Nos Estados Unidos, a práxis política indica que os tribunais tendem a ser utilizados como uma arma auxiliar. No passado, a Suprema Corte, de maioria conservadora e republicana, exercera nos primeiros anos do governo de Franklin Delano Roosevelt esse papel de anular nos tribunais as medidas legais renovadoras empregadas na luta contra a grande depressão.
Ao final, FDR prevaleceria contra os seus adversários. Nos seus históricos quatro mandatos presidenciais – ignorando o exemplo deixado por George Washington -, ele viria a mudar a orientação epimeteica da Corte, tornando-a mais afinada com o sentir majoritário.Barack Obama já designou duas mulheres de orientação progressista para o Suprema Corte. No entanto, a sua maioria continua a ter um viés conservador, filo-republicano, porque os juízes substituídos eram liberais. Em outras palavras, na hora presente a Corte mantém a mesma maioria de cinco a quatro que ensejou a pouca dignificante sentença Bush v. Gore, que suspendendo a recontagem dos votos no estado da Flórida na prática garantiu a contestada vitória do candidato republicano George W. Bush, o qual, além de ganhar pela eleição indireta por inédita decisão judicial, perdera no sufrágio popular por mais de quinhentos mil votos.
Agora, além do núcleo duro constituído pelo presidente John G. Roberts, Jr., (Chief Justice), Clarence Thomas, Antonin Scalia e Sam Alito, o juiz Anthony M. Kennedy, indicação do presidente Ronald Reagan, é, na prática, o voto de Minerva, como o foi na notória adjudicação da eleição presidencial em 2000 ao candidato do GOP. Nem sempre Kennedy marcha com aquele grupo, mas o seu viés pende amiúde, nas grandes causas, para o lado conservador.
Por isso, não foi sem inquietude que nas audiências de perguntas aos advogados pró e contra a Lei de Assistência Sanitária Custeável ( The affordable Healthcare Act), verificou-se que a maior parte dos quesitos do juiz Kennedy se dirigiam para os advogados – e em especial para Donald Verrilli Jr. o Solicitador-Mor de Justiça, da Administração Obama – que defendem a importante lei votada pelo então Congresso democrata, e sancionada em 2010 pelo Presidente Barack H. Obama. Ora, é voz corrente nos especialistas da Suprema Corte, que, muita vez, os juízes insinuam a sua postura negativa em relação à causa em juízo através do maior número de perguntas dirigidas aos causídicos responsáveis pela sua defesa.
Foi no mínimo sombria a impressão deixada pela saraivada de quesitos dos juízes conservadores (dos quais, por motivos inescrutáveis, apenas Clarence Thomas guarda silêncio).
Jeffrey Toobin, colaborador da revista The New Yorker, especializado na faixa jurídica, definiu a série de audiências com verdadeiro ‘descarrilamento’ (train wreck) para a Lei da Reforma Sanitária. E daí a sua opinião, ao sublinhar que, para ele ‘a lei está em sérios apuros’e traz um cenário de inegável pessimismo para o futuro dessa grande e memorável reforma.
Não há a menor dúvida de que se tal instrumento legislativo – perseguido por presidentes republicanos e democratas desde princípios do século XX – for derribado, ou, como se afigura mais provável, emasculado na sua determinação chave, que é o ‘mandato individual’[1], ele o será por motivos de política interna, nada tendo a ver com a sua alegada inconstitucionalidade.
A esse propósito, o parecer de Albert R. Hunt, que escreve para o International Herald Tribune e The New York Times é, a par de confrangedor, esclarecedor.
Esclarecedor, porque o cerne da causa republicano-conservadora contra a constitucionalidade do mandato individual ignora a circunstância factual que por muito tempo esse mandato foi preconizado pelos mesmos elementos políticos e jurídicos que ora o reputam inconstitucional.
Esse desenvolvimento – que é típico do atual sectarismo no campo da direita – só se verificou quando esse mandato se tornou parte do cognominado Obamacare[2]. Com a morte do bipartidismo e do sistema em que republicanos e democratas eram adversários políticos, mas não inimigos, choveram as ações judiciais, movidas por Procuradores-Gerais estaduais de administrações republicanas, postulando a inconstitucionalidade de uma lei que adotara o princípio do mandato.
