é sobre o futuro da Administração.
É dificil entender a mente de diretores que se julgam com direito a receber polpudas gratificações (os chamados bônus), ao sairem da empresa. Que suposta paga é esta por operações que provocaram à instituição pesados prejuízos, a ponto de colocá-la sob o risco concreto da falência ?
Uma instituição praticamente falida não terá obviamente recursos para pagar os bônus aos seus executivos. No entanto, no caso da A.I.G., a mega-seguradora – que recebeu cento e setenta bilhões de dólares de dinheiro do contribuinte – não hesitou em remunerar a incompetência ruinosa de tais diretores com os famigerados bônus, assim como despender boa parte do auxílio estatal no pagamento de “parceiros de jogo e ganância”, a Goldman Sachs e o Citigroup, a par de empresas estrangeiras como a Société Générale e o Deutsche Bank.
Não falemos, porém, de transparência nessas operações. Além dos favorecidos, o diretor-presidente da AIG daria conhecimento da concessão dos bônus a uns poucos, entre os quais Timothy Geithner, o novel Secretário do Tesouro. Este, que é egresso do mundo financeiro, não se opôs de início ao pagamento.
Entrementes, os detalhes da questão eram descobertos pela imprensa e surgiam as primeiras reações no Congresso. O Presidente da AIG ainda tentou salvar os anéis de seus diretores, na árdua caminhada de alguém que havia autorizado o pagamento subvencionado pelo dinheiro público, e que aos poucos vai acordando para o mundo lá fora em que os tortuosos direitos dos executivos não são vistos com bons olhos.
O colunista do New York Times, Frank Rich, escreve agora artigo intitulado “O escândalo dos bônus da AIG: o Katrina de Obama ?”
Epa, epa, epa ! dizia aquele personagem da novela Portelinha, diante de qualquer coisa nova que o surpreendesse ou não lhe agradasse. Algo está errado aqui, eis que no escândalo dos bônus, aparece o presidente Barack Obama como um dos envolvidos, a ponto de compará-lo com o fracasso de Bush junior em outro escândalo, o do furacão Katrina.
Frank Rich pertence àquela grei de articulistas do Times que são supostamente favoráveis aos democratas, mas que dispensam a seus líderes aquele tough love (amor de malandro, em tradução livre), como o experimentou o próprio Bill Clinton, durante a sua presidência.
Rich poderá acaso estar carregando nas tintas, mas, parafraseando Aporelli, há algo mais no ar além dos aviões de carreira.
No campo das finanças – que ganharia com a crise extrema relevância para o cidadão comum – o Presidente Obama se cercou de colaboradores que se sentem talvez demasiado à vontade em microcosmo sobre o qual recai a desconfiança da opinião pública. Na evolução da crise, se soube depois que Timothy Geithner – cuja confirmação pelo Senado foi árdua, por irregularidades fiscais – fora informado pelo Presidente da AIG e não objetara à concessão dos bônus.
Sabedor da escorregadela de Geithner, Obama, por julgá-lo indispensável, o manteve no cargo, determinando que o Secretário do Tesouro tudo fizesse para inviabilizar o pagamento dos bônus. Mais tarde se saberia que os ditos executivos já haviam recebido os bônus. Muito provavelmente, isso não seria segredo para Geithner, informado tempestivamente pelo presidente da AIG. Diante disso, por que não informara o Presidente ? Ou teria informado ?
É necessário concordar com Frank Rich que faltou sensibilidade política a Obama ao empregar Lawrence Summers, o seu principal assessor econômico, como porta-voz quando o episódio dos bônus da AIG estava chegando ao seu ápice. Assim, ele apesar de evasivo, não logrou esconder que o governo não sabia o que os bancos tinham feito com o dinheiro que lhes fora entregue. Ficou claro, de resto, o desperdício da AIG nos pagamentos retirados dos 170 bilhões. Por outro lado, embora referindo a sensação de ‘ultraje’sofrido, Summers enveredou por um sermão acerca da “tradição de cumprir a lei”, o que tornava impossível cancelar os acordos de bônus. A intervenção foi tão desastrosa em que em menos de 24 horas Summers foi desautorizado por Obama, que prometeu “percorrer todos os caminhos legais” para bloquear os bônus.
Em uma crise como a presente, é perigoso que se difunda a impressão de que o Presidente aje a reboque dos acontecimentos, forçado pela reação da opinião pública. Como se ele não soubesse que rota deva seguir. A questão, segundo Rich, não é apenas indagar por que a Casa Branca foi a última a saber sobre os bônus, mas por que foi tão lenta para perceber que a raiva pública não poderia ser contida com os legalismos de Summers, nem com o mantra da palavra “ultrajante”.
Com o agravamento da crise, o Presidente tem de se conscientizar que precisa tomar medidas drásticas. Dessarte, não vai acalmar o clamor a tributo de noventa por cento estabelecida sobre os bônus dos banqueiros. Tampouco bastaria a exoneração de Timothy Geithner. Para superar a raiva, no entendimento de Rich, Obama precisa fazer o que tem reiteradamente prometido: fazer que todas as suas políticas econômicas sejam transparentes e tornar cada um responsável por seus atos.
Seu governo precisa começar a responder perguntas a que Summers e Geithner se têm esquivado. Os americanos têm o direito de saber por que levou seis meses para descobrir-se o que a AIG fez com seu dinheiro, por que parte deste dinheiro foi dado a bancos estrangeiros, e por que é tão frouxo o controle do Estado sobre estas instituições financeiras, a despeito de que a sua maior parte ora pertença ao contribuinte.
Sem respostas amplas e inequívocas não haverá clima político para justificar um segundo resgate bancário com mais bilhões de dólares. E se a credibilidade do Presidente Obama for atingida, os supostos vencedores dessa luta serão os partidários do “quanto pior, melhor”. Tudo o que aproveitaria a Rush Limbaugh et caterva não está no interesse dos Estados Unidos da America e de seus contribuintes.
É o momento de Barack Obama demonstrar a sua têmpera, o compromisso com a transparência, a compreensão enfim da gravidade da crise e o que está efetivamente em jogo. A Administração Obama pode estar no começo, mas a crise tem a sua própria lógica. No fim de contas, não é do presente que se trata, eis que, em verdade, a refrega é sobre o futuro da Administração.
domingo, 22 de março de 2009
A Volta da Censura
Volta da censura ? Sim, caro leitor, pode acontecer um retorno da censura que a grande maioria dos brasileiros pensou houvesse sido abolida pela Constituição de 5 de outubro de 1988, a Constituição cidadã do saudoso Dr. Ulysses Guimarães.
Recordam-se da euforia daqueles tempos ? O Ministro da Justiça, Fernando Lyra, declarava então: Censura, nunca mais ! E este era o sentimento da Nação.
Censura e ditadura não são apenas uma rima fácil. Os regimes ditos fortes – como a República Popular da China, por exemplo – se fundamentam no medo. É uma relação de causa e efeito que se estabelece entre o regime autoritário e o seu Povo. O ditador e os seus prepostos navegam em um mar de temores. Desejam intimidar os seus súditos – não há cidadãos em ditaduras e democracias adjetivadas – em primeiro lugar porque esses homens fortes na verdade são presa do medo.
E por quê ? Eles temem o povo, seja na pena e na voz isolada e corajosa, seja nos aglutinadores de opinião, seja todo e qualquer movimento que ouse dizer a verdade, pela simples razão que, como os tiranos da Antiga Grécia, eles se fundamentam na Força e não tem legitimidade.
Daí, o medo da palavra e dos homens livres.
Não é de hoje que a censura ensaia o seu retorno ao nosso convívio. A censura, negação que é do conhecimento, é uma excrescência do autoritarismo e como tal deve ser tratada e enfrentada.
Não são apenas os inimigos confessos da liberdade e da democracia que estão entre seus sequazes. Também as personalidades ditas autoritárias, na definição de T.W. Adorno, embora possam dizer até o contrário, na verdade se dispõem a criarem condições para a sua virtual reimplantação.
Intuo a eventual perplexidade do leitor. No fim de contas, a Constituição não extinguiu a censura ?
O inciso IX do artigo 5º estabelece: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
E o parágrafo 2º do artigo 220 determina: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
Durante muito tempo, a despeito da ausência de qualquer legislação regulamentando tais princípios basilares da Lei Magna, o sentir da Nação era que a vontade do Constituinte de 1988 se manifestara neste campo de forma tão inequívoca, que qualquer outra lei complementar não se fazia necessária.
Infelizmente, a hidra do autoritarismo não enjeita a paciência, nem os longos descaminhos, desde que, com a falsa moderação de um suposto gradualismo, vá amealhando, se possível no silêncio, alguns logros para o seu inconfessável objetivo.
A censura entre nós longe está de não dispor de partidários.
Não obstante o mandamento constitucional, será em magistrados da Justiça de primeira instância que este movimento pró-censura se vem articulando. Nesse contexto, surge a decisão do Juiz Benedito Helder Afonso Ibiapina, da 16ª Vara Cível da Comarca de Fortaleza de proibir, através de liminar, o jornal “O Povo”de divulgar reportagem sobre o processo que corre na Justiça Federal a respeito do jogo do bicho no Ceará.
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) divulgou nota condenando a decisão do juiz Ibiapina. Terá escapado à Sua Senhoria o simbolismo desta determinação, proibindo que O Povo noticie inclusive a sentença do juiz da 11ª Vara Federal que tornou indisponíveis os bens pessoais de João Carlos Mendonça, denunciado pelo Ministério Público Federal em ação penal derivada da Operação Arca de Noé, realizada pela Polícia Federal em 2008.
Não há dúvida, como de resto assevera a ANJ, que a proibição do juíz Helder Ibiapina é censura prévia à imprensa, “que viola frontalmente o espírito e a letra da liberdade de expressão assegurada pela Constituição Federal.”
A nota é assinada por Júlio César Mesquita, vice-presidente da ANJ e responsável pelo Comitê de Liberdade de Expressão dessa entidade. No passado, um outro Júlio Mesquita já demonstrara, e em tempos mais difíceis, o apreço que tinha pela liberdade de expressão e, para sua glória, a promoção da livre discussão no domínio das idéias, consoante os princípios de Voltaire.
Não creio, porém, que seja o caso de ficar na manifestação de desejos pela revogação de uma liminar arbitrária e inconstitucional. Já assistimos a diversos exemplos de questionáveis intervenções de juízes de primeira instância, e algumas delas lograram os seus escopos de censura. Igualmente, presenciamos o intento de vedar a publicação de livros, cousa que nem a ditadura militar alcançara.
Passou o tempo de dormir sobre os louros de velhas declarações. A Constituição precisa ser respeitada e a abolição da censura é regra fundamental em um país democrático.
Carecemos de fechar as gretas pelas quais se insinuam os fautores da censura. Nos Estados Unidos, a Segunda Emenda Constitucional assegura e explicita a liberdade de expressão. Penso que é mais do que tempo de barrar o caminho àqueles que desvirtuam o legado de Ulysses Guimarães, Mário Covas e tantos outros.
Muita vez as declarações, por fundamentadas que sejam, não bastam. É tempo de criar para a defesa deste sagrado princípio um instrumental mais incisivo e eficaz. Antes que seja tarde.
Recordam-se da euforia daqueles tempos ? O Ministro da Justiça, Fernando Lyra, declarava então: Censura, nunca mais ! E este era o sentimento da Nação.
Censura e ditadura não são apenas uma rima fácil. Os regimes ditos fortes – como a República Popular da China, por exemplo – se fundamentam no medo. É uma relação de causa e efeito que se estabelece entre o regime autoritário e o seu Povo. O ditador e os seus prepostos navegam em um mar de temores. Desejam intimidar os seus súditos – não há cidadãos em ditaduras e democracias adjetivadas – em primeiro lugar porque esses homens fortes na verdade são presa do medo.
E por quê ? Eles temem o povo, seja na pena e na voz isolada e corajosa, seja nos aglutinadores de opinião, seja todo e qualquer movimento que ouse dizer a verdade, pela simples razão que, como os tiranos da Antiga Grécia, eles se fundamentam na Força e não tem legitimidade.
Daí, o medo da palavra e dos homens livres.
Não é de hoje que a censura ensaia o seu retorno ao nosso convívio. A censura, negação que é do conhecimento, é uma excrescência do autoritarismo e como tal deve ser tratada e enfrentada.
Não são apenas os inimigos confessos da liberdade e da democracia que estão entre seus sequazes. Também as personalidades ditas autoritárias, na definição de T.W. Adorno, embora possam dizer até o contrário, na verdade se dispõem a criarem condições para a sua virtual reimplantação.
Intuo a eventual perplexidade do leitor. No fim de contas, a Constituição não extinguiu a censura ?
O inciso IX do artigo 5º estabelece: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
E o parágrafo 2º do artigo 220 determina: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
Durante muito tempo, a despeito da ausência de qualquer legislação regulamentando tais princípios basilares da Lei Magna, o sentir da Nação era que a vontade do Constituinte de 1988 se manifestara neste campo de forma tão inequívoca, que qualquer outra lei complementar não se fazia necessária.
Infelizmente, a hidra do autoritarismo não enjeita a paciência, nem os longos descaminhos, desde que, com a falsa moderação de um suposto gradualismo, vá amealhando, se possível no silêncio, alguns logros para o seu inconfessável objetivo.
A censura entre nós longe está de não dispor de partidários.
Não obstante o mandamento constitucional, será em magistrados da Justiça de primeira instância que este movimento pró-censura se vem articulando. Nesse contexto, surge a decisão do Juiz Benedito Helder Afonso Ibiapina, da 16ª Vara Cível da Comarca de Fortaleza de proibir, através de liminar, o jornal “O Povo”de divulgar reportagem sobre o processo que corre na Justiça Federal a respeito do jogo do bicho no Ceará.
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) divulgou nota condenando a decisão do juiz Ibiapina. Terá escapado à Sua Senhoria o simbolismo desta determinação, proibindo que O Povo noticie inclusive a sentença do juiz da 11ª Vara Federal que tornou indisponíveis os bens pessoais de João Carlos Mendonça, denunciado pelo Ministério Público Federal em ação penal derivada da Operação Arca de Noé, realizada pela Polícia Federal em 2008.
Não há dúvida, como de resto assevera a ANJ, que a proibição do juíz Helder Ibiapina é censura prévia à imprensa, “que viola frontalmente o espírito e a letra da liberdade de expressão assegurada pela Constituição Federal.”
A nota é assinada por Júlio César Mesquita, vice-presidente da ANJ e responsável pelo Comitê de Liberdade de Expressão dessa entidade. No passado, um outro Júlio Mesquita já demonstrara, e em tempos mais difíceis, o apreço que tinha pela liberdade de expressão e, para sua glória, a promoção da livre discussão no domínio das idéias, consoante os princípios de Voltaire.
Não creio, porém, que seja o caso de ficar na manifestação de desejos pela revogação de uma liminar arbitrária e inconstitucional. Já assistimos a diversos exemplos de questionáveis intervenções de juízes de primeira instância, e algumas delas lograram os seus escopos de censura. Igualmente, presenciamos o intento de vedar a publicação de livros, cousa que nem a ditadura militar alcançara.
Passou o tempo de dormir sobre os louros de velhas declarações. A Constituição precisa ser respeitada e a abolição da censura é regra fundamental em um país democrático.
Carecemos de fechar as gretas pelas quais se insinuam os fautores da censura. Nos Estados Unidos, a Segunda Emenda Constitucional assegura e explicita a liberdade de expressão. Penso que é mais do que tempo de barrar o caminho àqueles que desvirtuam o legado de Ulysses Guimarães, Mário Covas e tantos outros.
