O
ex-presidente Barack Obama aproveitou o funeral de John Lewis (1940-2020),
nesta última quinta-feira, em cerimônia de grande peso simbólico para os
defensores dos direitos civis nos Estados Unidos, para fazer o discurso mais
duro até o momento contra o candidato à reeleição Donald Trump.
Ativista anti-racismo que marchou com Martin Luther King e congressista
durante décadas, Lewis morreu aos oitenta anos, com câncer no pâncreas, em
dezessete de julho corrente. O evento reuniu três ex-presidentes, líderes
políticos, religiosos e admiradores na Igreja batista de Ebenezer, em Atlanta.
Obama, primeiro presidente negro do país, disse que Lewis é
provavelmente o maior "discípulo de Martin Luther King" e que, assim
como muitos americanos, tem uma dívida com "sua potente visão de
liberdade". Em uma fala politizada,Obama principal cabo eleitoral do
candidato democrata Joe Biden, mesclou elogios a Lewis e críticas a posições do
governo Trump.
Sem citar o nome do republicano,
atacou a sugestão do presidente americano de adiar a eleição presidencial,
marcada para novembro, e a violência de agentes federais contra manifestantes
pacíficos.
Obama afirmou que pessoas no poder atacam o "direito ao voto com
precisão cirúrgica, até mesmo minando o
serviço postal, às vésperas das eleições". "Será preciso usar votação
por correios para que as pessoas não adoeçam", reiterou, referindo-se à
pandemia.
Em outro momento, lembrou George Floyd, cuja morte desencadeou atos
antirracistas em todo o país, e criticou a atuação das forças federais contra
protestos pacíficos, principalmente em Portland.
"Testemunhamos com nossos próprios olhos policiais se ajoelhando
nos pescoços de afro-americanos. George Wallace (ex-governador do Alabama, um
dos principais líderes segregacionistas dos EUA na década de 1960), pode ter
partido, mas testemunhamos o governo federal enviando agentes para usar gás
lacrimogêneo e cassetetes contra manifestantes pacíficos", disse Obama,
aplaudido de pé.
Os outros
ex-presidentes presentes na cerimônia, George W. Bush e Bill Clinton também se
pronunciaram. O republicano Bush, que
presidiu aos Estados Unidos entre 2001 e 2009, afirmou que os americanos
vivem num país melhor e mais nobre por
causa de Lewis. "John e eu tivemos
nossas discordâncias. Mas nos EUA pelo qual pelejou e nos EUA em que acredito,
diferenças de opinião são elementos inevitáveis e evidência de uma democracia
funcionando."
O democrata
Clinton ressaltou a habilidade "impressionante de Lewis em acalmar águas turbulentas"."Quando
ele poderia ter ficado com raiva e determinado a cancelar seus adversários,
tentou convertê-los. Ele acreditava que a mão aberta era melhor do que o punha
cerrado".
A presidente
da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, a democrata Nancy Pelosi,
também compareceu ao funeral. Afirmou que Lewis insistia na verdade em sua
atuação no Congresso e que, enquanto atuou como parlamentar, esforçou-se para
que seus colegas enxergassem "o movimento dos direitos civis e outros
(movimentos) por meio de seu olhar".
Ao cabo da
cerimônia, a banda BeBe Winans apresentou música composta em homenagem a Lewis.
Batizado "Good Trouble" (a boa confusão) a canção relembra frase
usada pelo congressista para alertar as pessoas da necessidade da "boa
confusão", do" bom e necessário empenhar-se".
Testemunho
de John Lewis.
(publicado pelo New York Times) Poucos dias
antes de sua morte, escreveu o artigo abaixo, para ser publicado no dia do seu
enterro)
Meu
tempo aqui estã chegando ao fim, mas quero que vocês saibam que nos últimos
dias e horas de minha vida vocês me
inspiraram. Vocês me encheram de esperança sobre o próximo capítulo da grande
história americana quando usaram seu poder para fazer diferença em nossa
sociedade. Milhões de pessoas motivadas simplesmente pela compaixão humana
derrubaram os obstáculos da divisão. Por todo o país e o mundo vocês puseram de
lado raça, classe, idade, língua e nacionalidade para exigir respeito pela
dignidade humana. É por isso que eu tive de visitar a Black Lives Matter Plaza
( Praça Vidas Negras Importam ) em Washington, apesar de ter sido internado no
hospital no dia seguinte. Eu simplesmente tinha de ver e sentir pessoalmente
que, depois de muitos anos de testemunho silencioso, a verdade continua
avançando.
