segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Ciclistas Sem Lei

Na última revalidação periódica da carteira de motorista, surpreendeu-me deparar no livreto de informações que os ciclistas estão sujeitos a todas as leis do trânsito. Incrédulo, reli a frase que de forma taxativa afastava quaisquer dúvidas.
Meses mais tarde assisti a segmento televisivo sobre ciclistas de Brasília. Falavam do proveito que haviam tirado de um curso sobre regras de trânsito. Diziam para as câmeras que tinham aprendido a lição. Ora se achavam mais seguros, atendendo às normas e sinalizações.
Senti novo acesso de incredulidade. É verdade que, em Brasília, num triste contraste com outras paragens, pelo menos os direitos do pedestre são mais respeitados. Em qualquer das vias da capital, se alguém resolve atravessá-la na faixa, os carros se detêm e apenas retomam a marcha depois que o transeunte houver chegado à outra calçada.
Sem embargo, continuei cético quanto ao bom comportamento dos ciclistas brasilienses. Como São Tomé, será algo que terei de ver para crer.
Por que tanta suspicácia ? Vivo no Rio de Janeiro e a minha experiência cotidiana nada tem a ver com a peremptória afirmação de que as leis de trânsito valem também para os ciclistas.
Pensando na frase – que deve ter fundamento em algum artigo do código de trânsito – e na poética realidade a que ela se referia, a minha reação foi dupla. A par da animosa descrença que senti, igualmente recordei a característica do brasileiro em confundir desejo, aspiração com fatos concretos.
Será herança de nossos antepassados lusitanos. Assim, o discurso, a lei, a ordenação régia já representa em si uma realidade. Colocar no papel uma determinação será visto pelo legislador real não apenas como instrumento de regular o problema, senão como a própria solução da questão.
Dessa enxurrada de disposições e decretos, o brasileiro criou aquela singular categoria de legislação, talvez única no mundo: essa lei não pegou. Pouco importa a chancela da autoridade e a hierarquia do órgão que a gestou. Ao arrepio de todas as determinações do direito, se constata que tal lei não pegou.
Pois então, nessa peculiar classe de leis que não pegaram, é mister inserir o artigo do código de trânsito que dispõe sobre a aplicação de suas normas aos ciclistas.
Visões do Cenário Atual.
Na verdade, basta sair às ruas, andar pelas calçadas cariocas - e, não tenho dúvidas, em qualquer cidade brasileira – para aprender que os ciclistas não respeitam lei alguma.
A despeito de o Rio de Janeiro dispor da segunda maior extensão de ciclovias em cidade da América Latina – data da prefeitura de Marcello Alencar a construção das ciclovias ao longo dos calçadões das praias – não se vá imaginar que esta abundância de caminhos preferenciais afaste os ciclistas das calçadas cariocas.
Muito pelo contrário. Embora as irregularidades cometidas não se restrinjam aos passeios públicos, é forçoso reconhecer que os ciclistas têm singular apreço pela calçada. E decerto não se afigura necessária muita reflexão para atinar com as causas deste fenômeno. A calçada constitui para eles o espaço ideal e invejável. Ali, excluído o eventual transtorno dos pedestres, o campo lhes parece livre para circularem.
Na verdade, a julgar pela própria desenvoltura, não creio que se considerem pertencer à categoria dos veículos. Encaram quiçá a bicicleta como um prolongamento das respectivas pernas, quase centauros sobre rodas.
Assim, por não se incluirem entre os condutores de veículos, lhes parece natural que fujam das ruas, infestadas por motocicletas, automóveis, ônibus e caminhões, com os seus riscos e perigos.
Agora, se alguma via ou travessa lhes oferecer um atalho conveniente, eles hão de esquecer a sua pista preferida e reassumir, inda que por instantes, a condição de veículo, investindo desabridos pelo aberto caminho. Mesmo aí, fazem valer a própria idiossincrasia, ao desrespeitarem a mão das ruas e a eventualidade de um sinal vermelho.
De resto, esta característica de desconhecer os semáforos, eles a observam igualmente até nas ciclovias que o poder público lhes destinou. Dessarte, o sinal vermelho representa a segurança do pedestre nas ruas e logradouros, porém não na via dos ciclistas. Aí será mais prudente que se olhe em torno antes de ousar a travessia.
Diante da total ausência de qualquer fiscalização por agentes de tráfego, a popularidade da utilização da bicicleta e de seus sucedâneos – triciclos comerciais e de supermercados – se expande de modo um tanto assustador. Em um quadro de ‘liberou geral’ reminiscente de um recente abúlico prefeito assistimos à invasão das calçadas por veiculares chusmas de ciclistas.
Há de tudo. Das acanhadas avós que retomam o uso de velhas bicicletas, de jovens afoitos que pedalam quase como se estivessem em velódromos, dos torpes que forçam passagem a pedestres a esgueirar-se entre o meio fio e os avanços abusivos das mesas de bares e restaurantes, até a gesticulante ciclista a reclamar passagem de um humilde caminhante em calçada que já foi sua. Sem falar do engravatado condutor de motoneta flagrado em foto de jornal.