Muita vez as declarações, por fundamentadas que sejam, não bastam. É tempo de criar para a defesa deste sagrado princípio um instrumental mais incisivo e eficaz. Antes que seja tarde.
sexta-feira, 20 de março de 2009
Ilegal e daí ?
Como a cobertura aerofotográfica do Rio de Janeiro o demonstra sobejamente, é muito grande o crescimento das construções nas favelas cariocas. No longo período em que Cesar Maia foi prefeito, o controle dos órgãos municipais deixou muito a desejar sobre uma expansão desmedida. Em muitas zonas as novas construções avançaram em detrimento de áreas supostamente protegidas da remanescente mata atlântica, não raro com a agravante de serem feitas em encostas, formações lacustres ou nas margens de correntes d’água.
Apesar de não ter apoiado o atual Prefeito, Eduardo Paes, na recente eleição, cabe-me assinalar que ele se vem empenhando em combater a desordem urbana, consoante a sua promessa de campanha.
O crescimento desordenado da favela da Rocinha – uma das maiores do Rio de Janeiro -, alentado pela inação de Cesar Maia, agora se defronta com a disposição de Paes de estabelecer parâmetros com vistas à contenção da zona ocupada.
Dentro da anomia urbanística que caracteriza a favela, está sendo construído na encosta um prédio horizontal de dois andares, com 22 unidades para aluguel. Dada a sua inusitada extensão, passou a ser conhecido como ‘Minhocão’. A sua alegada proprietária é Maria Clara do Santos, conhecida como MC Boquinha. Ligada ao líder comunitário e vereador, Claudinho da Academia, dele recebeu determinante ajuda para a obtenção da primeira liminar, concedida de madrugada pela juíza de plantão, Regina Lúcia Passos, da 1ª Vara da Família da Barra da Tijuca.
Sua Senhoria decidiu que o Estado não poderia demolir o dito Minhocão. Pela liminar, a juíza permite que continue a construção do prédio, a despeito de achar-se em sítio irregular. Para a juíza Regina Lúcia Passos a demolição do Minhocão é “exagerada, inoportuna e inócua”, além de “midiática”. Como asseverou comentário do jornal O Globo, “prédio com 18 quitinetes, o Minhocão, foi apresentado à juíza Regina Lúcia Passos, e aceito por ela, como uma residência familiar, quando se trata, visivelmente, de mais uma jogada da especulação imobiliária que avança em favelas à margem de qualquer lei e norma.”
A novela do Minhocão não parou aí. Derrubada a liminar da juíza pelo juiz Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto, da 8ª Vara da Fazenda Pública, a prefeitura se preparava para levar a cabo a demolição quando irrompeu outra liminar, esta concedida pelo desembargador Sergio Jerônimo Abreu da Silveira, novamente impedindo a demolição.
Em sentença do próprio punho, mais uma vez, segundo O Globo, escrita em casa e sem estar totalmente seguro – como admitiu – o desembargador Abreu da Silveira exarou outra liminar, impedindo a demolição do Minhocão. Com efeito, o citado desembargador alegou “que não tem total segurança para permitir que a demolição se concretize”.
O Secretário da Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, que leu o despacho manuscrito, surpreendeu-se com a agilidade de MC Boquinha em conseguir nova liminar, o que a faria especuladora imobiliária, com um “corpo de advogados que consegue liminares em plantões da justiça”. Existem, de resto, elementos para comprovar que “aquela senhora não é a dona real daquele imóvel, tem alguém por trás dela”. Esse alguém seria o comerciante Rodrigo Miranda de Carvalho, com participação em restaurantes na Gávea. Miranda de Carvalho não mora na Rocinha.
A Prefeitura recorreu de imediato de mais esta liminar.
É importante que se tenha presente que através desses embargos à demolição, os construtores do prédio – que se faz ao arrepio das posturas municipais – procuram apressar a obra, de modo a finalizá-la em breve prazo. Nessa corrida contra o tempo, se o prédio for habitado de alguma forma, a demolição ficaria dependente de um outro rito judicial, muito mais lento e problemático.
A esse propósito, em cenário em que o manifestamente ilegal dispõe de pluralidade de recursos judiciais, e a Prefeitura, para defender o interesse público, precisa enfrentar guerra de liminares, o arquiteto e urbanista Canagé Vilhena alerta para um aspecto relevante: “o plantão judiciário está sendo usado por advogados experientes que escolhem bem os recursos para impedir a consumação de decisões. Querem jogar a decisão para a frente, permitindo o fim da obra e a ocupação, tornando mais difícil a demolição.”
Não desperta surpresa, por outro lado, que o representante dos advogados – o procurador-geral da OAB, Ronaldo Cramer - considere que faz parte da disputa o uso do plantão judiciário para obter decisões urgentes. Ele próprio, no entanto, assinala que pela natureza dos plantões, os juízes e desembargadores não têm acesso aos autos dos processos. Se nessas condições a amplitude da decisão dos magistrados costuma ser limitada, tal não impediu que no caso em tela o escopo da ação haja sido alcançado, i.e., impedir a intervenção da prefeitura.
Nesse emaranhado jurídico, como se vê, o tempo não corre exatamente em favor do órgão público. MC Boquinha, Claudinho da Academia e o presumido real proprietário fulminam liminares de magistrados (que não estão plenamente informados pela própria natureza do plantão judiciário), e logram deter a intervenção da Prefeitura.
Decerto, a tarefa do Secretário da Ordem Pública no Rio de Janeiro não semelha nada invejável. Na luta contra a cultura da ilegalidade, é de esperar-se que a justiça, a exemplo do Juiz da 8ª Vara da Fazenda Pública, continue a mostrar igual celeridade na defesa do interesse público em face da especulação imobiliária. Se as raízes do alegado princípio do “Ilegal e daí ?” começarem a ser arrancadas, terá sido dado um passo importante na caminhada do Prefeito Eduardo Paes.
Apesar de não ter apoiado o atual Prefeito, Eduardo Paes, na recente eleição, cabe-me assinalar que ele se vem empenhando em combater a desordem urbana, consoante a sua promessa de campanha.
O crescimento desordenado da favela da Rocinha – uma das maiores do Rio de Janeiro -, alentado pela inação de Cesar Maia, agora se defronta com a disposição de Paes de estabelecer parâmetros com vistas à contenção da zona ocupada.
Dentro da anomia urbanística que caracteriza a favela, está sendo construído na encosta um prédio horizontal de dois andares, com 22 unidades para aluguel. Dada a sua inusitada extensão, passou a ser conhecido como ‘Minhocão’. A sua alegada proprietária é Maria Clara do Santos, conhecida como MC Boquinha. Ligada ao líder comunitário e vereador, Claudinho da Academia, dele recebeu determinante ajuda para a obtenção da primeira liminar, concedida de madrugada pela juíza de plantão, Regina Lúcia Passos, da 1ª Vara da Família da Barra da Tijuca.
Sua Senhoria decidiu que o Estado não poderia demolir o dito Minhocão. Pela liminar, a juíza permite que continue a construção do prédio, a despeito de achar-se em sítio irregular. Para a juíza Regina Lúcia Passos a demolição do Minhocão é “exagerada, inoportuna e inócua”, além de “midiática”. Como asseverou comentário do jornal O Globo, “prédio com 18 quitinetes, o Minhocão, foi apresentado à juíza Regina Lúcia Passos, e aceito por ela, como uma residência familiar, quando se trata, visivelmente, de mais uma jogada da especulação imobiliária que avança em favelas à margem de qualquer lei e norma.”
A novela do Minhocão não parou aí. Derrubada a liminar da juíza pelo juiz Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto, da 8ª Vara da Fazenda Pública, a prefeitura se preparava para levar a cabo a demolição quando irrompeu outra liminar, esta concedida pelo desembargador Sergio Jerônimo Abreu da Silveira, novamente impedindo a demolição.
Em sentença do próprio punho, mais uma vez, segundo O Globo, escrita em casa e sem estar totalmente seguro – como admitiu – o desembargador Abreu da Silveira exarou outra liminar, impedindo a demolição do Minhocão. Com efeito, o citado desembargador alegou “que não tem total segurança para permitir que a demolição se concretize”.
O Secretário da Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, que leu o despacho manuscrito, surpreendeu-se com a agilidade de MC Boquinha em conseguir nova liminar, o que a faria especuladora imobiliária, com um “corpo de advogados que consegue liminares em plantões da justiça”. Existem, de resto, elementos para comprovar que “aquela senhora não é a dona real daquele imóvel, tem alguém por trás dela”. Esse alguém seria o comerciante Rodrigo Miranda de Carvalho, com participação em restaurantes na Gávea. Miranda de Carvalho não mora na Rocinha.
A Prefeitura recorreu de imediato de mais esta liminar.
É importante que se tenha presente que através desses embargos à demolição, os construtores do prédio – que se faz ao arrepio das posturas municipais – procuram apressar a obra, de modo a finalizá-la em breve prazo. Nessa corrida contra o tempo, se o prédio for habitado de alguma forma, a demolição ficaria dependente de um outro rito judicial, muito mais lento e problemático.
A esse propósito, em cenário em que o manifestamente ilegal dispõe de pluralidade de recursos judiciais, e a Prefeitura, para defender o interesse público, precisa enfrentar guerra de liminares, o arquiteto e urbanista Canagé Vilhena alerta para um aspecto relevante: “o plantão judiciário está sendo usado por advogados experientes que escolhem bem os recursos para impedir a consumação de decisões. Querem jogar a decisão para a frente, permitindo o fim da obra e a ocupação, tornando mais difícil a demolição.”
Não desperta surpresa, por outro lado, que o representante dos advogados – o procurador-geral da OAB, Ronaldo Cramer - considere que faz parte da disputa o uso do plantão judiciário para obter decisões urgentes. Ele próprio, no entanto, assinala que pela natureza dos plantões, os juízes e desembargadores não têm acesso aos autos dos processos. Se nessas condições a amplitude da decisão dos magistrados costuma ser limitada, tal não impediu que no caso em tela o escopo da ação haja sido alcançado, i.e., impedir a intervenção da prefeitura.
Nesse emaranhado jurídico, como se vê, o tempo não corre exatamente em favor do órgão público. MC Boquinha, Claudinho da Academia e o presumido real proprietário fulminam liminares de magistrados (que não estão plenamente informados pela própria natureza do plantão judiciário), e logram deter a intervenção da Prefeitura.
Decerto, a tarefa do Secretário da Ordem Pública no Rio de Janeiro não semelha nada invejável. Na luta contra a cultura da ilegalidade, é de esperar-se que a justiça, a exemplo do Juiz da 8ª Vara da Fazenda Pública, continue a mostrar igual celeridade na defesa do interesse público em face da especulação imobiliária. Se as raízes do alegado princípio do “Ilegal e daí ?” começarem a ser arrancadas, terá sido dado um passo importante na caminhada do Prefeito Eduardo Paes.
quinta-feira, 19 de março de 2009
O Senado é o Limite
Mais uma vez o Senado Federal confrange a opinião pública. Aparentemente é inexaurível a capacidade dessa assembléia de afundar-se na crise sistêmica.
O último escândalo vindo à tona é o farsesco número de diretorias do Senado – que ao invés de 136 na verdade são 181.
O presidente José Sarney – que alegou desconhecer até então o fato – declarou que pretende reduzir esses cargos pela metade. Nesse sentido, assinou protocolo de intenções com a Fundação Getúlio Vargas, para que se promova “profunda reestruturação administrativa na Casa.” O prazo estimativo para concluir-se a primeira parte da consultoria é de seis meses.
Acrescentou Sarney que a restruturação administrativa necessitará de esforço político, e assinalou “Vamos ter problemas políticos sérios a enfrentar, mas teremos a determinação de fazê-lo.”
“Problemas sérios” ? Como assim ? Supostamente, o novo presidente do Senado descobre o número excessivo de diretores – que, obsequiosos, põem os cargos à disposição -, combina com a FGV uma auditoria (que prorroga a presente situação pelo menos por mais seis meses), e adianta, com a determinação habitual, que se propõe cortar pela metade esses cargos.
“Pela metade”, Senhor Presidente ? Será que a conexão do Senado com o bom senso – para não falar de ética administrativa – se acha tão esgarçada que Sua Excelência julga adequado que os pais da pátria tenham noventa diretores (portanto, um número superior aos dos próprios senadores) ?
Para uma estrutura administrativa do gênero, se se desejasse efetivamente resolver a questão à luz da experiência, da distribuição apropriada de tarefas, e do respeito pelo dinheiro do contribuinte, não haveria necessidade nem de seis meses para exame preliminar, nem muito menos desses absurdos noventa diretores.
Será demasiado perguntar se se pretende realmente resolver a questão, ou apenas postergá-la, confiando no tempo para que se amainem aos poucos os protestos, e que enfim os carregue o rio do esquecimento ?
O Senado da República vai de crise em crise. Não faz muito se levantou a tese da sua supressão, com a transformação do Congresso Nacional em instituição unicameral.
Muitas vezes as revelações que incomodam ou revoltam a opinião pública fazem parte de um processo de guerra intestina, em que as facções e seus líderes lançam denúncias para colocar em dificuldade a seus opositores. Exemplo disto, conforme se lê na Folha de hoje, a série de acusações que é sequela da disputa pela presidência do Senado. Dessarte, Sarney tem de explicar por que enviou policiais legislativos para vigiar uma de suas propriedades no Maranhão; depois, a filha Roseana, acusada de usar sua cota de passagens aéreas para trazer empresários e amigos a Brasília. Em seguida, do outro lado, a ‘revelação’ de que Tião Viana emprestou um celular da Casa para a filha viajar ao México.
Colocado diante dos acontecimentos no Senado, o Presidente da República não refuga mais uma declaração. Elogia o comportamento da presidência da Casa: “ O bom é que se esteja descobrindo e corrigindo os problemas. Queria que toda a sociedade agisse da mesma forma. Assim, quem sabe, teríamos uma sociedade mais perfeita.”
Encarecer à sociedade civil que aja da mesma forma ? Mas o povo brasileiro, senhor Presidente, não tem problemas de excesso e sim de carência. Não há o que imitar do desperdício com os fundos públicos, que no Senado – e na Câmara – é fruto de uma cultura alienada, em que o excesso é a norma. A única compressão que existe é a da semana laboral. Mas mesmo neste ponto há uma coerência por arrevezada que seja com todas as características atinentes à atividade de Senadores (e Deputados). Estão em descompasso com a sociedade civil.
E o privilégio será o dúbio galardão que há de acompanhá-los desde a diplomação até o reencontro com os eleitores, daqui a quatro ou oito anos. As possibilidades de defenestração através da cassação são poucas, dado o corporativismo das assembléias. A única questão em aberto fica na alçada das Parcas, que, forçoso é reconhecer, são um tanto mais difíceis de propiciar.
O último escândalo vindo à tona é o farsesco número de diretorias do Senado – que ao invés de 136 na verdade são 181.
O presidente José Sarney – que alegou desconhecer até então o fato – declarou que pretende reduzir esses cargos pela metade. Nesse sentido, assinou protocolo de intenções com a Fundação Getúlio Vargas, para que se promova “profunda reestruturação administrativa na Casa.” O prazo estimativo para concluir-se a primeira parte da consultoria é de seis meses.
Acrescentou Sarney que a restruturação administrativa necessitará de esforço político, e assinalou “Vamos ter problemas políticos sérios a enfrentar, mas teremos a determinação de fazê-lo.”
“Problemas sérios” ? Como assim ? Supostamente, o novo presidente do Senado descobre o número excessivo de diretores – que, obsequiosos, põem os cargos à disposição -, combina com a FGV uma auditoria (que prorroga a presente situação pelo menos por mais seis meses), e adianta, com a determinação habitual, que se propõe cortar pela metade esses cargos.
