domingo, 29 de abril de 2012

Reforma da Saúde. Constitucionalidade do Mandato

                           
            
     É sempre um prazer ler os artigos escritos por Ronald Dworkin. Vendo os presidentes republicanos a indicar para a Corte Suprema mediocridades conservadoras, um leitor enfronhado em assuntos jurídicos e, em especial, na composição da Corte Suprema estadunidense, há de perguntar-se se não haveria possibilidade de incluir entre os nove juízes personalidade que mostrasse notável saber, conhecimento aprofundado da evolução jurisprudencial na Corte, e real compreensão do momento presente na sociedade americana. 
       A relevância do papel da Corte como guardiã da Constituição e como o fiel da balança se reflete na atenção a ela dispensada.   Por difusa informação constitui um termômetro para que se julgue a capacidade de um candidato para pleitear a Casa Branca. Sarah Palin, a governadora do Alaska, de forma inesperada,foi apontada pelo candidato Senador John McCain como  companheira de chapa.
      Se o seu discurso na Convenção representou um instantâneo sucesso junto ao público conservador, a quem agradou sobremaneira o seu enfoque radical, pode-se afirmar que a sua inexorável descida em termos de prestígio político iniciou-se com a demonstrada incapacidade de enumerar, dentre as grandes sentenças da Suprema Corte, apenas uma, Roe v. Wade (1973), fundada no direito à privacidade da mulher assegurada pela 14ª Emenda, que permite o aborto, atendidos os direitos à proteção da vida pré-natal  e à saúde da mulher. Se Sarah Palin não logrou designar outra sentença marco do Supremo, tal implicou em comprometedor reconhecimento de séria limitação em suas aptitudes para assumir a presidência.
      No passado, presidentes republicanos podiam contribuir com grandes nomes para o Supremo, como, por exemplo, Earl Warren, indicado por Dwight Eisenhower para Juiz Presidente (Chief Justice). Sob  sua liderança,  seguiu-se  um período brilhante do direito americano, com sentenças notáveis, como, v.g., Brown v. Junta de Educação (1954), que dessegregou o ensino, e Miranda v. Arizona (1966), no campo da defesa dos direitos dos acusados. O próprio Presidente Richard Nixon, a despeito de Watergate, indicou em 1969 Warren Burger como Chief Justice, quando a Corte formulou outra sentença de grande importância como continua a ser Roe v. Wade (1973), já referida acima.
      Esse caráter de excelência, contudo, ficaria em segundo plano nas duas designações subsequentes, as de William Rehnquist (1986) e John G. Roberts Jr.  (2005), indicados, respectivamente, por Ronald Reagan e George W. Bush. Nos dois casos, a orientação conservadora do juiz constitui a razão preponderante, com as esperáveis consequências, traduzidas por sentenças que marcam retrocesso na contribuição da Corte em termos de normativa constitucional.
      Já me referi no blog de dezesseis de abril corrente à pesada ameaça que  paira sobre a mais assinalada iniciativa da Administração Barack Obama, que é a Lei da Assistência Sanitária Custeável (Affordable Healthcare Act). Há consenso entre os observadores que a derrubada desta lei, seja pela sua principal disposição – o mandato individual -, seja na totalidade do instrumento, implicaria em um golpe não só quanto à obra de seu primeiro mandato, senão o enfraquecimento de suas possibilidades de reeleição. Não há dúvida de que isto possa  ocorrer pelo voto dos quatro juízes conservadores, somado àquele do juiz-associado Anthony Kennedy, que assume em geral o swing vote (voto determinante) da Corte. Daí o interesse de Ronald Dworkin de tentar convencer através de brilhante argumentação o juiz Kennedy da falta de motivação jurídica para emitir tal veredito.
       Tentarei a seguir sumarizar o pensamento desse gigante da ciência jurídica, conforme seu artigo  que acaba de ser publicado por The New York Review ‘Porque o mandato é constitucional: o Argumento Real’.[1]   
