segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

A Caminhada (II)


                                                  

        Porquê tanto me orgulho em haver convivido com Juscelino Kubitschek nas horas difíceis da chamada arrogância revolucionária? Porque com ele partilhar seja a terra vermelha de Brasília, seja no estrangeiro ignorar ordens mesquinhas, era afirmar a própria brasilidade e o respectivo orgulho na democracia, sistema que é de todos o mais terrível, eis que convive com personalidades como JK, e que infunde àqueles que com tal criatura recebem a magna graça do exemplo, junto com a firmeza no olhar e a suprema alegria de ter com ele privado, e a despeito da sufocante e envolvente baixeza, e dos sibilantes chamados de render-se às medíocres regrinhas s do presente, sem esquecer de resto o quanto se servem para transformar os que porventura se negam a aplastar-se e humilhar-se naquela túnica de Nesso, de toda e qualquer forma que imaginar-se possa, se acaso o infeliz deixe entrever pelo rastejante espaço de uma dúvida, que a própria humana resistência sofre o embate de o quê de mais baixo possa a natureza, inda que por mísero instante, vir a sentir o quanto o medo e a humana covardia cresçam tanto no próprio estômago que se contorce em vis temores, quanto no nervoso abrir e fechar das pupilas, que antes do ar que enobrece, já traem consigo a vontade de compor-se com os poderes que aos indivíduos prostram mais do que incitam a posturas que venham a dignificá-lo. 

         Quando na manhã da formatura no Rio Branco, fui convocado à banca a que presidia Juscelino Kubitschek, soaram doces e fragorosas aos meus ouvidos, as palmas do público, composto pelos pais convidados àquela especial colação de grau.  Todos os que ali estavam conheciam o que aquela cerimônia representava. Sabiam não só das dificuldades dos exames e o quanto exigiam dos candidatos, para que adentrassem as salas do Instituto Rio Branco, e lá prosseguissem a respectiva caminhada, dividida em dois anos de estudo, com provas ministradas por exigentes professores, até que se completasse o biênio  para a graduação. Já a porta da entrada prenunciava percurso difícil, eis que o chamado vestibular constituía formidável barreira, em que se exigiam redações sobre tópicos árduos e, por vezes, com tais dificuldades que chegariam a repontar no dia seguinte nos jornais da então capital da república, como exemplos  de o que o Itamaraty exigia dos seus eventuais candidatos e não para se formarem, mas apenas para terem a oportunidade de aceder às portas do Instituto Rio Branco àqueles  exigia, repito, não para colarem grau, mas para nele adentrarem, e ali arrostar mais dois anos sob um currículo pesado que os preparasse para bem representar o próprio país.

            Tal era a dificuldade do exame vestibular e por isso, ao concluir-se a travessia infernal, a cada passo pontuada pelo rigor  e pela exigida dedicação exclusiva, estudando línguas - inglês, francês e português  - as várias matérias de direito,  nunca esquecendo a economia política, a geografia - o que incluía o desenho de mapas, e outras matérias  como a história, inclusive a diplomática e a própria geografia, a que muitas vezes carecíamos de memorizar através da atenta leitura das apostilas, que na verdade constituíam verdadeiras bulas, como a celebrada "malgrado a toponímia", redigida pelo temido professor Hilgard O'Reilly Sternberg, que nos exigia em provas muita vez realizadas sem aviso prévio, e que pela dificuldade ganhavam o status de bulas papais, eis que eram conhecidas pelas primeiras palavras do intróito, como aquelas acima citadas. Depois do vestibular - com a aprovação entre vinte e trinta candidatos,  entre uma pletora de vestibulandos - que tinham, por vezes, de indicar para que lado estava o bico do papagaio virado na edição daquele magno autor e poeta da nacionalidade, como no caso, da edição princeps dos Lusíadas. Eu que tivera a fortuna de dispor no Mello e Souza de um grande professor, teria na prova, para evitar o erro, que revisitar na memória velhos cadernos, em que grafara as aulas memoráveis desse mestre inesquecível, a cujo estro, que o aluno grafara nas páginas de o que muita vez mais pareciam arcaismos ou velhas figuras que só através do purismo de um mestre de nomeada chegaria às ávidas folhas de nossos cadernos escolares, que somente a reflexão e as ágeis memórias dos jovens estudantes do clássico poderiam ambicionar grafar tais jóias, nas páginas de seus cadernos, em que a nossa ânsia de saber se espalhava por suas folhas, na insana busca da memória a que somente adolescentes podiam prestar-se.  

            Pois para mim, egresso do Instituto do Rio Branco, aquele dia nasceria radioso. Se se iniciava a caminhada diplomática - na verdade, naquele tempo, ainda éramos carimbados à entrada como diplomatas classe K - o que em futuro breve se transformaria em Terceiro Secretário da carreira, o grande prêmio a que acedi era adentrar no famoso livro da carrière, que no meu caso é o Anuário 1960 e 1961. Recebi, para minha honra, das mãos do grande presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, o diploma, em 30 de dezembro de 1959. Recebi o canudo sob as atroadoras palmas do público - e como soou doce aos meus ouvidos aquela singela confirmação pelo aplauso de o que significava - e não só para mim, como para todos os genitores presentes no auditório do velho Itamaraty - receber das augustas mãos de Juscelino Kubitschek de Oliveira, quem sabem o nosso maior presidente de todos os tempos - aquele canudo que tanto trabalho de mim exigira, que arrancava por esforço, dedicação e sobretudo estudo - de o que entendiam muito bem todos os pais e parentes que então me aplaudiram, pois eles bem sabiam das características enobrecedoras daquele prêmio, e das dificuldades do biênio do curso, uma vez dobrado o cabo das matérias e das exigências do curso!. O próprio JK, que me receberia pouco depois, para me cumprimentar, desta feita com a sua simpatia - você é muito moço, meu rapaz! - É verdade, meu presidente, mas devo isto a muito estudo e dedicação!

             Com efeito, se havia então curso de admissão respeitado e, mesmo temido, era o exame vestibular do Instituto Rio Branco. O conhecido pistolão ali não era objeto de serventia. Só o estudo e a dedicação a ele garantia seja a colação de grau, seja a colocação no curso. As atroadoras palmas que me saudaram enquanto me encaminhava para colher das augustas mãos de nosso maior presidente o diploma de Primeiro Aluno não eram nem cerimoniais, nem pro-forma. Cada genitor que me saudava através daquela manifestação sabia muito bem o que aquilo significava. Esse estrondo me acompanhará por toda a vida. Ali colhi o testemunho cru e inesquecível de o quê alcançara, e tendo o benefício suplementar de receber das mãos de JK, um dos nossos maiores presidentes - e quem sabe o maior - que foi para nossa honra e memória inesquecível, Juscelino Kubitschek de Oliveira.

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