“Pela metade”, Senhor Presidente ? Será que a conexão do Senado com o bom senso – para não falar de ética administrativa – se acha tão esgarçada que Sua Excelência julga adequado que os pais da pátria tenham noventa diretores (portanto, um número superior aos dos próprios senadores) ?
Para uma estrutura administrativa do gênero, se se desejasse efetivamente resolver a questão à luz da experiência, da distribuição apropriada de tarefas, e do respeito pelo dinheiro do contribuinte, não haveria necessidade nem de seis meses para exame preliminar, nem muito menos desses absurdos noventa diretores.
Será demasiado perguntar se se pretende realmente resolver a questão, ou apenas postergá-la, confiando no tempo para que se amainem aos poucos os protestos, e que enfim os carregue o rio do esquecimento ?
O Senado da República vai de crise em crise. Não faz muito se levantou a tese da sua supressão, com a transformação do Congresso Nacional em instituição unicameral.
Muitas vezes as revelações que incomodam ou revoltam a opinião pública fazem parte de um processo de guerra intestina, em que as facções e seus líderes lançam denúncias para colocar em dificuldade a seus opositores. Exemplo disto, conforme se lê na Folha de hoje, a série de acusações que é sequela da disputa pela presidência do Senado. Dessarte, Sarney tem de explicar por que enviou policiais legislativos para vigiar uma de suas propriedades no Maranhão; depois, a filha Roseana, acusada de usar sua cota de passagens aéreas para trazer empresários e amigos a Brasília. Em seguida, do outro lado, a ‘revelação’ de que Tião Viana emprestou um celular da Casa para a filha viajar ao México.
Colocado diante dos acontecimentos no Senado, o Presidente da República não refuga mais uma declaração. Elogia o comportamento da presidência da Casa: “ O bom é que se esteja descobrindo e corrigindo os problemas. Queria que toda a sociedade agisse da mesma forma. Assim, quem sabe, teríamos uma sociedade mais perfeita.”
Encarecer à sociedade civil que aja da mesma forma ? Mas o povo brasileiro, senhor Presidente, não tem problemas de excesso e sim de carência. Não há o que imitar do desperdício com os fundos públicos, que no Senado – e na Câmara – é fruto de uma cultura alienada, em que o excesso é a norma. A única compressão que existe é a da semana laboral. Mas mesmo neste ponto há uma coerência por arrevezada que seja com todas as características atinentes à atividade de Senadores (e Deputados). Estão em descompasso com a sociedade civil.
E o privilégio será o dúbio galardão que há de acompanhá-los desde a diplomação até o reencontro com os eleitores, daqui a quatro ou oito anos. As possibilidades de defenestração através da cassação são poucas, dado o corporativismo das assembléias. A única questão em aberto fica na alçada das Parcas, que, forçoso é reconhecer, são um tanto mais difíceis de propiciar.
quarta-feira, 18 de março de 2009
Imagem e Violência
É conhecida a preocupação dos meios turísticos com a imagem do país. Se não me engano, na série deste blog já houve análise da questão. Se não é minha intenção ora desenvolver o tema, acredito oportuno assinalar para o leitor a minha principal ressalva ao problema da imagem. Assim, se uma campanha, seja privada, seja oficial, se proponha melhorar a imagem respectiva da atividade ou do país, a pergunta que se pode colocar será em que medida se respeitará a realidade objetiva de que a imagem não é mais do que projeção.
O Brasil pela sua natureza, praias, recantos apraziveis e famosos, fornece matéria suscetível de motivar o interesse do turista estrangeiro, e, em especial, europeus e americanos, pela oportunidade de escapar dos rigores do inverno boreal e gozar das delícias do verão (e outono) tropical. Que belas e apetecíveis fotos propiciam os ambientes paradisíacos das praias do Nordeste, do Rio de Janeiro, de Búzios, de Santa Catarina, entre tantas outras!
A dificuldade que pode se apresentar para esta divulgação é que esses mares, essas praias, não existem no vazio. Além das palmeiras, das brancas e finas areias, das águas turqueza, plácidas e convidativas, há populações que, em geral, os fotógrafos não costumam incluir em seus instantâneos.
Nada contra tal exclusão. Todo turista, por mais alienado que seja, terá presente que compensará as passagens aéreas mais caras do hemisfério sul com os preços digamos mais atraentes de hospedagem e alimentação. O povo brasileiro é alegre, hospitaleiro e, em muitos casos, nas áreas de menor poder aquisitivo, vê no visitante estrangeiro fonte subsidiária para auferir recursos honestos em ampla gama de atividades legais.
Não há de surpreender a ninguém que haja gente que não esteja exatamente de acordo com este approach.
Ultimamente, os jornais e a televisão nos tem trazido muitas imagens e notícias que não casam muito bem com a visão idílica dos cartazes das agências de turismo. Não me reporto ao turismo sexual, que chega a motivar estranhas e amiudadas frequências aéreas, mas a outro tipo de atividade, decerto mais violento, que se tem especializado em assaltos conjuntos a indefesos hotéis de várias estrelas.
Nesse contexto, penso no brutal arrastão em prazerosa pousada de Búzios, realizado por oito bandidos armados, que cortaram a inesquecível temporada de trinta turistas, a maior parte argentina. Qual a imagem que transmitirão eles para amigos e familiares, ao retornarem para seus países ? O que representa um encontro traumático desse gênero para sua imagem da segurança e da eficácia da polícia local ?
O mesmo cabe dizer do crime contra um europeu em praia do Rio Grande do Norte. Uma cousa se pode garantir: se para os jornais brasileiros, após o dia imediato, a ocorrência deixará de ser notícia, a ferida levará mais tempo para cicatrizar na terra do turista.
Tampouco estas investidas criminosas constituem ataque inesperado em um Brasil de que a população, morigerada e trabalhadora, não tem de se preocupar com a face hedionda da violência. Para tanto, se desejássemos viver esta experiência, teríamos de voltar para os anos cinquenta. O retorno tranquilo para casa, caminhando na calada da noite. Quem se animaria a tal prova, nos dias que correm ?
Por isso, só há de surpreender às polícias militares estaduais que se reserve aos estrangeiros, mutatis mutandis, a sorte diuturna que cabe ao brasileiro. Aqui se ouve muita vez a expressão de que é Deus quem se ocupa da segurança. Não se pensa decerto no Jeová, demasiado presente do Velho Testamento, mas numa divindade algo longínqua, no teísmo da profissão de fé do Vigário da Savóia, de Jean-Jacques Rousseau.
A cada eleição, ouvimos as promessas de nossos governantes de que as coisas vão mudar, e a segurança será priorizada. Talvez queiramos acreditar, mas é dificil, diante dos antecedentes.
Excetuado o Bope do Capitão Rodrigo, a PM do Rio de Janeiro só se aperfeiçoa nos comunicados em que procura explicar a própria incapacidade de prevenir e dominar a violência. O mesmo quadro se repete pelos brasis afora.
Assistimos ao armamento desenfreado do crime organizado. Quem não terá lido as risíveis declarações das várias corporações que, ao invés de admitir a sua parcela de responsabilidade, só cuidam de promover um cinico jogo de empurra ?
Que terra é esta em que as autoridades não intervêm para assumir as próprias responsabilidades, bem como rasgar as fantasias, dar nome aos bois, e apurar as culpas ?
Não é que tais autoridades – da mais alta para baixo – sejam taciturnas e falem pouco. Pelo contrário. Muitas vezes, falam muito, até demais, como se fossem comentaristas, espectadores privilegiados de realidade com a qual deveriam se ocupar ex-officio. Apreciaríamos que falassem menos e agissem um pouco mais. Não em aumentar o superavit primário. Cada acréscimo neste instrumento dos banqueiros representa menos educação, menos saúde, menos transporte e menos segurança.
Que não se espantem, portanto, senhores, se a imagem para inglês ver ora se desfigure e algo desta realidade vá respingar nos turistas estrangeiros.
O Brasil pela sua natureza, praias, recantos apraziveis e famosos, fornece matéria suscetível de motivar o interesse do turista estrangeiro, e, em especial, europeus e americanos, pela oportunidade de escapar dos rigores do inverno boreal e gozar das delícias do verão (e outono) tropical. Que belas e apetecíveis fotos propiciam os ambientes paradisíacos das praias do Nordeste, do Rio de Janeiro, de Búzios, de Santa Catarina, entre tantas outras!
A dificuldade que pode se apresentar para esta divulgação é que esses mares, essas praias, não existem no vazio. Além das palmeiras, das brancas e finas areias, das águas turqueza, plácidas e convidativas, há populações que, em geral, os fotógrafos não costumam incluir em seus instantâneos.
Nada contra tal exclusão. Todo turista, por mais alienado que seja, terá presente que compensará as passagens aéreas mais caras do hemisfério sul com os preços digamos mais atraentes de hospedagem e alimentação. O povo brasileiro é alegre, hospitaleiro e, em muitos casos, nas áreas de menor poder aquisitivo, vê no visitante estrangeiro fonte subsidiária para auferir recursos honestos em ampla gama de atividades legais.
Não há de surpreender a ninguém que haja gente que não esteja exatamente de acordo com este approach.
Ultimamente, os jornais e a televisão nos tem trazido muitas imagens e notícias que não casam muito bem com a visão idílica dos cartazes das agências de turismo. Não me reporto ao turismo sexual, que chega a motivar estranhas e amiudadas frequências aéreas, mas a outro tipo de atividade, decerto mais violento, que se tem especializado em assaltos conjuntos a indefesos hotéis de várias estrelas.
Nesse contexto, penso no brutal arrastão em prazerosa pousada de Búzios, realizado por oito bandidos armados, que cortaram a inesquecível temporada de trinta turistas, a maior parte argentina. Qual a imagem que transmitirão eles para amigos e familiares, ao retornarem para seus países ? O que representa um encontro traumático desse gênero para sua imagem da segurança e da eficácia da polícia local ?
O mesmo cabe dizer do crime contra um europeu em praia do Rio Grande do Norte. Uma cousa se pode garantir: se para os jornais brasileiros, após o dia imediato, a ocorrência deixará de ser notícia, a ferida levará mais tempo para cicatrizar na terra do turista.
Tampouco estas investidas criminosas constituem ataque inesperado em um Brasil de que a população, morigerada e trabalhadora, não tem de se preocupar com a face hedionda da violência. Para tanto, se desejássemos viver esta experiência, teríamos de voltar para os anos cinquenta. O retorno tranquilo para casa, caminhando na calada da noite. Quem se animaria a tal prova, nos dias que correm ?
Por isso, só há de surpreender às polícias militares estaduais que se reserve aos estrangeiros, mutatis mutandis, a sorte diuturna que cabe ao brasileiro. Aqui se ouve muita vez a expressão de que é Deus quem se ocupa da segurança. Não se pensa decerto no Jeová, demasiado presente do Velho Testamento, mas numa divindade algo longínqua, no teísmo da profissão de fé do Vigário da Savóia, de Jean-Jacques Rousseau.
A cada eleição, ouvimos as promessas de nossos governantes de que as coisas vão mudar, e a segurança será priorizada. Talvez queiramos acreditar, mas é dificil, diante dos antecedentes.
Excetuado o Bope do Capitão Rodrigo, a PM do Rio de Janeiro só se aperfeiçoa nos comunicados em que procura explicar a própria incapacidade de prevenir e dominar a violência. O mesmo quadro se repete pelos brasis afora.
Assistimos ao armamento desenfreado do crime organizado. Quem não terá lido as risíveis declarações das várias corporações que, ao invés de admitir a sua parcela de responsabilidade, só cuidam de promover um cinico jogo de empurra ?
Que terra é esta em que as autoridades não intervêm para assumir as próprias responsabilidades, bem como rasgar as fantasias, dar nome aos bois, e apurar as culpas ?
Não é que tais autoridades – da mais alta para baixo – sejam taciturnas e falem pouco. Pelo contrário. Muitas vezes, falam muito, até demais, como se fossem comentaristas, espectadores privilegiados de realidade com a qual deveriam se ocupar ex-officio. Apreciaríamos que falassem menos e agissem um pouco mais. Não em aumentar o superavit primário. Cada acréscimo neste instrumento dos banqueiros representa menos educação, menos saúde, menos transporte e menos segurança.
Que não se espantem, portanto, senhores, se a imagem para inglês ver ora se desfigure e algo desta realidade vá respingar nos turistas estrangeiros.
terça-feira, 17 de março de 2009
O Brasil e a Crise
Ao contrário das declarações presidenciais ( Crise? que crise? vai falar com o Bush !), depois transformadas na hoje famigerada “marolinha”, desde muito, é forçoso reconhecer, a ficha da realidade caíu, desvelando, impiedosa, o caráter intempestivo das palavras do Presidente Lula.
Não se pode negar que a intenção presidencial visava a trazer nota de otimismo, e não agregar nenhuma previsão agourenta para cenário já bastante complexo. Esta preocupação foi decerto louvável, mas neste ponto o estilo preponderou, e o resultado não terá sido aquele desejado.
Seria um pouco tarde, para que se considere a oportunidade de avaliar a conveniência de que a maneira de ser do Presidente – sua espontaneidade, sua preferência pelo improviso - seja de algum modo matizada. Cabe, no entanto, a indagação do sentir que terá sido passado a Lula por seus assessores mais diretos no campo econômico-financeiro, tanto os oficiais (Mantega, Meirelles) quanto os oficiosos (Palocci e Delfim Neto).
Como não semelha crível que o Presidente Lula se haja manifestado sem auscultar os próprios colaboradores, sempre nessa linha de raciocínio, causa espécie que personalidades com tamanha familiaridade com tais questões, não tenham manifestado ao Primeiro Mandatário o seu temor de que a crise financeira – tão prontamente ressentida na Europa e na Ásia – também não chegasse até cá de forma um pouco mais agressiva do que a decantada ondinha do irrefreado otimismo de Sua Excelência. E por que razão me faço esta pergunta ? Simplesmente porque não me passa pela cabeça que esses senhores – não exatamente neófitos na matéria – hajam entretido a absurda previsão do que do alto de suas inexpugnáveis reservas de divisas, a fortaleza Brasil iria, sobranceira, ignorar os efeitos da crise.
A globalização não é um slogan, mas uma realidade. Por isso, se os leitores m’o permitem irei adiante, assumindo a suposição acima. Dessarte, se tais assessores eram de tal opinião, não se pode descontar, porém, que existissem nuanças nas respectivas opiniões. Talvez um que outro tenha sido mais acomodatício, mais possibilista, porém mesmo assim, com variações de ênfase nenhum experto que se preze nesta matéria poderia (salvo por aulicismo agudo) ter induzido o Presidente a acreditar que a crise não afetaria de modo sensível ao Brasil.
Pulando agora para a viagem do Presidente Lula à Casa Branca de Obama – tudo o mais são penduricalhos – é relevante assinalar um lugar-comum da diplomacia. Se visitas presidenciais não fazem milagres, tampouco devem ser desmerecidas por ineficazes. Pois elas, como neste caso, podem indicar uma tendência, da qual serão suscetíveis de cristalizar-se posições e iniciativas afins ou conjuntas. Do mesmo modo, nas alturas das reuniões de cúpula, o simbolismo é um aspecto a que não cabe desconhecer e muito menos desfazer.
Assim, queiram ou não a oposição e os colunistas de plantão, esta visita presidencial a Obama é relevante não só para o Brasil, senão para o seu Chefe de Estado, eis que o Presidente Lula foi o terceiro a ser recebido na Casa Branca. Só o futuro dirá se tal aponta para novo e profícuo relacionamento. Desde já, no entanto, não se afigura possível olhar para outro lado, e fingir que de nada importante ocorreu.