Emmett Till foi o meu George
Floyd. Ele foi meus Richard Brooks, Sandra Bland e Breonna Taylor. Ele tinha
catorze anos quando foi morto, e eu tinha apenas quinze na época. Nunca
esquecerei o momento em que ficou muito claro que ele poderia facilmente ter
sido eu. Naquele tempo, o medo nos constrangia como uma prisão imaginária, e
pensamentos perturbadores de potencial brutalidade cometida sem motivo
compreensível eram as grades.
Embora cercado por pais amorosos, muitos
irmãos, irmãs e primos, seu amor não podia nos proteger da opressão maligna que
esperava assim que eu saísse do círculo familiar. A violência incontida e
irrestrita e o terror sancionado pelo Governo tinham poder de transformar em
pesadelo uma simples ida ao mercado para comprar doces ou uma corrida inocente
de manhã por estrada rural solitária. Se
quisermos sobreviver como nação unida, precisamos descobrir o que se enraiza
tão rapidamente em nossos corações que é capaz de roubar da Igreja Mãe Emanuel
na Carolina do Sul seus melhores e mais
inteligentes membros, atirar contra o público distraído em show em Las Vegas e
sufocar até a morte as esperanças e os sonhos até a morte as esperanças e os
sonhos de talentoso violinista como
Elijah McClain.
Assim, como tantos jovens
hoje, eu procurava uma saída, ou alguns poderiam dizer uma entrada e então
escutei a voz do Doutor Martin Luther King Jr. em um velho aparelho de rádio.
Ele falava sobre a filosofia e a disciplina da não-violência. Ele disse que somos todos cúmplices quando
toleramos a injustiça. Disse que não basta dizer que as coisas vão melhorar aos
poucos.Ele disse que cada um de nós tem a obrigação moral de se erguer e se manifestar. Quando você vê
algo que não está certo, tem de dizer alguma coisa. Você precisa
fazer alguma coisa. A democracia não é um estado. É um ato, e cada geração deve
fazer sua parte para ajudar a construir o que chamamos de Comnnidade Amada, uma
nação e uma sociedade mundial em paz consigo mesma.
Pessoas comuns com visão extraordinária
podem redimir a alma dos EUA causando o
que chamo de bons problemas,
problemas necessários. Votar e participar do processo democrático são vitais. O voto é o mais poderoso agente de mudança não
violenta que existe em uma sociedade democrática. Vocês precisam usá-lo, porque não é garantido. Vocês podem
perdê-lo.
Vocês também devem estudar. e apreender
as lições da História, porque a Humanidade está envolvida nessa luta
existencial dilacerante há muito tempo. Pessoas em todos os continentes se
puseram no lugar de vocês, durante décadas e séculos antes de vocês.
A
verdade não muda, e é por isso que as respostas elaboradas há muito tempo podem
ajudá-los a encontrar soluções para os desafios do nosso tempo. Continuem
construindo a união entre movimentos espalhados pelo mundo todo porque
precisamos afastar nossa disposição a lucrar com a exploração dos outros.
Mesmo que eu não esteja mais
aqui, peço-lhes que respondam ao mais alto apelo de seu coração e defendam o
que vocês realmente acreditam.
Na
minha vida, fiz tudo o que pude para demonstrar que o caminho da Paz, o caminho
do Amor, e da não -Violência é o melhor de todos. Agora é a sua vez de deixar a
liberdade soar. Quando os historiadores pegarem suas penas para escrever a
história do século XXI, que digam que foi a geração de vocês que finalmente
derrubou os pesados obstáculos do Ódio,
e que a Paz enfim triunfou sobre a Violência, a Agressão e a Guerra.
Por isso eu lhes digo: Caminhem com o
vento, Irmãos e Irmãs, e deixem o espírito da Paz e o poder do Amor Eterno
serem seus guias.
(Transcrição da Folha de S. Paulo)
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