segunda-feira, 20 de junho de 2011

Testemunho sobre grandes Personagens

           A propósito do transcurso dos oitenta anos de Fernando Henrique Cardoso e das manifestações várias que têm motivado, me seja permitido agregar modesta apostila pessoal.
           Enfrentava eu na época missão de especial dificuldade. Como assinalara em comunicação, o Itamaraty não aprendera ainda a lição de lidar com as consequências administrativas e pessoais de situações de países convulsionados por conflitos internos.
           Havia boa vontade, conforme demonstrada pelas providências de segurança, com carro blindado e destacamento de fuzileiros navais. Sempre serei mémore da dedicação exemplar dos nossos militares, a que sempre procurei distinguir não só com o exemplo, mas com a limitação extrema dos compromissos externos, cingidos apenas em país conflagrado pelo terrorismo, a ocasiões estritamente oficiais.
           Sem embargo, se dispunha da indispensável proteção de um grupo valeroso da Marinha, a funda crise do governo e da sociedade perante a qual estava acreditado, tinha pesadas consequências sobre o plantel de funcionários de que a embaixada carecia.
           Grande obra de construção da chancelaria havia sido encetada em tempos mais promissores. Ao assumir a embaixada, quedou-me o encargo de levar a término esse cometimento. Duas empresas, uma argelina e outra brasileira, a realizavam em comum, cada qual nos limites da respectiva competência.
           Ao invés de outras chancelarias estrangeiras, que tratam de dar incentivos aos voluntários que se dispõem a enfrentar países abalados por lutas intestinas, naquela época a secretaria de estado das relações exteriores desafortunadamente não possuía elementos que fossem suscetíveis de motivar o afluxo de pessoal minimamente qualificado. Em minhas comunicações, sempre intentei evidenciar que o excepcional paradoxalmente pode ser fato corriqueiro para o ministério das relações exteriores. Prova disso era a maneira profissional, já inserida na prática burocrática, com que outras embaixadas de países europeus com chancelarias diplomáticas em nossa faixa, podiam arrostar o desafio e desincumbir-se de suas tarefas com lotação adequada.
           Posto que sem o aporte de pessoal diplomático durante quase dois anos, tive a sorte de ter a saúde suficiente para cumprir a missão. À minha volta, se tinha gente dedicada, não poderia solicitar-lhes missões para as quais não estavam preparados.
           Além de  ensaio sobre os méritos da adversidade, por iniciativa própria e no que me restava de tempo livre, preparei três estudos que tinham por objeto melhor entender os fenômenos revolucionários e sociais do país em que estava acreditado. Se pendiam sobre minha esposa e eu como espadas de Dâmocles, melhor me pareceu intentar deles retirar algum sentido político e social.
           Em sucessivas viagens ao Brasil, que modéstia à parte bem faziamos por merecer, a par da satisfação da aprovação externada por meus superiores, tive a oportunidade de em duas ocasiões ser recebido pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. A tradição das monografias forneceu o quadro para conversa cordial, para minha honra sem qualquer outra presença. Nesse minutos, ouvi expressões amáveis e pertinentes, de alguém a quem a relevância do cargo não fizera esquecer a sua condição de intelectual e professor, que não carece abrigar-se por trás dos muros da empáfia dos medíocres. Mais tarde, para minha surpresa, o Presidente da República me obrigaria com duas correspondências sobre os estudos respectivos, assinados por Fernando. Não obstante, a singela firma só confirmava a natural gentileza antes demonstrada.
           O meu breve convívio com FHC tivera contraparte nos primórdios de minha carreira. Por julgá-lo merecedor de menção, peço a paciência do leitor para mais algumas linhas.
           Eram momentos sombrios, inda que estivesse eu, jovem secretário, lotado na Cidade-Luz. O meu conhecimento de Juscelino Kubitschek até então se circunscrevera a dele receber, na grande sala da Biblioteca do Itamaraty do Rio de Janeiro, sob o forte, espontâneo aplauso reservado aos primeiros alunos do Instituto Rio Branco, o diploma de conclusão do curso e a respectiva nomeação para Cônsul classe K, então a designação burocrática para diplomatas em início de carreira.
           Pouco depois, com seu jeitão simpático, enquanto eu posava para a foto com o Presidente, ele me disse brincando: ‘Você é muito moço, rapaz !’
           Um punhado de anos depois, malgrado as instruções recebidas, me coube a honra de privar com o grande presidente, incapaz de ódios, mas deles vítima, que estava asilado em Paris. Dona Sarah falava mais, enquanto Juscelino se calava, talvez não querendo distinguir com eventuais palavras os respectivos algozes.
           Houve até episódio mais descontraído. Naquela tarde dominical, ele e meus familiares decidiram dar um pulo até o Jardin d’acclimatation, no Bois de Boulogne. Tinha o presidente um modesto Simca roxo, mas se dirigia, não sabia ainda ao certo como chegar ao local da mesas de campo onde, na estação, serviam-se morangos silvestres. Com a desenvoltura dos jovens, me apresentei como guia e tive a satisfação de contemplar pelo retrovisor do meu carro o Simca presidencial a acompanhar-me.
           Muitos anos mais tarde, nos encontramos de novo. Estávamos na plúmbea atmosfera da década dos setenta. Sentado em sala até modesta, mas dita reservada, vi surgir o vulto famoso. Ele, embora bem me conhecesse, preferiu agir como se lá não estivesse. Discreto, foi sentar-se a um canto. Por não duvidar um instante da verdadeira intenção do gesto, levantei-me e fui a seu encontro. Ele se ergueu e me abraçou com a velha cordialidade.
           Não mais o veria vivo. Depois, tive a honra de participar, oficiada por contrafeitos prelados, a missa de corpo presente em que a multidão de candangos, que enchia a Catedral e o entorno do espelho d’água, principiou, na hora da consagração, a jogar lírios e copos de leite que, fazendo as mais belas parábolas que me foi dado contemplar em vida, se aninhavam junto ao esquife.
           Nunca a espontaneidade de um povo – a quem a mentira do regime militar jamais enganara – externou maior homenagem a homem público, que breve seria enterrado, pelas mesmas mãos calejadas,no Campo da Esperança, na terra sagrada em que Juscelino tornara realidade a visão de dom Bosco.

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