Não se pode negar que a intenção presidencial visava a trazer nota de otimismo, e não agregar nenhuma previsão agourenta para cenário já bastante complexo. Esta preocupação foi decerto louvável, mas neste ponto o estilo preponderou, e o resultado não terá sido aquele desejado.
Seria um pouco tarde, para que se considere a oportunidade de avaliar a conveniência de que a maneira de ser do Presidente – sua espontaneidade, sua preferência pelo improviso - seja de algum modo matizada. Cabe, no entanto, a indagação do sentir que terá sido passado a Lula por seus assessores mais diretos no campo econômico-financeiro, tanto os oficiais (Mantega, Meirelles) quanto os oficiosos (Palocci e Delfim Neto).
Como não semelha crível que o Presidente Lula se haja manifestado sem auscultar os próprios colaboradores, sempre nessa linha de raciocínio, causa espécie que personalidades com tamanha familiaridade com tais questões, não tenham manifestado ao Primeiro Mandatário o seu temor de que a crise financeira – tão prontamente ressentida na Europa e na Ásia – também não chegasse até cá de forma um pouco mais agressiva do que a decantada ondinha do irrefreado otimismo de Sua Excelência. E por que razão me faço esta pergunta ? Simplesmente porque não me passa pela cabeça que esses senhores – não exatamente neófitos na matéria – hajam entretido a absurda previsão do que do alto de suas inexpugnáveis reservas de divisas, a fortaleza Brasil iria, sobranceira, ignorar os efeitos da crise.
A globalização não é um slogan, mas uma realidade. Por isso, se os leitores m’o permitem irei adiante, assumindo a suposição acima. Dessarte, se tais assessores eram de tal opinião, não se pode descontar, porém, que existissem nuanças nas respectivas opiniões. Talvez um que outro tenha sido mais acomodatício, mais possibilista, porém mesmo assim, com variações de ênfase nenhum experto que se preze nesta matéria poderia (salvo por aulicismo agudo) ter induzido o Presidente a acreditar que a crise não afetaria de modo sensível ao Brasil.
Pulando agora para a viagem do Presidente Lula à Casa Branca de Obama – tudo o mais são penduricalhos – é relevante assinalar um lugar-comum da diplomacia. Se visitas presidenciais não fazem milagres, tampouco devem ser desmerecidas por ineficazes. Pois elas, como neste caso, podem indicar uma tendência, da qual serão suscetíveis de cristalizar-se posições e iniciativas afins ou conjuntas. Do mesmo modo, nas alturas das reuniões de cúpula, o simbolismo é um aspecto a que não cabe desconhecer e muito menos desfazer.
Assim, queiram ou não a oposição e os colunistas de plantão, esta visita presidencial a Obama é relevante não só para o Brasil, senão para o seu Chefe de Estado, eis que o Presidente Lula foi o terceiro a ser recebido na Casa Branca. Só o futuro dirá se tal aponta para novo e profícuo relacionamento. Desde já, no entanto, não se afigura possível olhar para outro lado, e fingir que de nada importante ocorreu.
domingo, 15 de março de 2009
Os bônus dos diretores da AIG - como interpretá-los ?
Edward Liddy, Diretor-Presidente da AIG, a mega-seguradora que teria falido se não fosse a ajuda recebida do Governo americano, anunciou que seriam pagos a diretores US$ 165 milhões, a título de ‘bônus e compensação’.
Poderíamos interpretar com simples desfaçatez estas vantagens atribuídas a executivos. É claro que este elemento existe, e talvez ele já nos auxilie a compreender melhor o porquê da gestão ruinosa desta companhia, e de outras mais. É preciso ser muito alienado para pensar em distribuir benefícios a diretores de uma companhia que só não fechou as portas por haver recebido 170 bilhões de dólares do Governo federal.
É de presumir-se que esses diretores tenham considerado ético desviar os 165 milhões da gratificações dos acima citados 170 bilhões.
No entanto, esse comportamento evidencia que muito ainda necessita ser feito e não apenas no campo das injeções de fundos. Simplesmente estamos diante de uma subcultura perniciosa, que carece de ser erradicada. Essa subcultura foi permitida não só por Alan Greenspan, que, a pretexto da liberdade do mercado, se recusou a fiscalizar, quando chefe da Federal Reserve, toda a farra do setor financeiro informal (shadow), que está documentada na série sobre a Crise Financeira Americana, mas também terá sido facilitada pela filosofia da desregulamentação, abraçada tanto pela Administração Clinton quanto pela de Bush júnior.
Seja a Administração Obama, seja o Congresso carecem de agir com energia, para erradicar esta nefasta subcultura, cuja ganância e irresponsabilidade estão na raiz de muitos dos problemas ora arrostados não só pelo setor bancário, senão por toda a economia estadunidense.
Em nenhum outro momento haverá oportunidade tão favorável para coibir tais práticas. Não é concebível que a Federal Reserve e a Secretaria do Tesouro venham transferindo tão vultosas somas do dinheiro do contribuinte americano para essas companhias – cujos diretores não primam por gestão séria e responsável – e não encontrem meios e modos de impedir abusos e extravagâncias dessa ordem.
Não faz muito, os presidentes da GM, Ford e Chrysler, quando convocados pelo Congresso - cuja ajuda pleiteavam para suas empresas à beira da bancarrota -, estes senhores não se pejaram de viajar para Washington cada um no jato executivo de sua quase falida companhia. Pela atitude agora dos diretores da AIG – que está sob intervenção federal – aquele comportamento anterior se afigura como um simples pecadilho, diante da desarrozoada reivindicação desses executivos da AIG, que parecem ainda não haverem despertado para a nova situação criada pela crise.
O futuro dirá se Congresso e Governo Obama serão capazes de mostrar que a situação realmente mudou. Porque, senão, como definir um tal desperdício de dinheiro público ?
Engraçado, discorrendo sobre o estapafúrdio comportamento dos diretores americanos, acudiu-me ao pensamento que talvez essa crassa alienação e desprezo pela opinião pública também possam ser encontrados em outros cenários mais próximos de nós...
Poderíamos interpretar com simples desfaçatez estas vantagens atribuídas a executivos. É claro que este elemento existe, e talvez ele já nos auxilie a compreender melhor o porquê da gestão ruinosa desta companhia, e de outras mais. É preciso ser muito alienado para pensar em distribuir benefícios a diretores de uma companhia que só não fechou as portas por haver recebido 170 bilhões de dólares do Governo federal.
É de presumir-se que esses diretores tenham considerado ético desviar os 165 milhões da gratificações dos acima citados 170 bilhões.
No entanto, esse comportamento evidencia que muito ainda necessita ser feito e não apenas no campo das injeções de fundos. Simplesmente estamos diante de uma subcultura perniciosa, que carece de ser erradicada. Essa subcultura foi permitida não só por Alan Greenspan, que, a pretexto da liberdade do mercado, se recusou a fiscalizar, quando chefe da Federal Reserve, toda a farra do setor financeiro informal (shadow), que está documentada na série sobre a Crise Financeira Americana, mas também terá sido facilitada pela filosofia da desregulamentação, abraçada tanto pela Administração Clinton quanto pela de Bush júnior.
Seja a Administração Obama, seja o Congresso carecem de agir com energia, para erradicar esta nefasta subcultura, cuja ganância e irresponsabilidade estão na raiz de muitos dos problemas ora arrostados não só pelo setor bancário, senão por toda a economia estadunidense.
Em nenhum outro momento haverá oportunidade tão favorável para coibir tais práticas. Não é concebível que a Federal Reserve e a Secretaria do Tesouro venham transferindo tão vultosas somas do dinheiro do contribuinte americano para essas companhias – cujos diretores não primam por gestão séria e responsável – e não encontrem meios e modos de impedir abusos e extravagâncias dessa ordem.
Não faz muito, os presidentes da GM, Ford e Chrysler, quando convocados pelo Congresso - cuja ajuda pleiteavam para suas empresas à beira da bancarrota -, estes senhores não se pejaram de viajar para Washington cada um no jato executivo de sua quase falida companhia. Pela atitude agora dos diretores da AIG – que está sob intervenção federal – aquele comportamento anterior se afigura como um simples pecadilho, diante da desarrozoada reivindicação desses executivos da AIG, que parecem ainda não haverem despertado para a nova situação criada pela crise.
O futuro dirá se Congresso e Governo Obama serão capazes de mostrar que a situação realmente mudou. Porque, senão, como definir um tal desperdício de dinheiro público ?
Engraçado, discorrendo sobre o estapafúrdio comportamento dos diretores americanos, acudiu-me ao pensamento que talvez essa crassa alienação e desprezo pela opinião pública também possam ser encontrados em outros cenários mais próximos de nós...
sexta-feira, 13 de março de 2009
A Crise Financeira Americana III
A Resposta Inicial da Federal Reserve e da Secretaria do Tesouro
A Federal Reserve – que a partir de 2006 passou a ser dirigida por Ben Bernanke, ex- professor de Princeton – diante da escassez do crédito começou a baixar a taxa de juros no outono de 2007. A nova orientação foi tomada apesar de ampla oposição ao corte dos juros, motivada por temor de ressurgência da inflação.
Um dos problemas enfrentados pela Federal Reserve é que o banco central americano não dispunha de informações adequadas sobre esses mercados, eis que os derivativos não eram negociados abertamente e os últimos CDOs, incluindo as obrigações com o respaldo de hipotecas só constavam dos livros do sistema bancário informal (shadow). Tinha sido um sério lapso de juízo, para não dizer irresponsabilidade, de parte da Federal Reserve sob Greenspan e da Comissão de Obrigações e Câmbio (SEC), sob Christopher Cox ao abster-se desde bastante tempo de buscar informações mais abrangentes sobre o crescimento (surge) dos empréstimos.
Depois que a Federal Reserve interveio para evitar a bancarrota do Bear Stearns na primavera de 2008, o Secretário do Tesouro Henry Paulson continuou a tranquilizar o público asseverando que a crise das hipotecas estava contida. Somente depois de permitirem a falência do Lehman Brothers em meados de setembro, seguido pelo colapso da AIG e de outras instituiões financeiras, que, afinal, ele se dispôs a solicitar um auxílio (bailout) de setecentos bilhões de dolares do Congresso, e posteriormente fornecer capital suplementar aos bancos.
Mesmo com os novos recursos, os bancos não aumentaram o crédito de forma apreciável. De resto, sem estipulações específicas que garantissem estes empréstimos, não seria de esperar que o fizessem. Até os valores das obrigações hipotecárias mais sólidas, fundadas em hipotecas prime, estavam caindo e consumindo parte do capital recebido do bailout.
Bernanke cortou de novo a taxa de crédito (de mais de 5% em meados de 2007 para um por cento). Contudo, com a queda dos preços das moradias, a indisponibilidade geral do crédito, e a queda na confiança dos consumidores, uma séria recessão não poderia ser evitada. No entender de Madrick, a Federal Reserve tem tomado ações ousadas para adquirir ou garantir fundos (assets) mantidos por instituições. No entanto, a curva de inadimplências nas hipotecas continua alta, e toda espécie de empréstimos para consumo e negócios continua sujeita ao mesmo perigo.
No fim de 2007, a Administração Bush e o Congresso formularam um primeiro plano de estimulo composto de dispêndios governamentais e de créditos fiscais (tax breaks) para o comércio. Não foi bastante. Os cheques de abatimento de despesas dados para a maioria dos americanos foram engolidos pelo aumento dos preços da gasolina na primavera e verão de 2008. O Congresso discutiu a possibilidade de um segundo plano de estímulo, mas acabou por nada fazer, em parte porque a Administração Bush não deu apoio. Em 2008 o desemprego atingiu 2.6 milhões, e em dezembro o Presidente-eleito Obama estava discutindo um pacote de recuperação econômica, bastante superior a um trilhão de dólares, coisa impensável três meses antes.
A re-regulamentação e os princípios da liberdade de mercado.
A equipe de Obama ainda não disse o que pensa acerca da re-regulamentação da comunidade financeira, uma vez que a economia volte a ser posta nos eixos. A equipe de economistas chefiada por Lawrence Summers, ex-Secretário do Tesouro (1999-2001) é formada de antigos partidários da desregulamentação financeira dos noventa, quando a maioria deles integrava a Administração Clinton. Como assinala a série do New York Times, Rubin, que antecedeu Summers como Secretário do Tesouro (1995-1999), Summers, então seu vice, e Greenspan se opuseram à regulamentação dos derivativos. Em 1999, Rubin e Summers apoiaram a revogação do Glass-Seagall Act, a legislação do New Deal que separava os bancos de investimento e os comerciais.
Com efeito, com as bênçãos da Administração Clinton e de Greenspan, os bancos comerciais já estavam se engajando em muitas das mais desenvoltas atividades dos bancos de investimento; e os bancos de investimento, junto com os fundos de hedge, firmas acionárias privadas, e outras instituições já estavam oferecendo empréstimos, antes pertencentes à seara dos bancos comerciais, através de aquisições e pacotes (packaging) de obrigações respaldadas por títulos hipotecários. A Administração Bush levou mais além a desregulamentação, eliminando, v.g., os limites colocados à tomada de empréstimos pelos maiores bancos de investimento.
Um principio deveria dominar a regulamentação futura: o sistema bancário informal deve ser submetido à mesma supervisão reguladora dos bancos comerciais. Em suma, tais firmas devem seguir requisitos mínimos de capital no que tange aos empréstimos que concedem, e as obrigações securitizadas e outros C.D.Os que comprem, de igual modo que os bancos comerciais. Não mais devem ser permitidos os vetores estruturados de investimento que os bancos comerciais empregam para evitar os requisitos de capital e outros. Uma instituição federal, de preferência a Federal Reserve, deve ter a autoridade e a obrigação de examinar os livros dos bancos de investimento, dos fundos de hedge, e outros atores do sistema bancário informal, de forma a determinar a qualidade de seus investimentos e estabelecer os padrões pelos quais se julga adequado o capital. Os derivativos deveriam ser listados em um departamento (exchange), em que informação a seu respeito e seus preços se acham acessíveis aos participantes do mercado e às autoridades federais.
Não bastam, contudo, apenas as regras normativas. Greenspan fora autorizado nos anos noventa pelo Congresso a examinar a qualidade dos empréstimos hipotecários, mas simplesmente delas não se valeu, alegando princípios de liberdade de mercado.
Também a SEC, confiada a Cox, nomeado por Bush, poderia ter examinado os livros dos bancos de investimento, mas igualmente não se importou de fazê-lo. Por isso, o Congresso deve falar mais alto e exercer de forma mais forte a própria autoridade.
Qualquer regulamentação deve também levar em conta os atuais incentivos aos dirigentes, o que os leva a colocar a companhia em risco na busca de proveitos pessoais. A possibilidade de coletar lucros imediatos de empréstimos arriscados infectou a indústria financeira e até a economia em geral, ensejando o ganho de bônus anuais desproporcionalmente altos. Estes incentivos estão entre as principais causas da irresponsabilidade em Wall Street. A melhor maneira de evitar a ocorrência dessa prática é basear os bônus e a compensação dos executivos financeiros na lucratividade a longo prazo das firmas de investimentos para as quais trabalham.