O G.O.P. e seus leguleios se esqueceram de que, por duas décadas, como sublinha Hunt, o dito mandato individual constituíu um elemento básico na política de assistência sanitária republicana. Fora adotado contra o sistema de o governo como pagador único, propugnado pelo falecido Senador Edward M. Kennedy (democrata de Massachusetts), ou do mandato patronal, proposto pela reforma apresentada por Bill e Hillary Clinton em 1993.
É de frisar-se que o sistema do mandato individual fora apressada concessão centrista do Presidente Barack Obama, pela qual procurou atrair os negaceantes votos republicanos moderados do Senado (além da perda de tempo, não logrou apoio de nenhum), e se afastava da chamada opção pública – que não admitiria esse gênero de chicana – por entregar a administração do plano de saúde a uma única entidade pública. Aliás, durante as primárias, essas inclinações centristas e acomodatícias tinham partido de Obama, ao invés da posição mais segura e com maior conhecimento da matéria, da pré-candidata derrotada Hillary Clinton.
Desses processos – que são apenas a cínica sequência de um escopo abertamente político – chegaram à Suprema Corte dois – um em que a posição do governo prevaleceu em Tribunal Distrital de Apelação, e outro em que fora acolhido o oportunista enfoque republicano, em diverso Tribunal Distrital [3].
Já se intui, portanto, que a concessão de Obama, não só enfraqueceu a Assistência Sanitária através de concessão a ditos republicanos moderados, ladeados pelo Senador independente Joseph Lieberman (CT) desse mandato individual (ao invés da chamada Opção pública, com muita mais força de negociação junto às gigantescas associações médico-farmacêuticas americanas), mas também preparou o terreno para a instrumentalização pela direita da contestação judiciária. Não importa que o mandato individual, como sublinha Hunt, haja sido preconizado pelos republicanos em décadas anteriores. A conveniente falta de memória e o menosprezo à coerência doutrinal, dentro do clima maniqueísta favorecido pela aliança de conservadores e reacionários da direita terá dado o impulso indispensável para que se valessem desse pitéu, por mais aético que se configure.
Resta ainda um elemento relevante a considerar. A importância da lei da reforma sanitária não recebeu da Administração Obama a atenção que fazia por merecer no que tange à sua divulgação junto ao povo americano. Ao invés de tomar a iniciativa na exposição de o que significa a Lei da Assistência Sanitária Custeável, com a sua proteção a mais de trinta milhões de pacientes antes não cobertos, a par do barateamento dos cuidados médico-farmacêuticos (os EUA se distinguem pelo pouco invejável situação de serem o país mais caro no mundo nesse campo específico), praticamente a iniciativa foi deixada para a oposição conservadora que a caricaturou como se fora o Obamacare um avanço socialista sobre a liberdade individual.
Consternadora foi a inépcia da Administração Obama que permitiu ao GOP e associados desfigurarem o propósito e o alcance da Lei. Terá sido outra decorrência do terrível e desastroso biênio inicial do governo Obama, que receberia a paga do eleitor na eleição intermediária de novembro de 2010, com a perda da maioria na Casa dos Representantes. Essa triste, apática, quase alienada fase do governo Obama está descrita pelo livro de Ron Suskin, Homens de Confiança, e já foi objeto de consideração por este blog.
Assinale-se, por fim, que a desenvoltura evidenciada pelos juízes da ala conservadora nas audiências de questionamento de março último mostra sobejamente que se a sentença for contrária ao voto do Congresso e a lei sancionada, como instituto há muito intentado por legisladores e presidentes, a motivação de inconstitucionalidade terá a ver mais com política do que com direito constitucional.
Se acontecer, mostrará a Corte - que é a Defensora da Constituição e o fiel da balança no sistema americano de governo - a descambar para a política partidária, autêntico braço do Partido Republicano, como já o fora ao intervir de modo nunca visto na prerrogativa do Povo estadunidense de eleger o respectivo presidente, a exemplo de o que ocorreu no ano 2000.
( Fonte: International Herald Tribune ).
[1] Mandato individual é a módica taxa que cada contribuinte deve pagar ao governo para fruir do plano público de saúde. Se não o fizer estará sujeito a multa. Pagando a taxa, ele assegura sua cobertura, que inclui também as chamadas doenças preexistentes, um pretexto utilizado bastante pelos atuais planos de saúde particulares.
[2] alcunha depreciativa dada pela direita (GOP, Tea Party et al.) à Lei da Assistência Sanitária Custeável)
[3] Inexiste na União Americana um único Tribunal Superior de Recursos, como no Brasil. Este penúltimo degrau do processo judiciário está partilhado nos EUA por várias cortes distritais.
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