quinta-feira, 23 de junho de 2011

Do Sigilo Documental

           A experiência, como o sol da manhã, dissipa as veleidades de que todas as práticas de governo possam todas ser feitas de modo ostensivo. Por certo, que a transparência é regra salutar cuja aplicação evita transações e ajustes que só podem vicejar na sombra de inconfessáveis mistérios.
           Não vá o leitor inquietar-se com a ilusória contradição que desvelam as duas premissa supracitadas. Na imagem platônica, com as duas rédeas de antigo carro de combate, o destro condutor controla os puxões de razão e paixão. No contexto em tela, podemos com alguma liberdade, nos valer da antiga metáfora.
           Não foi à toa que Aristóteles subordinou a política à ética. Os que discordam dessa vinculação, por óbvias causas, preferem manifestar tal dissenso em recônditos aposentos, que estão na mesma classe dos lugares onde corruptos ativos e passivos se distribuem os maços do dinheiro de triste e espúria clandestinidade.
           Que os fins destes senhores e senhoras sejam inconfessáveis, é um dado cristalino que só a esses biltres interessa enterrar nos próprios quintais.
           Semelha evidente que não se trata aqui da manutenção (ou não) de tal sigilo, porque esses negócios escusos relevam dos fétidos porões da política e suas cercanias. É de crer-se que ninguém de boa fé e juizo perfeito se animaria a incluí-los debaixo do manto do segredo de estado.
           Entretanto, o método adumbrado reúne méritos para jogar mais luz na análise do tópico a esclarecer. Dessarte, s.m.j., se deveria excluir da discussão matérias que nada ou pouco têm a ver com o exercício em questão.
           Assim, as gavetas que se deseja abrir não se reportam às transgressões cometidas contra os direitos humanos (tortura, cárcere privado ou clandestino, execuções, desaparecimentos e quejandos). O leitor do blog já terá determinado o quanto deploro a atitude timorata do poder civil – em embaraçosa contraposição com nossos vizinhos e irmãos do Cone Sul – em não tirar as consequências plenas da redemocratização (entre outras, abolição das instâncias militares, julgamento dos responsáveis por crimes contra a Humanidade, cujo caráter imprescritível está firmemente estabelecido pelo direito internacional humanitário).
           De que se trata, então ?
           Carecemos aqui de proceder à distinção que na aparência da presente controvérsia infelizmente não tem sido feita. Antes de intentar fazê-lo, semelhante relevante sublinhar que do atual debate participam muitas correntes, movidas por motivos diversos.
           A par daquelas que são automaticamente infensas às posições do poder – as que me abstenho de comentar, por não caber análise de posturas irracionais – a corrente polêmica abrange os campos dos que aspiram o acesso aos arquivos no menor prazo, dos que admitem diferenciações nessa disponibilidade, e aqueles que propugnam a interdição indefinida do acesso de documentos sensíveis ou especiais.
           Sem embargo, não se afigura admissível adotar metódos procrusteanos e, por conseguinte, sem qualquer válida base conceitual.
           No meu entender a discussão deve cingir-se àqueles documentos (entendidos no sentido lato) que sejam suscetíveis de exame por dizerem respeito a temas de interesse de estado, nas suas vertentes do direito internacional público, da prática diplomática e, ancilarmente, do direito internacional privado (na medida em que possa ter implicâncias na esfera do direito público).
           Para todo o mais, com vistas a precisar o argumento e não confundi-lo com tópicos ou estranhos ou irrelevantes, seria o caso de procedermos como o faz o prelado que, ao anunciar a abertura do conclave (assembleia dos cardeais com direito a voto para escolher mais um sucessor de Pedro), proclama em alta voz, o ‘Exeuntes omnes’ (Saiam todos), dirigido aos demais clérigos eventualmente presentes.
           Desse modo, em meu modesto parecer, silenciariam muitos dos argumentos e das contestações no que tange ao regime para tais documentos.
           Com efeito, o sigilo que se discute cinge-se às questões de estado no âmbito diplomático. Esses papéis são ciosamente guardados. Em meus cinquenta anos de carreira, nos quais vi um paradigma de diplomacia desaparecer e o francês como língua franca definhar, e surgir um novo que cuidou de, na essência, ater-se a regras do precedente, por esotéricas que a princípio semelhem, pude determinar que, dentre os componentes que não foram afetados pela tradição do bastão, persistia o cuidado especial reservado aos papéis relativos à diplomacia nacional.
           Não será minudente capricho lembrar que, empós as gestas dos bandeirantes e das entradas, a par da visão geopolítica do pequeno reino lusitano, e de seus funcionários, como a do governador do Maranhão, Jácome de Noronha, que determinou a magna empresa de Pedro Teixeira em busca das fontes do Solimões-Amazonas, veio o grande Alexandre de Gusmão, a mente por trás do trono de D. João V, para lançar as bases da negociação com o reino de Espanha do Tratado de Madri, o qual traçou as linhas mestras da colônia, reino e império do Brasil.
           A tocha diplomática, símbolo de saber e não de quizília, foi passada à diplomacia do Império, onde ressalta a figura de Duarte da Ponte Ribeiro. Toda essa atenção aos negócios de estado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros representaria o tesouro em que se guardariam não valores, mas documentos muito mais preciosos, como os velhos mapas da colônia e adiante, a par de tratados, acordos, memoraduns e despachos (ofícios diplomáticos). Seria a guarda de tal tradição – que nada tinha de vezos de antiquários – que distinguiria a diplomacia imperial das de nossos vizinhos.
           Como nos ensina o monge Roger Bacon, conhecimento é poder. E foi este conhecimento que ensejou a José Maria da Silva Paranhos Júnior, o futuro Barão do Rio Branco,  patrono de nossa diplomacia, empolgar dos julgamentos arbitrais (do Presidente Cleveland e da Autoridade Helvética), que nos deram ganho de causa nos diferendos das Missões (contra a Argentina) e do Amapá (contra a França).
           Não despertará maior assombro a meus eventuais colegas que, malgrado os meus dez lustros de carrière, nunca vi qualquer documento que se refira aos tais segredos de estado. E a razão é simples. Nos meus diversos postos e atribuições – e excluída a área consular os tive bastantes – jamais estive em posição que ex-officio me cometesse a incumbência de compulsá-los.
           Sem falsa modéstia, não sou avis rara nesta questão. Quero crer que participo dos oi polloi (os muitos) que não se ocuparam do tema.
           Quiçá esta sinalização não seja tão irrelevante quanto possa parecer à primeira vista.
           Esta controvérsia de documentos secretos supostamente comprometedores mais se afigura questão adrede fabricada, na procura incessante de tópicos com que se possa constranger e quiçá acuar a novel administração da Presidente Dilma Rousseff.
           Antes de chegar a conclusões que, a esta altura, suspeito sejam já esperadas pelo paciente leitor, creio oportuno ponderar à nossa Presidenta um conselho.
           Presidentes da República, na sua qualidade de Primeiros Magistrados da Nação, assim como por levarem a honrosa sarcina de serem a última instância – aquilo que o Presidente Harry Truman, na sua maneira jocosa porém veraz, definia como a parada final do problema (the buck stops here) – devem carecer de um maior cuidado nas respectivas declarações.
           Pesa-me dizer, minha cara Presidenta, que, no capítulo, o seu comportamento pendeu para o oposto. Assim, expressar que favorecera a quebra do sigilo antes, mas não agora, para depois dar a ideia de novamente trocar de cores, serão delícias recebidas com avidez pela imprensa, mas servirão acaso ao interesse do Estado, e a preservação da autoridade presidencial ?
           Se me permite, Senhora Presidenta, tampouco nessa hiperdelicada questão, caberia inteirar a mídia de que a questão fora transmitida pelo Palácio do Planalto ao Itamaraty, para que responda se os tais papéis – na hipótese de que existam - devam ou não vir a público.
           Em diplomacia,Senhora Presidenta, a discrição é a alma do negócio. Muitos ignaros pagaram caro as veleidades de trazer para os domínios diplomáticos costumes prevalentes em outros meios.
           Outrossim, dois predecessores seus se manifestaram de forma inequívoca pela manutenção do atual paradigma. Bem sei que são figuras controversas, inda que, um pelos caprichos da deusa Fortuna represente as Alagoas no Senado da República, e o outro, como Vossa Excelência não ignora, a exemplo do antecessor Lula da Silva, continua recebendo muitos sinais de próprio favor, sinais esses com largo séquito de importantes cargos. Nessas condições, Senhora Presidenta, valeria a pena ouvi-los, por suas pretéritas funções e sobretudo pelo que porventura conhecem desta matéria.
           De minha parte, caberia atentar no assunto em tela nas seguintes considerações:

           (a) há interesse político em abrir os nossos arquivos, sem qualquer restrição, não só a não-brasileiros, mas àqueles não autorizados à tal consulta ?;
           (b) na hipótese, por improvável que semelhe, de questões controversas e de pormenores havidos como embaraçosos, a quem aproveitaria a criação de ulteriores focos de eventuais críticas ou até mesmo com fumaças contenciosas?;
           (c) ainda sem o devido aprendizado diplomático, não confunda eventuais prontas respostas que pensem talvez satisfazer-lhe o imperioso alvitre, com o atendimento do interesse nacional;
           (d) para tanto, conviria louvar-se nos velhos maços e na tradição de império e república, que soube dar ao assunto a importância por ele exigida.

           Nessas condições, Senhora Presidenta, talvez fosse o momento de ter presente a atitude de um grande Presidente que, na época mal havia assumido o posto no Palácio do Catete.
           Era o tempo do chamado tenentismo, em que esses militares, egressos da Revolução de 1930, julgavam possível tutelar o chefe civil do movimento. Confundiram quiçá com debilidade a fineza no trato do ex-presidente do Rio Grande do Sul, ora o novel Presidente da República Getúlio Dorneles Vargas.
           Por isso, foram a seu gabinete no palácio das águias com projeto de decreto com disposições draconianas, que condenavam a morte os inimigos da Revolução, e em particular os ditos ‘carcomidos’ (que eram os próceres da República Velha), que a revolução de três de outubro derrubara.
           Cercado por zelosos e fardados chefes, imbuídos do imorredouro ódio contra o antigo regime, Getúlio leu com atenção o papel que lhe era apresentado manu militari.
           Terminado de perlustrá-lo, o Presidente Vargas elogiou profusamente a iniciativa, assim como o patriotismo que a norteara. Sem embargo, entrevira no documento alguns pontos que careciam de maior esclarecimento. Por isso, pediu vênia à nobre comissão ad hoc de que lhe ensejasse inteirar-se da questão com a atenção que ela decerto merecia.
           Incontinenti, diante das vistas satisfeitas dos militares, a quem pareceu bem andado o seu propósito, Getúlio Vargas colocou em uma de suas gavetas o papel em apreço.
           Desse documento, entregue com tanta fanfarra e castrense expectativa, nunca mais se ouviria falar.
           É história antiga ? Certamente. Mas nela colhemos lição importante. Muitas das urgências e das questões ditas inadiáveis, quem as coloca são os proponentes.
           Cabe a quem de direito discernir se esta ou aquela questão consulta ao interesse maior do cargo que ocupa. Nunca esquecendo que as urgências e sobretudo as inadiáveis na realidade são construções artificiais de quem almeja torná-las realidade.

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