A primeira prioridade, no entanto, é a de consertar a economia. Até o presente, tem havido um sucesso modesto em impedir que as coisas piorem, não obstante toda a atividade da Federal Reserve e do Tesouro. O número de empregos perdidos cresce rapidamente, o consumo e a atividade produtiva estão caindo em níveis récorde, os preços das moradias continuam baixando, e grandes empresas, como Linens ‘n Things tem fechado as suas portas. As dificuldades enfrentadas pelas três grandes montadoras ( a GM, a Ford e a Chrysler) tiveram apenas uma suspensão temporária (reprieve) com o empréstimo recebido do Governo federal. O que faz esta recessão mais precária do que a profunda recessão de l982 é que ulterior queda nas rendas trará outro surto de contração intensa do crédito, com a inadimplência de mais proprietários residenciais, inclusive mutuários prime. Agora, muitas empresas devedoras estão igualmente a um ou dois passos da inadimplência.
Plano de salvamento da Economia.
As linhas básicas de um plano de recuperação deveriam estar claras. Há necessidade de duas colunas de ataque. Primo, o sistema de crédito deve ser descongelado, restabelecido o fluxo do crédito, inclusive hipotecas. Secondo, a demanda de bens e serviços deve ser restaurada para retardar a presente espiral declinante da economia.
Por ora, não está sendo bem conduzida a restauração da sanidade do sistema de crédito, embora algum pequeno progresso haja sido atingido. A Secretaria do Tesouro deu para os bancos, como injeção de capital, cerca de metade dos US$ 700 bilhões do bailout aprovado pelo Congresso. Como já foi referido, os bancos praticamente não utilizaram esses fundos para reanimar o mercado de crédito. Na verdade, foi fortemente criticada a ideia inicial de Paulson de comprar alguns dos ativos (assets) dos bancos que não poderiam ser vendidos ou mesmo avaliados. Com efeito, tal ideia era inábil e dispendiosa, porém se baseava em um princípio sensato. Se os bancos recebem capital, e se este capital cai em um buraco porque os ativos bancários continuam a desvalorizar-se, nada de bom se alcança. O valor dos ativos tem, portanto, que ser estabilizado.
O recente salvamento (bailout) do Citigroup, que garante 90% de uma parcela dos investimentos do banco, mediante o pagamento de contribuição (fee) pelo banco, foi mais prático, conquanto demasiado generoso com o Citibank. Proposta melhor seria a apresentada pelo economista Perry Mehrling, de Barnard College, pela qual o Governo ou asseguraria ou mesmo compraria os melhores ativos dos bancos – que de modo pouco racional perderam valor junto com os chamados fundos tóxicos. A um custo razoável, o Governo poderia então estancar parte do sangramento e o capital poderia ser empregado para conceder novos empréstimos, inclusive subscrição de novas hipotecas, e dessarte diminuir a queda nos preços das moradias.
Contudo, se as inadimplências continuarem a aumentar no corrente ritmo, o valor das obrigações de dívida hipotecária continuará sob constante pressão para baixo, assim como o próprio capital bancário. Pouco foi feito nesse campo pela Secretaria do Tesouro da administração Bush, deixando o encargo para modestas medidas tomadas por Fannie Mae e a instituição federal para o seguro dos depósitos. A par disso, compras de ativos foram feitas pela Federal Reserve.
Não há um jeito barato ou fácil para garantir os maus empréstimos (bad loans), mas devem ser encontradas maneiras de reduzir a taxa de inadimplência. Outro componente indispensável para reanimar o sistema de crédito tem a ver com a não-utilização de regras de contabilidade que na presente emergência só tenderiam a agravar a crise. As autoridades federais deveriam ter a necessária inventiva para ajustar tais disposições, inda que de forma temporária, de maneira a minimizar a crise.
A segunda parte de um plano de salvamento concerne à chamada economia real. Se americanos receosos começarem a entesourar uma parcela de sua renda como aquela do início dos noventa – um nível de poupança de cinco a seis por cento comparado com o quase zero de 2007 – a economia perderia de US$ 750 bilhões a US$ 1 trilhão em poder aquisitivo. As estarrecedoras perdas no mercado de ações e no valor das moradias (housing wealth) – que no ano passado totalizaram mais de US$ 10 trilhões – poderiam levar os consumidores a gastar menos do que o previsto muitas centenas de bilhões de dólares. Esta queda na procura rebaixaria bastante o emprego e os lucros. Além disso, com os fundos federais em nível tão baixo, é agora limitada a capacidade da Federal Reserve de estimular a economia através da redução da taxa de juros. Desse modo, um dispêndio governamental de cerca de US$ 750 bilhões por ano não se afigura um exagero.
Nesse campo, o Presidente-eleito Obama se tem movimentado de forma inteligente, posto que cautelosa, ao projetar um grande pacote de despesas, no montante provável de US$ 800 bilhões no espaço de dois anos. Ele investirá parte do dinheiro em infraestrutura e em energia limpa, com ênfase em medidas para a proteção contra o aquecimento global. Tal investimento de longo prazo criará empregos domésticos e será capaz, se bem dirigido, a estimular maior produtividade. O pacote de Obama também incluirá maiores vantagens para os desempregados, ajuda aos estados, e talvez, para angariar apoio político, cortes substanciais nos impostos. Não obstante, o buraco na economia pode ser maior do que antecipado por Obama, e não se pode descontar um ulterior estímulo dentro de uns seis meses.
Segundo a opinião de muitos economistas, esta é a pior crise econômica desde a grande depressão. Os participantes no mercado financeiro, movidos pela ganância, criaram uma bolha financeira de proporções trágicas. Todavia, a causa mais profunda foi a determinação prevalente entre pessoas com poder econômico e político para minimizar o recurso ao Governo para supervisionar os mercados financeiros e tomar medidas contra os naturais excessos.
Se se está à cata de verdadeiras soluções, a nação exige uma utilização forte e pragmática do governo, livre do jargão de laissez-faire e da indevida influência de interesses abusivos (vested interest) que de forma tão irresponsável controlaram a economia por tanto tempo.
A Federal Reserve – que a partir de 2006 passou a ser dirigida por Ben Bernanke, ex- professor de Princeton – diante da escassez do crédito começou a baixar a taxa de juros no outono de 2007. A nova orientação foi tomada apesar de ampla oposição ao corte dos juros, motivada por temor de ressurgência da inflação.
Um dos problemas enfrentados pela Federal Reserve é que o banco central americano não dispunha de informações adequadas sobre esses mercados, eis que os derivativos não eram negociados abertamente e os últimos CDOs, incluindo as obrigações com o respaldo de hipotecas só constavam dos livros do sistema bancário informal (shadow). Tinha sido um sério lapso de juízo, para não dizer irresponsabilidade, de parte da Federal Reserve sob Greenspan e da Comissão de Obrigações e Câmbio (SEC), sob Christopher Cox ao abster-se desde bastante tempo de buscar informações mais abrangentes sobre o crescimento (surge) dos empréstimos.
Depois que a Federal Reserve interveio para evitar a bancarrota do Bear Stearns na primavera de 2008, o Secretário do Tesouro Henry Paulson continuou a tranquilizar o público asseverando que a crise das hipotecas estava contida. Somente depois de permitirem a falência do Lehman Brothers em meados de setembro, seguido pelo colapso da AIG e de outras instituiões financeiras, que, afinal, ele se dispôs a solicitar um auxílio (bailout) de setecentos bilhões de dolares do Congresso, e posteriormente fornecer capital suplementar aos bancos.
Mesmo com os novos recursos, os bancos não aumentaram o crédito de forma apreciável. De resto, sem estipulações específicas que garantissem estes empréstimos, não seria de esperar que o fizessem. Até os valores das obrigações hipotecárias mais sólidas, fundadas em hipotecas prime, estavam caindo e consumindo parte do capital recebido do bailout.
Bernanke cortou de novo a taxa de crédito (de mais de 5% em meados de 2007 para um por cento). Contudo, com a queda dos preços das moradias, a indisponibilidade geral do crédito, e a queda na confiança dos consumidores, uma séria recessão não poderia ser evitada. No entender de Madrick, a Federal Reserve tem tomado ações ousadas para adquirir ou garantir fundos (assets) mantidos por instituições. No entanto, a curva de inadimplências nas hipotecas continua alta, e toda espécie de empréstimos para consumo e negócios continua sujeita ao mesmo perigo.
No fim de 2007, a Administração Bush e o Congresso formularam um primeiro plano de estimulo composto de dispêndios governamentais e de créditos fiscais (tax breaks) para o comércio. Não foi bastante. Os cheques de abatimento de despesas dados para a maioria dos americanos foram engolidos pelo aumento dos preços da gasolina na primavera e verão de 2008. O Congresso discutiu a possibilidade de um segundo plano de estímulo, mas acabou por nada fazer, em parte porque a Administração Bush não deu apoio. Em 2008 o desemprego atingiu 2.6 milhões, e em dezembro o Presidente-eleito Obama estava discutindo um pacote de recuperação econômica, bastante superior a um trilhão de dólares, coisa impensável três meses antes.
A re-regulamentação e os princípios da liberdade de mercado.
A equipe de Obama ainda não disse o que pensa acerca da re-regulamentação da comunidade financeira, uma vez que a economia volte a ser posta nos eixos. A equipe de economistas chefiada por Lawrence Summers, ex-Secretário do Tesouro (1999-2001) é formada de antigos partidários da desregulamentação financeira dos noventa, quando a maioria deles integrava a Administração Clinton. Como assinala a série do New York Times, Rubin, que antecedeu Summers como Secretário do Tesouro (1995-1999), Summers, então seu vice, e Greenspan se opuseram à regulamentação dos derivativos. Em 1999, Rubin e Summers apoiaram a revogação do Glass-Seagall Act, a legislação do New Deal que separava os bancos de investimento e os comerciais.
Com efeito, com as bênçãos da Administração Clinton e de Greenspan, os bancos comerciais já estavam se engajando em muitas das mais desenvoltas atividades dos bancos de investimento; e os bancos de investimento, junto com os fundos de hedge, firmas acionárias privadas, e outras instituições já estavam oferecendo empréstimos, antes pertencentes à seara dos bancos comerciais, através de aquisições e pacotes (packaging) de obrigações respaldadas por títulos hipotecários. A Administração Bush levou mais além a desregulamentação, eliminando, v.g., os limites colocados à tomada de empréstimos pelos maiores bancos de investimento.
Um principio deveria dominar a regulamentação futura: o sistema bancário informal deve ser submetido à mesma supervisão reguladora dos bancos comerciais. Em suma, tais firmas devem seguir requisitos mínimos de capital no que tange aos empréstimos que concedem, e as obrigações securitizadas e outros C.D.Os que comprem, de igual modo que os bancos comerciais. Não mais devem ser permitidos os vetores estruturados de investimento que os bancos comerciais empregam para evitar os requisitos de capital e outros. Uma instituição federal, de preferência a Federal Reserve, deve ter a autoridade e a obrigação de examinar os livros dos bancos de investimento, dos fundos de hedge, e outros atores do sistema bancário informal, de forma a determinar a qualidade de seus investimentos e estabelecer os padrões pelos quais se julga adequado o capital. Os derivativos deveriam ser listados em um departamento (exchange), em que informação a seu respeito e seus preços se acham acessíveis aos participantes do mercado e às autoridades federais.
Não bastam, contudo, apenas as regras normativas. Greenspan fora autorizado nos anos noventa pelo Congresso a examinar a qualidade dos empréstimos hipotecários, mas simplesmente delas não se valeu, alegando princípios de liberdade de mercado.
Também a SEC, confiada a Cox, nomeado por Bush, poderia ter examinado os livros dos bancos de investimento, mas igualmente não se importou de fazê-lo. Por isso, o Congresso deve falar mais alto e exercer de forma mais forte a própria autoridade.
Qualquer regulamentação deve também levar em conta os atuais incentivos aos dirigentes, o que os leva a colocar a companhia em risco na busca de proveitos pessoais. A possibilidade de coletar lucros imediatos de empréstimos arriscados infectou a indústria financeira e até a economia em geral, ensejando o ganho de bônus anuais desproporcionalmente altos. Estes incentivos estão entre as principais causas da irresponsabilidade em Wall Street. A melhor maneira de evitar a ocorrência dessa prática é basear os bônus e a compensação dos executivos financeiros na lucratividade a longo prazo das firmas de investimentos para as quais trabalham.
A primeira prioridade, no entanto, é a de consertar a economia. Até o presente, tem havido um sucesso modesto em impedir que as coisas piorem, não obstante toda a atividade da Federal Reserve e do Tesouro. O número de empregos perdidos cresce rapidamente, o consumo e a atividade produtiva estão caindo em níveis récorde, os preços das moradias continuam baixando, e grandes empresas, como Linens ‘n Things tem fechado as suas portas. As dificuldades enfrentadas pelas três grandes montadoras ( a GM, a Ford e a Chrysler) tiveram apenas uma suspensão temporária (reprieve) com o empréstimo recebido do Governo federal. O que faz esta recessão mais precária do que a profunda recessão de l982 é que ulterior queda nas rendas trará outro surto de contração intensa do crédito, com a inadimplência de mais proprietários residenciais, inclusive mutuários prime. Agora, muitas empresas devedoras estão igualmente a um ou dois passos da inadimplência.
Plano de salvamento da Economia.
As linhas básicas de um plano de recuperação deveriam estar claras. Há necessidade de duas colunas de ataque. Primo, o sistema de crédito deve ser descongelado, restabelecido o fluxo do crédito, inclusive hipotecas. Secondo, a demanda de bens e serviços deve ser restaurada para retardar a presente espiral declinante da economia.
Por ora, não está sendo bem conduzida a restauração da sanidade do sistema de crédito, embora algum pequeno progresso haja sido atingido. A Secretaria do Tesouro deu para os bancos, como injeção de capital, cerca de metade dos US$ 700 bilhões do bailout aprovado pelo Congresso. Como já foi referido, os bancos praticamente não utilizaram esses fundos para reanimar o mercado de crédito. Na verdade, foi fortemente criticada a ideia inicial de Paulson de comprar alguns dos ativos (assets) dos bancos que não poderiam ser vendidos ou mesmo avaliados. Com efeito, tal ideia era inábil e dispendiosa, porém se baseava em um princípio sensato. Se os bancos recebem capital, e se este capital cai em um buraco porque os ativos bancários continuam a desvalorizar-se, nada de bom se alcança. O valor dos ativos tem, portanto, que ser estabilizado.
O recente salvamento (bailout) do Citigroup, que garante 90% de uma parcela dos investimentos do banco, mediante o pagamento de contribuição (fee) pelo banco, foi mais prático, conquanto demasiado generoso com o Citibank. Proposta melhor seria a apresentada pelo economista Perry Mehrling, de Barnard College, pela qual o Governo ou asseguraria ou mesmo compraria os melhores ativos dos bancos – que de modo pouco racional perderam valor junto com os chamados fundos tóxicos. A um custo razoável, o Governo poderia então estancar parte do sangramento e o capital poderia ser empregado para conceder novos empréstimos, inclusive subscrição de novas hipotecas, e dessarte diminuir a queda nos preços das moradias.
Contudo, se as inadimplências continuarem a aumentar no corrente ritmo, o valor das obrigações de dívida hipotecária continuará sob constante pressão para baixo, assim como o próprio capital bancário. Pouco foi feito nesse campo pela Secretaria do Tesouro da administração Bush, deixando o encargo para modestas medidas tomadas por Fannie Mae e a instituição federal para o seguro dos depósitos. A par disso, compras de ativos foram feitas pela Federal Reserve.
Não há um jeito barato ou fácil para garantir os maus empréstimos (bad loans), mas devem ser encontradas maneiras de reduzir a taxa de inadimplência. Outro componente indispensável para reanimar o sistema de crédito tem a ver com a não-utilização de regras de contabilidade que na presente emergência só tenderiam a agravar a crise. As autoridades federais deveriam ter a necessária inventiva para ajustar tais disposições, inda que de forma temporária, de maneira a minimizar a crise.