       O desafio constitucional se dirige contra a determinação central da Lei.  Dentre outros benefícios a norma legal concede seguro de saúde para 16% da população que dele atualmente não dispõe. Proíbe, outrossim, as asseguradoras de negarem cobertura ou cobrarem prêmios mais elevados para aqueles que tenham doenças preexistentes ou apresentem eventuais riscos. Tais benefícios, no entanto, não poderiam ser disponibilizados, se todos os cidadãos – os jovens e saudáveis, assim como os idosos e os já enfermos – não participassem do seguro.  A razão é simple: se o seguro fosse circunscrito apenas àqueles que dele necessitam, as companhias de seguros teriam de cobrar prêmios astronômicos, que a maior parte daqueles que carecessem do serviço não teriam condição de pagar.
      A premissa básica de todos os planos de seguro social é a de que os inevitáveis riscos sejam partilhados por uma comunidade política entre aqueles com mais ou menos riscos. A Lei de Assistência Sanitária segue tal princípio: com poucas exceções, os americanos que não sejam assegurados por seus empregadores ou por outros programas governamentais devem adquirir o seguro ou, se não o fazem, pagar o que a lei denomina uma ‘penalidade’ com a sua declaração de imposto, correspondente a US$ 695 ou 2,5% de sua renda. Não está prevista nenhuma outra sanção pela omissão da compra da apólice.
      Este é o chamado ‘mandato’ que as partes contrárias à Lei – 26 estados, um grupo de negócios e alguns cidadãos – contestam como inconstitucional. Elas dizem que embora a Constituição atribua ao Congresso o poder de limitar ou proibir atividade comercial que tenha impacto significativo na economia nacional, a própria Constituição denega ao Congresso o poder de requisitar uma atividade comercial, como v.g. assistência sanitária,  mesmo se esta atividade seja crucial para a economia nacional.
     A distinção entre regulamento positivo e negativo – entre ditar os termos do seguro e requerer que as pessoas comprem o seguro – está no cerne da contestação constitucional da lei.
    Na verdade, a teoria política que subjaz à distribuição de poder entre o Congresso e os Estados não carece da distinção entre restringir e requisitar atividades. Os formuladores da Constituição americana foram guiados por um princípio que torna irrelevante esta distinção: é o princípio do subsidiário, no sentido de que o Congresso federal só se deve ocupar de poderes que não possam ser atribuídos aos Estados. Dessarte, a Constituição determina que a Corte limite o poder do Congresso à legislação que deva ser nacional para ser eficaz.
      Não se trata, portanto, de que o Congresso proíba ou requisite uma atividade econômica, desde que a regra congressual trate de um problema nacional.
       Os detratores da Lei de Assistência Sanitária procuram pôr no mesmo nível mandar comprar brócolis ou um carro elétrico, e o referido mandato. Nesses termos, requerer que os cidadãos comprem um determinado produto de companhias particulares pode ser considerado privá-los do procedimento legal que lhes é assegurado pela Constituição. Mas também proibi-los de adquirir um produto pode ser interpretado como limitação de sua liberdade, o que é amiúde realizado pela FDA, a agência estatal criada para velar sobre alimentos e remédios. Como se verifica, portanto, o respeito pela liberdade do consumidor não exige nem justifica uma distinção absoluta entre proibição e requisição.
        A ‘dúvida’ dos juízes conservadores quanto ao caráter do mandato legal recebeu do Solicitador-Mor do Governo, Donald B.Verrilli várias respostas quanto à distinção entre assistência sanitária e carros elétricos ou brócolis. Primo, ninguém precisa comprar carros ou brócolis, mas quase todo mundo, no fim de contas, carece de ter assistência sanitária.