O afã do ciclista de servir-se do espaço do pedestre chega ao absurdo de que, ao invés de utilizar a ciclovia, prefira ele pedalar na pista da orla que é transformada durante os domingos e feriados em espaço pedonal. Dois aspectos carecem nesse exemplo de ser ressaltados: que nas pistas coalhadas de pedestres não venha aos ciclistas o pensamento de que estão invadindo área que está reservada a outrem; e que não apareça um guarda sequer para indicar aos transgressores que voltem à sua pista.
Esse duplo esquecimento é facilmente explicável. Porque se acreditam donos das áreas antes reservadas aos pedestres, os ciclistas não se sentem obrigados a obedecer lei alguma, sobretudo aquelas de elementar bom senso que possam favorecer aos transeuntes. Por outro lado, os guardas de trânsito, tanto os PMs, quanto os municipais, não registram os ciclistas e suas bicicletas como veículos que devam ser orientados, advertidos e fiscalizados.
Riscos e Remédios.
Quanto aos perigos dos comportamentos acima descritos, qualquer pessoa com um pouco de juízo e de experiência de vida, não terá dificuldade em imaginá-los. Não sendo tontos, tolos ou energúmenos, será suficiente um pouco de conhecimento da matéria para antecipar que, se persistir a atual situação, será inevitável que acidentes mais graves ocorram.
Muitos de nós,por essas calçadas existenciais, já teremos escapado por um fio de sermos atropelados por uma dessas velozes criaturas, inconscientes das ameaças que possam representar para a incolumidade alheia. Quero supor que a maioria delas não deseja mal algum ao seu companheiro de calçada. No entanto, o problema não reside aí.
Em um número esmagador de acidentes, os choques e os traumas decorrentes acontecem pela imprudência do comportamento do ciclista. O pedestre, em muitas oportunidades não se dá conta do risco que corre, pois, talvez inadvertidamente, se atreve a pensar que na calçada está em segurança e não precisa tomar os cuidados que se tem, por exemplo, quando se atravessa uma rua. Se na rua é o ciclista que tem de prestar atenção para as demais viaturas, por ser o mais vulnerável, a desenvoltura na calçada vem da subjetiva certeza de que ali está a salvo de qualquer ameaça.
Dispondo desse dado, dependendo da própria maturidade e capacidade mental, ele pode tornar-se a verdadeira ameaça, envolto pela hubris de falsa sensação de liberdade.
Como reverter tal situação, em que o ciclista é um fator crescente na desordem urbana ? Há providências de longo ou médio prazo. De início, sacudir os burocratas do trânsito de sua cômoda atitude de lidar com uma realidade adversa criando uma fantasia de legalidade. É necessário que sejam tomadas medidas para dar um embasamento legal às regras indispensáveis para reintegrar o ciclista, mutatis mutandis, no ordenamento jurídico aplicável aos demais condutores de veículos.
É claro que de nada serve declarar que os ciclistas estão subordinados às leis do trânsito, se não se estabelecem condições específicas para tornar realidade o que é hoje uma fátua assertiva, sem qualquer impacto na realidade cotidiana.
Como as autoridades brasileiras gostam de cobrar impostos e taxas, é imprescindível que cada bicicleta e cada triciclo tenha a identificação de uma plaqueta, a ser distribuída e controlada pelo detran municipal.
Dessarte os eventuais infratores serão identificáveis pelos agentes do trânsito, além de contribuirem anualmente com módica taxa que dê os fundos necessários para a manutenção de estrutura burocrática capaz de ordenar o microcosmo do ciclismo.
Criada a estrutura legal, e abolindo-se a atual anomia, haverá uma segunda fase, que dependerá das idiossincrasias locais. Com a obrigação do emplacamento das bicicletas e triciclos, cada município cuidaria da implementação da norma, e de difundir as informações necessárias para que a presente desordem se tranforme em ordem urbana.
Para tanto, haveria um periodo de carência. Por exemplo, a proibição de circular pelas calçadas seria transmitida aos infratores por guardas de trânsito ou guardas municipais. No primeiro mês, seria apenas uma advertência, mas a partir do segundo mês, mesmo sem norma específica ainda aprovada, a bicicleta ou o triciclo seria apreendido, e levado para o depósito público (em maneira similar a apreensão de mercadorias vendidas ilegalmente em logradouros por camelôs).
A regulamentação da atividade dos ciclistas – que se torna cada dia mais imperativa pelos inúmeros riscos acima referidos – se sofrer de um dos males comuns da burocracia (promessas vazias que nada concretizam), pode ser contornada por providências ad hoc no âmbito municipal. Se tais providências não são de todo satisfatórias, elas tem, contudo, uma dupla vantagem: criam maior conscientização sobre a necessidade de implementação das medidas, além de incrementar a respectiva pressão sobre as sólitas autoridades competentes.
É minha convicção que os secretários de ordem pública nos municípios – ou autoridades de encargos similares – podem contribuir para montar um primeiro arcabouço de controle para a atual desordem em matéria de ciclismo. Em agindo dessa maneira, estarão contribuindo para diminuir o número de acidentados nos respectivos núcleos urbanos, enquanto tornam as relações entre pedestres e ciclistas mais consentâneas com as mínimas exigências do convívio civilizado.

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