A segunda parte de um plano de salvamento concerne à chamada economia real. Se americanos receosos começarem a entesourar uma parcela de sua renda como aquela do início dos noventa – um nível de poupança de cinco a seis por cento comparado com o quase zero de 2007 – a economia perderia de US$ 750 bilhões a US$ 1 trilhão em poder aquisitivo. As estarrecedoras perdas no mercado de ações e no valor das moradias (housing wealth) – que no ano passado totalizaram mais de US$ 10 trilhões – poderiam levar os consumidores a gastar menos do que o previsto muitas centenas de bilhões de dólares. Esta queda na procura rebaixaria bastante o emprego e os lucros. Além disso, com os fundos federais em nível tão baixo, é agora limitada a capacidade da Federal Reserve de estimular a economia através da redução da taxa de juros. Desse modo, um dispêndio governamental de cerca de US$ 750 bilhões por ano não se afigura um exagero.
Nesse campo, o Presidente-eleito Obama se tem movimentado de forma inteligente, posto que cautelosa, ao projetar um grande pacote de despesas, no montante provável de US$ 800 bilhões no espaço de dois anos. Ele investirá parte do dinheiro em infraestrutura e em energia limpa, com ênfase em medidas para a proteção contra o aquecimento global. Tal investimento de longo prazo criará empregos domésticos e será capaz, se bem dirigido, a estimular maior produtividade. O pacote de Obama também incluirá maiores vantagens para os desempregados, ajuda aos estados, e talvez, para angariar apoio político, cortes substanciais nos impostos. Não obstante, o buraco na economia pode ser maior do que antecipado por Obama, e não se pode descontar um ulterior estímulo dentro de uns seis meses.
Segundo a opinião de muitos economistas, esta é a pior crise econômica desde a grande depressão. Os participantes no mercado financeiro, movidos pela ganância, criaram uma bolha financeira de proporções trágicas. Todavia, a causa mais profunda foi a determinação prevalente entre pessoas com poder econômico e político para minimizar o recurso ao Governo para supervisionar os mercados financeiros e tomar medidas contra os naturais excessos.
Se se está à cata de verdadeiras soluções, a nação exige uma utilização forte e pragmática do governo, livre do jargão de laissez-faire e da indevida influência de interesses abusivos (vested interest) que de forma tão irresponsável controlaram a economia por tanto tempo.
quinta-feira, 12 de março de 2009
A Crise Financeira Americana (II)
Irresponsabilidade de diretores de grandes bancos.
A recessão de 2000 e, posteriormente, os ataques terroristas contra o World Trade Center de 11 de setembro de 2001 levaram a Federal Reserve, sob a direção de Alan Greenspan a cortar paulatinamente a taxa de juros, do fim de 2000, de 6.5% para 1.0%, em 2003, a taxa mais baixa desde os anos sessenta. Para as maiores instituições o tomar emprestado ficou praticamente de graça. Tampouco haveria um aumento proporcional da fiscalização federal dos empréstimos que estavam sendo realizados, uma atribuição da Federal Reserve que Greenspan intencionalmente deixou de aplicar. E os bancos de investimento, os fundos de hedge e até os bancos comerciais, através de subsidiárias fora de seus balanços regulamentares, chamadas de vetores de investimento estruturado tomaram pesadamente emprestado para investir em obrigações securitizadas de hipotecas – chegando em certos casos o montante desses empréstimos a corresponder a trinta ou quarenta vezes o respectivo capital. Esses vetores, domiciliados geralmente nas Ilhas Cayman, habilitaram os bancos a evitar maiores requisitos de aplicação de capital relativa a empréstimos dos fundos regulamentares, assim como escapar da fiscalização da Federal Reserve e de outras agências federais.
Como as taxas de juros de curto prazo cobertas pelos novos níveis determinados pela Federal Reserve eram tão baixas, os investidores, inclusive os bancos comerciais, tomaram emprestado na modalidade de papéis comerciais de curto prazo, e investiram tais fundos em hipotecas a longo prazo, adotando a mesma estratégia altamente arriscada que levara à crise das falências das instituições de poupança (savings and loan) do fim dos anos oitenta. Assinale-se que esses papéis comerciais são empréstimos que as empresas fazem entre si com saldos de seus fundos temporariamente em excesso. Assim, se as taxas do papel comercial de repente subissem, as margens de lucro nos investimentos de longo prazo – cujos níveis permanecem estáveis – desapareceriam. E foi o que aconteceu. Não ter levado em conta este desenvolvimento presumível é um claro e inequívoco exemplo da irresponsabilidade dos diretores de banco como os do Citi.
A nova estrutura de financiamento poderia ter funcionado, no entanto, se os empréstimos fossem seguros, como se julgava. Infelizmente, eles não eram. Segundo Zandi indica, mais de 1.1 trilhão de dólares (de três trilhões) correspondia ou a hipotecas subprime (indivíduos com questionável capacidade de pagamento) ou do tipo Alt-A – empréstimos feitos a pessoas sem verificação de renda.
É de sublinhar que os empréstimos subprime aconteceram depois que o mercado habitacional crescera a alturas impensáveis: se os preços das casas aumentavam desde os anos oitenta, entre 2000 e 2005 deram um pulo de 50% apesar da baixa inflação. Os principais motores para esta inchação foram a fácil disponibilidade das hipotecas e as baixas taxas de juros.
Não se trata apenas, segundo alegado por alguns corretores, de irresponsabilidade de subscritores de hipotecas, porque esses corretores e banqueiros promoveram empréstimos de condições irresistíveis. A mais importante dessas modalidades era a da taxa ajustável de hipoteca (ARM), que reduzia, provisoriamente, os pagamentos a níveis que podiam parecer dentro das possibilidades dos compradores de baixa renda. Assim, o juro inicial de uma ARM era de cerca de três por cento ou até menos. Esta taxa de juros, no entanto, seria aumentada no prazo de dois anos. Segundo pesquisas, muitos dos subscritores de tais hipotecas não estavam cientes destas condições. Nesse contexto, causa espécie a afirmação pública de Alan Greenspan de que, se os mutuários deixassem de valer-se das ARMs, eles perderiam “dezenas de milhares de dólares” nos seus pagamentos da hipoteca.
Nessa época, havia a crença dos devedores hipotecários de que os preços das casas continuariam a subir, o que habilitaria os detentores das hipotecas a refinanciá-las em um valor mais alto da hipoteca original e em condições mais vantajosas.
A Queda do Mercado Habitacional.
O mercado habitacional começou a fraquejar na primavera (boreal) de 2006. Os preços das casas principiaram a baixar e, então, passou a aumentar o quociente de inadimplência de proprietários. Em 2007, as taxas de muitas ARMs foram reajustadas para cima, acrescendo uma média de US$ 350 aos pagamentos mensais, o que dobrou as inadimplências a nível anual de 1.6 milhão no fim de 2007. Nesse ano, a medida que os preços da habitações caíam e as inadimplências subiam, as agências classificatórias começaram a rebaixar (downgrade) alguns dos haveres garantidos por hipotecas nos livros dos bancos de investimento, fundos de hedge, e as subsidiárias (ilhas Cayman). Assim, os seus valores de mercado começaram a cair. A par disso, outros pacotes de obrigações, fundados em dividas de consumidores ou aquisições de equipamento foram se tornando menos confiáveis.
Na medida em que as obrigações fundadas em dívidas hipotecárias passaram a parecer menos sólidas, os adquirentes de papéis comerciais exigiram taxas mais altas, pressionando os juros, e forçando os investidores a vender mais essas obrigações, o que empurrou para baixo ainda mais as suas cotações. Finalmente, muitos desses emprestadores de papéis comerciais se negaram a repassar os seus fundos de curto prazo para os inversores.
O que iria piorar a situação é que, quando caem os valores das obrigações securitizadas, os bancos estão obrigados a repassar o ônus do investimento para os seus livros, dentro das regras estabelecidas de contabilidade. Esse procedimento ensejaria perdas que reduziam o capital e a capacidade de fazer novos financiamentos. Entrementes, os financiadores para esses inversores costumam exigir que os investidores coloquem mais dinheiro a medida que o valor agregado do investimento diminui – de maneira a satisfazer o chamado requisito de margem. Tudo isso resultou em maiores vendas desses papéis.
Quando dois fundos de hedge no banco Bear Stearns, com grossos investimentos em obrigações baseadas em hipotecas, tiveram de desfazer-se de inversões para atender aos seus requisitos de margem em 2007, o procedimento gerou perdas tão grandes a ponto de forçar a velha empresa do Bear Stearns a arranjar a sua venda, em condições ruinosas, para o banco J.P. Morgan, em principios de 2008, em negociação conduzida pela Federal Reserve. As perdas da Bear Stearns foram os principais sinais concretos da catástrofe iminente.Outros ominosos indícios não tardaram em aparecer, com pesados prejuízos sendo divulgados por bancos comerciais e de investimento, tanto nos Estados Unidos, quanto no estrangeiro. Exemplos disso foram o Royal Bank of Scotland e a UBS, da Suiça.
O New York Times, em uma série de reportagens sob o título “A tomada de contas” (the reckoning), descreveu como a firma Merrill Lynch realizou doze grandes aquisições de empresas imobiliárias e de hipoteca, entre 2005 e 2007, de modo a tirar vantagem do boom, transferindo as hipotecas para obrigações securitizadas, que, em seguida, vendia ou nelas investia. Consonte tal procedimento, a Merrill teria lucros récorde em 2006 e outro récorde no primeiro trimestre de 2007. De acordo com o repórter, a opinião geral fora da Merrill é que os seus executivos não aquilatavam os riscos em que incorriam – ou então fingiam não saber. Assim, no verão de 2007, com as inadimplências aumentando, e o valor das obrigações hipotecárias despencando, o pó mágico não tardou a se transformar em poeira: em outubro a Merrill anunciava um prejuízo de US$2.3 bilhões, e o presidente Stanley O’Neal se viu forçado a exonerar-se, junto com outros diretores. Tal peripécia não impediu que recebesse indenização de 160 milhões de dólares. Em consequência da situação, a Merrill foi vendida para o Bank of America, em setembro de 2008, na mesma semana da falência do prestigioso banco Lehmann Brothers[1] e em que a AIG seria salva pelo governo federal.
O New York Times também se refere a operações irresponsáveis da direção do Citigroup, que triplicou as emissões de CDOs entre 2003 e 2005, sob a liderança de Charles Prince e, supostamente, o encorajamento de Rubin. Até o outono de 2007, Prince teria sido informado pelos executivos da carteira de títulos que a empresa não sofreria graves perdas. Como no caso anterior, não se prestou maior atenção aos riscos envolvidos. Menos de um ano depois, as perdas totais no Citigroup excediam 65 bilhões de dólares, o que forçou o banco a pedir ajuda do governo para continuar operando. Essa calamitosa circunstância não impediria, contudo, que Charles Prince, como no caso de Stanley O’Neal, saísse do Citigroup com uma polpuda soma, quando foi substituído em 2007.
[1] Há uma controvérsia quanto ao acerto ou não das autoridades federais americanas em não socorrer o Lehmann Brothers. Segundo muitos, tanto Ben Bernanke, o novo presidente da Federal Reserve, quanto o Secretário do Tesouro, Henry Paulson teriam parcela de responsabilidade no encaminhamento do assunto.
A recessão de 2000 e, posteriormente, os ataques terroristas contra o World Trade Center de 11 de setembro de 2001 levaram a Federal Reserve, sob a direção de Alan Greenspan a cortar paulatinamente a taxa de juros, do fim de 2000, de 6.5% para 1.0%, em 2003, a taxa mais baixa desde os anos sessenta. Para as maiores instituições o tomar emprestado ficou praticamente de graça. Tampouco haveria um aumento proporcional da fiscalização federal dos empréstimos que estavam sendo realizados, uma atribuição da Federal Reserve que Greenspan intencionalmente deixou de aplicar. E os bancos de investimento, os fundos de hedge e até os bancos comerciais, através de subsidiárias fora de seus balanços regulamentares, chamadas de vetores de investimento estruturado tomaram pesadamente emprestado para investir em obrigações securitizadas de hipotecas – chegando em certos casos o montante desses empréstimos a corresponder a trinta ou quarenta vezes o respectivo capital. Esses vetores, domiciliados geralmente nas Ilhas Cayman, habilitaram os bancos a evitar maiores requisitos de aplicação de capital relativa a empréstimos dos fundos regulamentares, assim como escapar da fiscalização da Federal Reserve e de outras agências federais.
Como as taxas de juros de curto prazo cobertas pelos novos níveis determinados pela Federal Reserve eram tão baixas, os investidores, inclusive os bancos comerciais, tomaram emprestado na modalidade de papéis comerciais de curto prazo, e investiram tais fundos em hipotecas a longo prazo, adotando a mesma estratégia altamente arriscada que levara à crise das falências das instituições de poupança (savings and loan) do fim dos anos oitenta. Assinale-se que esses papéis comerciais são empréstimos que as empresas fazem entre si com saldos de seus fundos temporariamente em excesso. Assim, se as taxas do papel comercial de repente subissem, as margens de lucro nos investimentos de longo prazo – cujos níveis permanecem estáveis – desapareceriam. E foi o que aconteceu. Não ter levado em conta este desenvolvimento presumível é um claro e inequívoco exemplo da irresponsabilidade dos diretores de banco como os do Citi.
A nova estrutura de financiamento poderia ter funcionado, no entanto, se os empréstimos fossem seguros, como se julgava. Infelizmente, eles não eram. Segundo Zandi indica, mais de 1.1 trilhão de dólares (de três trilhões) correspondia ou a hipotecas subprime (indivíduos com questionável capacidade de pagamento) ou do tipo Alt-A – empréstimos feitos a pessoas sem verificação de renda.
É de sublinhar que os empréstimos subprime aconteceram depois que o mercado habitacional crescera a alturas impensáveis: se os preços das casas aumentavam desde os anos oitenta, entre 2000 e 2005 deram um pulo de 50% apesar da baixa inflação. Os principais motores para esta inchação foram a fácil disponibilidade das hipotecas e as baixas taxas de juros.
Não se trata apenas, segundo alegado por alguns corretores, de irresponsabilidade de subscritores de hipotecas, porque esses corretores e banqueiros promoveram empréstimos de condições irresistíveis. A mais importante dessas modalidades era a da taxa ajustável de hipoteca (ARM), que reduzia, provisoriamente, os pagamentos a níveis que podiam parecer dentro das possibilidades dos compradores de baixa renda. Assim, o juro inicial de uma ARM era de cerca de três por cento ou até menos. Esta taxa de juros, no entanto, seria aumentada no prazo de dois anos. Segundo pesquisas, muitos dos subscritores de tais hipotecas não estavam cientes destas condições. Nesse contexto, causa espécie a afirmação pública de Alan Greenspan de que, se os mutuários deixassem de valer-se das ARMs, eles perderiam “dezenas de milhares de dólares” nos seus pagamentos da hipoteca.
Nessa época, havia a crença dos devedores hipotecários de que os preços das casas continuariam a subir, o que habilitaria os detentores das hipotecas a refinanciá-las em um valor mais alto da hipoteca original e em condições mais vantajosas.
A Queda do Mercado Habitacional.