       O segundo argumento é ainda mais forte. Todo americano já tem assistência sanitária, em um certo sentido. O mandato requer apenas que ele pague pelo seguro, ao invés de pedir carona àqueles que pagam. Um estatuto federal e diversos estatutos estaduais determinam que os hospitais forneçam atendimento médico de urgência para aqueles que não podem pagá-lo. Assim, na hora extrema hão de procurar o melhor atendimento possível. O Congresso verificou que em 2008 o custo de pacientes não-assegurados montou a 43 bilhões de dólares. Esses dispêndios foram pagos através de prêmios mais altos, cobrados dos adquirentes das apólices de seguro de saúde. Verifica-se, desse modo, que o Congresso deve ter o poder de fazer as pessoas pagarem pelo que atualmente é coberto pela decência e necessidade humana. Como é impossível prever os custo de acidentes e enfermidades, a saída é requerer a aquisição do seguro por antecipação, ou pagar uma taxa para atender as despesas supervenientes.
      Como demonstra Ronald Dworkin, estas são respostas bastantes para o único argumento conservador. Elas distinguem entre seguro de assistência médica, de um lado, e brócolis e carros elétricos, de outro e, por isso, ensejam um princípio de limitação do tipo exigido pelos juízes conservadores.
      Há, no entanto, uma objeção mais profunda e abrangente à argumentação desses juízes. O princípio de limitação não é necessário nem desejável. O raciocínio conservador mistura duas questões que devem ser mantidas distintas. Em primeiro lugar, que poder tem qualquer legislatura americana para obrigar alguém a adquirir algo que não se deseja ? Em segundo lugar, se este poder de coerção existe, como esse poder será distribuído entre os estado e o Legislativo nacional ?
     Uma vez que se distinga entre essas questões, veremos que a distinção  entre ditar os termos do seguro e fazer com que a gente adquira o seguro não tem nenhum sentido.
     A força retórica de seus exemplos – obrigar a gente a comprar brócolis – se baseia em premissa popular mas confusa : que seria tirânico o governo obrigar os cidadãos a adquirir algo que eles não querem. Na verdade, as administrações federal e estadual coagem o povo a fazer isso pela tributação: são obrigados a custearem a proteção policial e contra incêndios, assim como por guerras estrangeiras, quer queiram,quer não. Não há nenhuma razão em limitar o governo quanto a obrigar os cidadãos a pagar diretamente, através do seguro, ou indiretamente pelo mecanismo da taxação. É o que faz o estado de Massachusetts, obrigando a população a comprar a assistência sanitária. O mandato está no âmago do aparentemente bem-sucedido sistema de assistência sanitária. E quase ninguém sugere que o mandato de Massachusetts – em que se baseia a Lei Federal – seria inconstitucional.
     A argumentação do jurista Ronald Dworkin vai além, mas não creio seja o caso de estender o que parece óbvio. Conquanto não seja dito expressamente pelo articulista, mais se examine a questão, mais se pende para a explicação de que a motivação é política e oportunista, e não suporta uma análise jurídica mais aprofundada.
     Tendo isso presente,  Dworkin acrescenta, in fine,  as seguintes observações conclusivas, à sua magistral análise do problema:  “ Não podemos ignorar as dimensões políticas desta questão. O Partido Republicano e  seus candidatos presidenciais, de forma incessante, denunciam a lei, talvez porque seja uma das principais conquistas do Presidente Obama em seu primeiro mandato. Eles têm esperança de que os juízes conservadores vão declarar a inconstitucionalidade da Lei. Eles pensam que isto possa ajudá-los a derrotar o presidente em novembro. A lei, no entanto, é claramente constitucional e seria uma vergonha se, como tantos comentaristas agora antevêem, esses juízes façam justamente aquilo que os inimigos de Obama esperam deles.
       “Nossa história recente está marcada por algumas decisões da Suprema Corte muito mal arrazoadas, que tiveram, propositalmente ou não, um inequívoco sabor sectário: Citizens United  (Cidadãos Unidos), por exemplo, teve já um profundo e destruidor impacto em nosso processo democrático Essas decisões enodoam a reputação da Suprema Corte e causam dano à nação. Temos de esperar, talvez contra a própria evidência dos fatos, que a Corte não irá aumentar essa desafortunada lista.”



( Fonte: The New York Review of Books )



[1] V. in The New York Review of Books, nr. 8 (Vol. LIX), ‘Why the Mandate is Constitutional: The Real Argument.

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