O mercado habitacional começou a fraquejar na primavera (boreal) de 2006. Os preços das casas principiaram a baixar e, então, passou a aumentar o quociente de inadimplência de proprietários. Em 2007, as taxas de muitas ARMs foram reajustadas para cima, acrescendo uma média de US$ 350 aos pagamentos mensais, o que dobrou as inadimplências a nível anual de 1.6 milhão no fim de 2007. Nesse ano, a medida que os preços da habitações caíam e as inadimplências subiam, as agências classificatórias começaram a rebaixar (downgrade) alguns dos haveres garantidos por hipotecas nos livros dos bancos de investimento, fundos de hedge, e as subsidiárias (ilhas Cayman). Assim, os seus valores de mercado começaram a cair. A par disso, outros pacotes de obrigações, fundados em dividas de consumidores ou aquisições de equipamento foram se tornando menos confiáveis.
Na medida em que as obrigações fundadas em dívidas hipotecárias passaram a parecer menos sólidas, os adquirentes de papéis comerciais exigiram taxas mais altas, pressionando os juros, e forçando os investidores a vender mais essas obrigações, o que empurrou para baixo ainda mais as suas cotações. Finalmente, muitos desses emprestadores de papéis comerciais se negaram a repassar os seus fundos de curto prazo para os inversores.
O que iria piorar a situação é que, quando caem os valores das obrigações securitizadas, os bancos estão obrigados a repassar o ônus do investimento para os seus livros, dentro das regras estabelecidas de contabilidade. Esse procedimento ensejaria perdas que reduziam o capital e a capacidade de fazer novos financiamentos. Entrementes, os financiadores para esses inversores costumam exigir que os investidores coloquem mais dinheiro a medida que o valor agregado do investimento diminui – de maneira a satisfazer o chamado requisito de margem. Tudo isso resultou em maiores vendas desses papéis.
Quando dois fundos de hedge no banco Bear Stearns, com grossos investimentos em obrigações baseadas em hipotecas, tiveram de desfazer-se de inversões para atender aos seus requisitos de margem em 2007, o procedimento gerou perdas tão grandes a ponto de forçar a velha empresa do Bear Stearns a arranjar a sua venda, em condições ruinosas, para o banco J.P. Morgan, em principios de 2008, em negociação conduzida pela Federal Reserve. As perdas da Bear Stearns foram os principais sinais concretos da catástrofe iminente.Outros ominosos indícios não tardaram em aparecer, com pesados prejuízos sendo divulgados por bancos comerciais e de investimento, tanto nos Estados Unidos, quanto no estrangeiro. Exemplos disso foram o Royal Bank of Scotland e a UBS, da Suiça.
O New York Times, em uma série de reportagens sob o título “A tomada de contas” (the reckoning), descreveu como a firma Merrill Lynch realizou doze grandes aquisições de empresas imobiliárias e de hipoteca, entre 2005 e 2007, de modo a tirar vantagem do boom, transferindo as hipotecas para obrigações securitizadas, que, em seguida, vendia ou nelas investia. Consonte tal procedimento, a Merrill teria lucros récorde em 2006 e outro récorde no primeiro trimestre de 2007. De acordo com o repórter, a opinião geral fora da Merrill é que os seus executivos não aquilatavam os riscos em que incorriam – ou então fingiam não saber. Assim, no verão de 2007, com as inadimplências aumentando, e o valor das obrigações hipotecárias despencando, o pó mágico não tardou a se transformar em poeira: em outubro a Merrill anunciava um prejuízo de US$2.3 bilhões, e o presidente Stanley O’Neal se viu forçado a exonerar-se, junto com outros diretores. Tal peripécia não impediu que recebesse indenização de 160 milhões de dólares. Em consequência da situação, a Merrill foi vendida para o Bank of America, em setembro de 2008, na mesma semana da falência do prestigioso banco Lehmann Brothers[1] e em que a AIG seria salva pelo governo federal.
O New York Times também se refere a operações irresponsáveis da direção do Citigroup, que triplicou as emissões de CDOs entre 2003 e 2005, sob a liderança de Charles Prince e, supostamente, o encorajamento de Rubin. Até o outono de 2007, Prince teria sido informado pelos executivos da carteira de títulos que a empresa não sofreria graves perdas. Como no caso anterior, não se prestou maior atenção aos riscos envolvidos. Menos de um ano depois, as perdas totais no Citigroup excediam 65 bilhões de dólares, o que forçou o banco a pedir ajuda do governo para continuar operando. Essa calamitosa circunstância não impediria, contudo, que Charles Prince, como no caso de Stanley O’Neal, saísse do Citigroup com uma polpuda soma, quando foi substituído em 2007.
[1] Há uma controvérsia quanto ao acerto ou não das autoridades federais americanas em não socorrer o Lehmann Brothers. Segundo muitos, tanto Ben Bernanke, o novo presidente da Federal Reserve, quanto o Secretário do Tesouro, Henry Paulson teriam parcela de responsabilidade no encaminhamento do assunto.
quarta-feira, 11 de março de 2009
A Crise Financeira Americana
Ao ler o artigo de Jeff Madrick, em The New York Review of Books, datado de doze de fevereiro último – em que resenha os livros “O Derretimento de um Trilhão de Dólares”, de Charles R. Morris, e “Choque Financeiro: Visão de 360 graus da Implosão das Hipotecas subprime”, de Mark Zandi, além de série de artigos de Gretchen Morgenson et al., publicados no New York Times, de 28 de setembro a 28 de dezembro de 2008 – logo me capacitei da necessidade de resumi-lo. Será um esforço de documentação que me parece indispensável para que se tenha melhor compreensão das causas e do mecanismo da crise financeira americana, e de como ela contagiaria a economia européia e mundial.
Responsáveis pela Crise. Algumas personalidades proeminentes dos mercados financeiros têm insistido em que o oportunismo de operadores financeiros não causou a atual crise financeira. Assim, no entendimento de Robert Rubin, ex-Secretário do Tesouro e ex-diretor do grupo Citibank, a quase falência do Citi se deve ao “encadeamento” (buckling) do sistema financeiro e não a erros cometidos pelo banco. De acordo com Harvey Golub, antigo presidente da American Express, a culpa se acha sobretudo com o Governo americano, que desde os anos noventa vem promovendo o recurso às hipotecas para americanos de baixa renda. Essa política, na argumentação de Golub, conduziu para a vertigem insustentável das hipotecas subprime dos anos 2000.
O livro de Charles Morris rebate todas essas desculpas e tentativas de passar a responsabilidade para “o governo”. Morris demonstra que foi a sede de lucros fáceis que levou bancos comerciais e de investimento tanto nos Estados Unidos quanto na Europa e na Ásia – assim como fundos de ‘hedge’, companhias de seguro, companhias privadas e outras instituições financeiras - a assumirem riscos despropositados para amealhar os seus próprios ganhos imediatos e no futuro, desse modo colocando em perigo o sistema nacional de crédito e agora a própria economia americana.
Segundo o articulista, no entanto, seria errado concluir que não teriam valor os novos vetores de investimento e as intricadas estratégias de “securitização”, desenvolvidos nos últimos trinta anos. Assim, a partir do fim dos anos setenta, a prática de juntar (package) hipotecas e de colocá-las no mercado como supostas “obrigações colaterizadas de dívida” (a chamada securitização das hipotecas) tinha o escopo alegadamente sensato de dividir o risco existente nos empréstimos. Isto se aplicaria especialmente às hipotecas residenciais, vendidas para muitos investidores nos Estados Unidos e, mais tarde, no mundo. A fórmula disso estaria em que, se muitas partes partilhassem o risco, o custo do financiamento seria diminuído, o que ensejaria a que mais pessoas adquirissem casas, e também empresas investissem mais em pesquisa, fábricas e equipamento.
Contudo, nos últimos vinte anos este sistema inovador foi explorado de forma excessiva. Ao contrário da assertiva de Rubin de quem ninguém previu a atual crise, Morris antecipou que o crescente acúmulo da chamada securitização das hipotecas tornara perigosamente vulnerável o sistema financeiro. Com efeito, o próprio Charles Morris terá subestimado o custo do derretimento (meltdown) financeiro através do mundo. As estimativas de perda pelas instituições financeiras agora estão entre um trilhão e dois trilhões de dólares.
Colapso do Mercado habitacional. Tanto Morris quanto Zandi começam pelo colapso do mercado da habitação para o desencadeamento da crise (unwinding) dos mercados. No entanto, no entender de Madrick, é relevante acompanhar nas últimas décadas o desenvolvimento e rápida difusão em Wall Street da técnica de investimento de fazer pacotes (packaging) de empréstimos, principalmente hipotecas feitas por bancos e associações de poupança (savings and loan), transformados em vetores de investimento, nos quais fundos de pensão, gerentes financeiros, fundos de hedge, e outras empresas podiam investir. A securitização das hipotecas residenciais tinha especial atração, diante do tamanho do mercado de hipotecas nos Estados Unidos, que se eleva a trilhões de dólares.
Esta prática se fundava em um precedente importante, v.g., o papel das instituições Fannie Mae e mais tarde também Fred Mac, que, patrocinadas pelo governo americano, adquiriam de bancos e associações de poupança muitas hipotecas contratadas, de forma a liberá-los para negociar outras hipotecas, ampliando assim o número de propriedades residenciais disponíveis para os cidadãos americanos. Nos Estados Unidos, não há transação que seja mais favorecida pelo imposto de renda – inclusive com a dedutibilidade dos juros das hipotecas – do que a compra de uma residência.
No fim dos anos setenta, os bancos de investimento – Salomon Brothers em especial – descobriram um novo lucrativo ramo de negócio nas obrigações com base nas hipotecas. Começaram a lançar pacotes delas como se fossem títulos convencionais, com a ressalva de que pagavam juros mais altos. Em 1983, um banqueiro inovador, Larry Fink, faria pacotes de hipotecas, distribuídas em diversas tranches de risco, com as respectivas taxas de juro. Esta inovação atraíu a muitos clientes – fundos de pensão, importantes instituições financeiras – a investirem nas obrigações hipotecárias (mortgage backed). A consequência seria que o mercado privado desse tipo de obrigações excederia de muito o governamental.
A primeira tranche – cerca de sessenta por cento de todos os investidores neste mercado de obrigações hipotecárias – seria paga com os juros e o principal dos fluxos mensais de dinheiro dos detentores das hipotecas. Por ser o investimento mais bem protegido, os inversores receberiam a mais baixa taxa de juros. As demais tranches subordinadas seriam pagas depois do pagamento desta primeira tranche. Por causa do risco maior de não-pagamento, elas receberiam uma taxa de juros mais alta. As tranches mais baixas apresentavam os riscos mais altos – o chamado lixo tóxico – porque seria as últimas a serem pagas, e, portanto, as primeiras a perderem dinheiro se os pagamentos não fossem honrados (default). Inversores nesta última tranche receberiam dois ou três pontos percentuais a mais de juro para encorajá-los a tomar o risco. O chamado “lixo tóxico” tendia a ser adquirido por fundos de hedge, eis que esses agressivos vetores de investimento incorriam em riscos mais elevados para auferir lucros mais altos para seus inversores.
Para os bancos e os corretores de hipoteca que subscreviam os emprestimentos hipotecários, a vantagem financeira era significativa. Podiam agora vender as hipotecas que haviam subscrito quase de imediato para os packagers, mormente para bancos de investimento, auferindo um lucro rápido – de 0.5 a um por cento do valor da hipoteca. Por falta de regulamentação nesse aspecto, os bancos não tinham que respeitar requisitos mínimos de capital nesses empréstimos, e ficavam assim habilitados a fazerem novos empréstimos e, em seguida repetir o processo acima, com a vendas das hipotecas securitizadas, para colher outros prêmios pela operação.
Os compradores de residência também lucravam com a securitização. Em função da demanda de todos esses vetores financeiros as hipotecas eram concedidas facilmente, com juros baixos para atrair maior números de interessados. Assim, se deve sobretudo ao apetite dos inversores por obrigações hipotecárias e aos lucros fáceis feitos pelos bancos e corretores hipotecários que desembocou na frenética subscrição de hipotecas nos anos 2000, e não incentivos do governo federal para emprestar a compradores de baixa renda.
A inventiva dos operadores não se limitou à securitização das hipotecas. Nos anos noventa, os banqueiros comerciais e de investimento expandiram o mercado para novas formas de seguro, chamados de swaps de não-cumprimento de crédito (credit default swaps), que supostamente garantiriam titulares de obrigações hipotecárias no caso de default. Tratam-se de transações complexas que envolvem derivativos (opções ou contratos futuros baseados em ações tradicionais, títulos, etc. ). Esta proteção do seguro estimulou os inversores a serem ainda mais audaciosos, inclusive fundos de hedge, bancos comerciais e de investimento, nos seus negócios com as obrigações hipotecárias. Agora, que muitas dessas hipotecas estão inadimplentes, é uma questão em aberto se tais títulos securitizados serão efetivamente cobertos. A AIG, a grande empresa de seguros, que foi salva pelo Governo em setembro último, endossou muitos desses títulos, e pode não estar em condições de arcar com tais compromissos.
No final dos noventa, o sistema americano de crédito mudara radicalmente. Havia um grande número de empréstimos não a cargo de bancos comerciais ou instituições de poupança, que estão regulamentadas pelo Governo federal, mas por um sistema bancário na sombra – que crescia velozmente – de fundos de hedge, e de outros inversores não-regulamentados em New York, Londres e pelo mundo afora. Este sistema bancário informal concedia empréstimos, mas ao invés dos bancos comerciais, que tem de cumprir requisitos de reservas e de capital, legalmente impostos por suas atividades regulamentares – e estão igualmente sujeitos ao controle da Federal Reserve - a sua capacidade de tomar emprestado não sofria restrições. Assim, nos noventa os operadores em títulos securitizados, amiúde bancos de investimento, e até bancos comerciais estavam fazendo pacotes não só de hipotecas residenciais, mas também de empréstimos de equipamento, hipotecas comerciais, divida de cartão de crédito, e mesmo empréstimos de estudantes – denominados como dívidas e obrigações colaterizadas (CDOs) – e o setor bancário informal (shadow) os estava adquirindo. Segundo Morris, 80% de todos os empréstimos em 2006 ocorria em setores não-regulamentados da economia, comparado com 25% em meados dos anos oitenta.
As hipotecas viajavam uma tal distância da instituição para o investidor, que não havia mais contato pessoal com o real detentor da hipoteca. Assim, a possibilidade de inadimplência não era mais calculada por alguém em contato direto com devedor hipotecário, mas por complicados modelos estatísticos gerados por computadores de um inteiro campo (portfolio) de hipotecas. Como todos esses modelos, a despeito de sua sofisticação, eles implicam em estimativa do futuro baseada no passado. Ora, esta estimativa era inerentemente incapaz de levar em conta as consequências de um historicamente raro – e, portanto, aparentemente improvável – crash nos preços das moradias.
Além disso, as agências classificatórias (rating agencies) usavam estes mesmos modelos para outorgar classificações para as obrigações hipotecárias securitizadas, vendidas para os investidores. As agências classificatórias eram pagas pelos bancos comerciais e de investimento. Esses bancos vendiam os pacotes de hipotecas de acordo com a sua classificação, e dessarte, quanto mais alta fosse a classificação, mais altos seriam os lucros por eles auferidos.
Essas agências agora têm muito o que responder.
( Continuação a seguir)
Responsáveis pela Crise. Algumas personalidades proeminentes dos mercados financeiros têm insistido em que o oportunismo de operadores financeiros não causou a atual crise financeira. Assim, no entendimento de Robert Rubin, ex-Secretário do Tesouro e ex-diretor do grupo Citibank, a quase falência do Citi se deve ao “encadeamento” (buckling) do sistema financeiro e não a erros cometidos pelo banco. De acordo com Harvey Golub, antigo presidente da American Express, a culpa se acha sobretudo com o Governo americano, que desde os anos noventa vem promovendo o recurso às hipotecas para americanos de baixa renda. Essa política, na argumentação de Golub, conduziu para a vertigem insustentável das hipotecas subprime dos anos 2000.
O livro de Charles Morris rebate todas essas desculpas e tentativas de passar a responsabilidade para “o governo”. Morris demonstra que foi a sede de lucros fáceis que levou bancos comerciais e de investimento tanto nos Estados Unidos quanto na Europa e na Ásia – assim como fundos de ‘hedge’, companhias de seguro, companhias privadas e outras instituições financeiras - a assumirem riscos despropositados para amealhar os seus próprios ganhos imediatos e no futuro, desse modo colocando em perigo o sistema nacional de crédito e agora a própria economia americana.
Segundo o articulista, no entanto, seria errado concluir que não teriam valor os novos vetores de investimento e as intricadas estratégias de “securitização”, desenvolvidos nos últimos trinta anos. Assim, a partir do fim dos anos setenta, a prática de juntar (package) hipotecas e de colocá-las no mercado como supostas “obrigações colaterizadas de dívida” (a chamada securitização das hipotecas) tinha o escopo alegadamente sensato de dividir o risco existente nos empréstimos. Isto se aplicaria especialmente às hipotecas residenciais, vendidas para muitos investidores nos Estados Unidos e, mais tarde, no mundo. A fórmula disso estaria em que, se muitas partes partilhassem o risco, o custo do financiamento seria diminuído, o que ensejaria a que mais pessoas adquirissem casas, e também empresas investissem mais em pesquisa, fábricas e equipamento.
Contudo, nos últimos vinte anos este sistema inovador foi explorado de forma excessiva. Ao contrário da assertiva de Rubin de quem ninguém previu a atual crise, Morris antecipou que o crescente acúmulo da chamada securitização das hipotecas tornara perigosamente vulnerável o sistema financeiro. Com efeito, o próprio Charles Morris terá subestimado o custo do derretimento (meltdown) financeiro através do mundo. As estimativas de perda pelas instituições financeiras agora estão entre um trilhão e dois trilhões de dólares.
Colapso do Mercado habitacional. Tanto Morris quanto Zandi começam pelo colapso do mercado da habitação para o desencadeamento da crise (unwinding) dos mercados. No entanto, no entender de Madrick, é relevante acompanhar nas últimas décadas o desenvolvimento e rápida difusão em Wall Street da técnica de investimento de fazer pacotes (packaging) de empréstimos, principalmente hipotecas feitas por bancos e associações de poupança (savings and loan), transformados em vetores de investimento, nos quais fundos de pensão, gerentes financeiros, fundos de hedge, e outras empresas podiam investir. A securitização das hipotecas residenciais tinha especial atração, diante do tamanho do mercado de hipotecas nos Estados Unidos, que se eleva a trilhões de dólares.
Esta prática se fundava em um precedente importante, v.g., o papel das instituições Fannie Mae e mais tarde também Fred Mac, que, patrocinadas pelo governo americano, adquiriam de bancos e associações de poupança muitas hipotecas contratadas, de forma a liberá-los para negociar outras hipotecas, ampliando assim o número de propriedades residenciais disponíveis para os cidadãos americanos. Nos Estados Unidos, não há transação que seja mais favorecida pelo imposto de renda – inclusive com a dedutibilidade dos juros das hipotecas – do que a compra de uma residência.
No fim dos anos setenta, os bancos de investimento – Salomon Brothers em especial – descobriram um novo lucrativo ramo de negócio nas obrigações com base nas hipotecas. Começaram a lançar pacotes delas como se fossem títulos convencionais, com a ressalva de que pagavam juros mais altos. Em 1983, um banqueiro inovador, Larry Fink, faria pacotes de hipotecas, distribuídas em diversas tranches de risco, com as respectivas taxas de juro. Esta inovação atraíu a muitos clientes – fundos de pensão, importantes instituições financeiras – a investirem nas obrigações hipotecárias (mortgage backed). A consequência seria que o mercado privado desse tipo de obrigações excederia de muito o governamental.
A primeira tranche – cerca de sessenta por cento de todos os investidores neste mercado de obrigações hipotecárias – seria paga com os juros e o principal dos fluxos mensais de dinheiro dos detentores das hipotecas. Por ser o investimento mais bem protegido, os inversores receberiam a mais baixa taxa de juros. As demais tranches subordinadas seriam pagas depois do pagamento desta primeira tranche. Por causa do risco maior de não-pagamento, elas receberiam uma taxa de juros mais alta. As tranches mais baixas apresentavam os riscos mais altos – o chamado lixo tóxico – porque seria as últimas a serem pagas, e, portanto, as primeiras a perderem dinheiro se os pagamentos não fossem honrados (default). Inversores nesta última tranche receberiam dois ou três pontos percentuais a mais de juro para encorajá-los a tomar o risco. O chamado “lixo tóxico” tendia a ser adquirido por fundos de hedge, eis que esses agressivos vetores de investimento incorriam em riscos mais elevados para auferir lucros mais altos para seus inversores.
Para os bancos e os corretores de hipoteca que subscreviam os emprestimentos hipotecários, a vantagem financeira era significativa. Podiam agora vender as hipotecas que haviam subscrito quase de imediato para os packagers, mormente para bancos de investimento, auferindo um lucro rápido – de 0.5 a um por cento do valor da hipoteca. Por falta de regulamentação nesse aspecto, os bancos não tinham que respeitar requisitos mínimos de capital nesses empréstimos, e ficavam assim habilitados a fazerem novos empréstimos e, em seguida repetir o processo acima, com a vendas das hipotecas securitizadas, para colher outros prêmios pela operação.
Os compradores de residência também lucravam com a securitização. Em função da demanda de todos esses vetores financeiros as hipotecas eram concedidas facilmente, com juros baixos para atrair maior números de interessados. Assim, se deve sobretudo ao apetite dos inversores por obrigações hipotecárias e aos lucros fáceis feitos pelos bancos e corretores hipotecários que desembocou na frenética subscrição de hipotecas nos anos 2000, e não incentivos do governo federal para emprestar a compradores de baixa renda.
A inventiva dos operadores não se limitou à securitização das hipotecas. Nos anos noventa, os banqueiros comerciais e de investimento expandiram o mercado para novas formas de seguro, chamados de swaps de não-cumprimento de crédito (credit default swaps), que supostamente garantiriam titulares de obrigações hipotecárias no caso de default. Tratam-se de transações complexas que envolvem derivativos (opções ou contratos futuros baseados em ações tradicionais, títulos, etc. ). Esta proteção do seguro estimulou os inversores a serem ainda mais audaciosos, inclusive fundos de hedge, bancos comerciais e de investimento, nos seus negócios com as obrigações hipotecárias. Agora, que muitas dessas hipotecas estão inadimplentes, é uma questão em aberto se tais títulos securitizados serão efetivamente cobertos. A AIG, a grande empresa de seguros, que foi salva pelo Governo em setembro último, endossou muitos desses títulos, e pode não estar em condições de arcar com tais compromissos.
No final dos noventa, o sistema americano de crédito mudara radicalmente. Havia um grande número de empréstimos não a cargo de bancos comerciais ou instituições de poupança, que estão regulamentadas pelo Governo federal, mas por um sistema bancário na sombra – que crescia velozmente – de fundos de hedge, e de outros inversores não-regulamentados em New York, Londres e pelo mundo afora. Este sistema bancário informal concedia empréstimos, mas ao invés dos bancos comerciais, que tem de cumprir requisitos de reservas e de capital, legalmente impostos por suas atividades regulamentares – e estão igualmente sujeitos ao controle da Federal Reserve - a sua capacidade de tomar emprestado não sofria restrições. Assim, nos noventa os operadores em títulos securitizados, amiúde bancos de investimento, e até bancos comerciais estavam fazendo pacotes não só de hipotecas residenciais, mas também de empréstimos de equipamento, hipotecas comerciais, divida de cartão de crédito, e mesmo empréstimos de estudantes – denominados como dívidas e obrigações colaterizadas (CDOs) – e o setor bancário informal (shadow) os estava adquirindo. Segundo Morris, 80% de todos os empréstimos em 2006 ocorria em setores não-regulamentados da economia, comparado com 25% em meados dos anos oitenta.
As hipotecas viajavam uma tal distância da instituição para o investidor, que não havia mais contato pessoal com o real detentor da hipoteca. Assim, a possibilidade de inadimplência não era mais calculada por alguém em contato direto com devedor hipotecário, mas por complicados modelos estatísticos gerados por computadores de um inteiro campo (portfolio) de hipotecas. Como todos esses modelos, a despeito de sua sofisticação, eles implicam em estimativa do futuro baseada no passado. Ora, esta estimativa era inerentemente incapaz de levar em conta as consequências de um historicamente raro – e, portanto, aparentemente improvável – crash nos preços das moradias.
Além disso, as agências classificatórias (rating agencies) usavam estes mesmos modelos para outorgar classificações para as obrigações hipotecárias securitizadas, vendidas para os investidores. As agências classificatórias eram pagas pelos bancos comerciais e de investimento. Esses bancos vendiam os pacotes de hipotecas de acordo com a sua classificação, e dessarte, quanto mais alta fosse a classificação, mais altos seriam os lucros por eles auferidos.
Essas agências agora têm muito o que responder.
( Continuação a seguir)
sábado, 7 de março de 2009
Dom José Cardoso Sobrinho, Arcebispo de Olinda e Recife
A imprensa comenta as recentes medidas do Arcebispo de Olinda, D. José Sobrinho. Há geral condenação, diante da insensibilidade do prelado e do seu claro descompasso com a realidade. E, no entanto, nada que D. Sobrinho faça pode surpreender-me pelo triste histórico de sua presença à testa da Sé de Olinda.
Ao nomeá-lo para suceder a D. Helder Câmara em 1985, o Papa João Paulo II mostrou a sua predileção pela orientação dita conservadora. D. José Sobrinho se assinalaria pela triste obra de destruição de todo o legado de D. Helder. Uma sólida mediocridade, D. Sobrinho só poderia distinguir-se através do negativismo, o que infelizmente comprovou, ao desfazer tudo o que o grande D. Helder havia construído na arquidioce de Olinda e Recife.
Agora no apagar das luzes do seu ministério – havendo completado setenta e cinco anos, a idade canônica para o seu afastamento, seria de estranhar-se a demora do Papa Bento XVI em acolher o seu pedido de renúncia – D. José Sobrinho mostra mais uma vez ao que veio. Espanta decerto esta predileção dos Papas recentes por bispos tão perniciosos para a Igreja Católica.
D. Helder suportou em silêncio, com o arrimo da fé, toda a estúpida provação que teve de acatar, em respeito ao princípio da obediência devida ao novo titular. Obviamente, D. Sobrinho não tinha condições de destruir o que D. Helder já fizera, mas cuidou de inviabilizar a continuação de sua obra. Com o seu estulto fanatismo, ele afastou da Igreja não só os colaboradores diretos de D. Helder, mas também um grande número de fiéis que se refugiaram em outras confissões. Como refere Merval Pereira, em sua coluna de hoje, “foram fechados o Instituto de Teologia de Recife e o Seminário Regional Nordeste II, fundados por D. Helder. (...) Todos os antigos colaboradores de D. Helder foram retirados ou se retiraram de suas funções”.
A relação dos desmandos de D. José Sobrinho se me afigura uma experiência penosa, e por isso tratarei de resumi-la no que ela realmente é, a expressão da intolerância mesquinha e, por que não dizer, burra.
Nomeando essa agressiva mediocridade para substituir a D. Helder, um gigante cujo centenário de nascimento ora se celebra, o Papa João Paulo II prestou, sem dar-se conta, uma homenagem ao antigo bispo-auxiliar do Rio de Janeiro, ao mostrar ao mundo quão grande era o arcebispo a que ele sempre se negara em criar cardeal. D. Helder, na verdade, prescindia de tais homenagens, ele que já transcendera por sua mensagem e obra os estreitos confins a que a Igreja Católica pós-joanina se viu limitada.
Por isso, as barbaridades ora cometidas por D. José Cardoso Sobrinho não me espantam. Não só desconhecer a motivação da equipe médica, que excomunhou, mas declarar a fortiori que o estupro é um delito menos grave do que o aborto, para parafrasear um dito famoso, não é só um crime, mas também e sobretudo um erro.
Seria de esperar que a Santa Sé agisse com presteza, e nos desobrigasse de suportar a insensatez e a nefasta pequenez de D. Sobrinho. Dados os precedentes, todavia, com os recentes constrangedores equívocos de Bento XVI na nomeação de bispos, que teve de revogar, é forçoso dizer que um excessivo otimismo não é aconselhável.
Ao nomeá-lo para suceder a D. Helder Câmara em 1985, o Papa João Paulo II mostrou a sua predileção pela orientação dita conservadora. D. José Sobrinho se assinalaria pela triste obra de destruição de todo o legado de D. Helder. Uma sólida mediocridade, D. Sobrinho só poderia distinguir-se através do negativismo, o que infelizmente comprovou, ao desfazer tudo o que o grande D. Helder havia construído na arquidioce de Olinda e Recife.
Agora no apagar das luzes do seu ministério – havendo completado setenta e cinco anos, a idade canônica para o seu afastamento, seria de estranhar-se a demora do Papa Bento XVI em acolher o seu pedido de renúncia – D. José Sobrinho mostra mais uma vez ao que veio. Espanta decerto esta predileção dos Papas recentes por bispos tão perniciosos para a Igreja Católica.
D. Helder suportou em silêncio, com o arrimo da fé, toda a estúpida provação que teve de acatar, em respeito ao princípio da obediência devida ao novo titular. Obviamente, D. Sobrinho não tinha condições de destruir o que D. Helder já fizera, mas cuidou de inviabilizar a continuação de sua obra. Com o seu estulto fanatismo, ele afastou da Igreja não só os colaboradores diretos de D. Helder, mas também um grande número de fiéis que se refugiaram em outras confissões. Como refere Merval Pereira, em sua coluna de hoje, “foram fechados o Instituto de Teologia de Recife e o Seminário Regional Nordeste II, fundados por D. Helder. (...) Todos os antigos colaboradores de D. Helder foram retirados ou se retiraram de suas funções”.
A relação dos desmandos de D. José Sobrinho se me afigura uma experiência penosa, e por isso tratarei de resumi-la no que ela realmente é, a expressão da intolerância mesquinha e, por que não dizer, burra.
Nomeando essa agressiva mediocridade para substituir a D. Helder, um gigante cujo centenário de nascimento ora se celebra, o Papa João Paulo II prestou, sem dar-se conta, uma homenagem ao antigo bispo-auxiliar do Rio de Janeiro, ao mostrar ao mundo quão grande era o arcebispo a que ele sempre se negara em criar cardeal. D. Helder, na verdade, prescindia de tais homenagens, ele que já transcendera por sua mensagem e obra os estreitos confins a que a Igreja Católica pós-joanina se viu limitada.
Por isso, as barbaridades ora cometidas por D. José Cardoso Sobrinho não me espantam. Não só desconhecer a motivação da equipe médica, que excomunhou, mas declarar a fortiori que o estupro é um delito menos grave do que o aborto, para parafrasear um dito famoso, não é só um crime, mas também e sobretudo um erro.
Seria de esperar que a Santa Sé agisse com presteza, e nos desobrigasse de suportar a insensatez e a nefasta pequenez de D. Sobrinho. Dados os precedentes, todavia, com os recentes constrangedores equívocos de Bento XVI na nomeação de bispos, que teve de revogar, é forçoso dizer que um excessivo otimismo não é aconselhável.
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