Há
alguns dias o Brasil aguardava os cem mil, que é marca na aparência irreversível
na macabra contagem de cadáveres, que são multidão nesse mudo, na aparência
inarrestável, insaciável, quanto
incessante avanço, arrastados que são pela silente e surda avançada de
mortos que para uns, porque deles dissociados, pode parecer até insensível,
porque monótona, mas que também traz no
seu inchado bojo uma penca de dramas
pessoais e familiares, vidas cortadas de repente pelo estúpido avanço,
indiferente na aparência, do enorme leque de vidas, algumas que brotavam
esperançosas, outras colhidas quando os passos se tornam trôpegos, na macabra
contagem da centena de milhares levados pela dita insaciável avançada da Covid-19, na sua cruel e cruenta faina,
que se desenrola, sem sequer deter-se na idade da vítima da vez, que lhe parece
quase igual, pois ora corta a magia do nascimento, carregando grávidas e bebês,
numa tarda e brutal servidão, como se não existisse preço tão alto de que não exigisse a paga naquele
brutal, perversa, na aparência insaciável torpe sofreguidão. É o simbolismo
inapelável dos dificultosos despertares existenciais que se descobrem de súbito
questionados e postos em dúvida, num súbito, sôfrego e, de repente, sincopado e
interrompido processo, que num relance perdem a própria mágica, e se
transformam em outra sangrenta passagem de sacrifícios inescrutáveis,
autêntico enigma que não tarda em converter-se em mais uma estatística, que
será jogada em mesas repletas, em que se busca, e de forma denodada, dar
significado àquilo que na verdade não o tem, nessa dança dos números, que terá
motivado casais e até famílias, para afinal acabarem debaixo de torpes torrões
de barro, por vezes atá pútridos, no anonimato dos cemitérios de milhares de
vítimas sufocadas pela torrente de infortúnios, que na verdade, nas covas ainda
abertas ou mal-cerradas será ainda mais um sardônico xadrez de lances
terminais, em que pais de família,
mulheres, moçoilas, teen-agers e
outros candidatos reprovados no vestibular da existência se transformam em
números banais de anônimos algarismos.
A deusa Fortuna que para o eleitor Jair Messias Bolsonaro tem sido deveras
generosa, ao proporcionar-lhe vitória em prélio eleitoral livrado com o rival
petista Haddad, decidido na arena dos finalmente, como há de
proceder diante de tanta insensibilidade de parte do atual Presidente ? Por razões que a razão desconhece, ele não
deixou adentrar uma gota de sentimento de humana compaixão, pela morte pela
plúrima, excessiva, a ser expressa com sentimento da perda irreparável, de
tantos companheiros e companheiras de jornada terrena de forma tão abrupta e
impiedosa. Nada fez durante todo esse tempo, quando a própria maldita
enfermidade dele se apossou, e de forma quase respeitosa lhe passou os sintomas
desse flagelo que tem levado tantos e tantos brasileiros, brasileiras, e mesmo
brasileirinhos, inocentes que são, mas mesmo assim sem for-ça para demover de
seu medonho projeto esse monstro que a ciência ou a técnica, ou delas a
mistura, convencionou chamar de Covid-19. Ela, que nascera na sujeira das entranhas da
terra do império chinês foi repassada - na maquinal indiferença do fenômeno
pandêmico, veio chegar, a seu tempo devido, sem passar pela burocracia
consular, até as terras de Santa Cruz. Mas que se extirpe desse infame processo
qualquer gota seja de humana compaixão, seja de desumano propósito de infligir
o mal. Os demônios não jogaram sortes sobre restos ou vestígios humanos. Tal
não faz parte da burocracia, tenha ela qualquer adjetivo que porventura a
envolva e com isso lhe determine a sinistra identidade. Há, no entanto, algumas
regras que o Presidente de todos esses Brasis poderia ter disposto, como o fez
o seu colega da Argentina. Quando ocorre
uma desgraça mundial como a Peste na China, há presidentes, ou
primeiro-ministros, que são alertas e inteligentes o bastante para procederem
o fechamento consular dos respectivos territórios. Isto fez o colega platino
de Sua Excelência Bolsonaro, mas o nosso atual morador na residência
presidencial em Brasília, não deu maior atenção a essa providência de prudente
rotina, que nos poupa da entrada de estrangeiros infectados em nossa terra.
Tinha outros problemas a resolver e não acionou as primeiras defesas contra o
contágio por visitas de alienígenas. Passado é passado, e hoje não há qualquer
senso em discuti-lo.
Mas o tempo passa, e seguem as horas
e os dias e os meses, em que a atitude presidencial não mudou na sua
indiferença com relação ao desafio da Covid-19.
O brasileiro contempla o que se passa e se faz perguntas. O presidente
Bolsonaro seguiu em frente, com os seus muitos afazeres, embora a respectiva
atitude com relação ao desafio da pandemia que se espalhou - na lógica implacável
da própria designação por todas as plagas, quer interioranas, quer capitalinas
desses Brasis sem fim - reteve precípua e pesada consequência. Cumpria
menosprezá-la na sua capacidade maligna - por conseguinte, o poder de infectar
os próprios co-nacionais ! Chamou-a, a falta de outra designação, de gripezinha
com que, ao parecer, desejava transmitir aos seus compatriotas o seu
marcado e agressivo desprezo por aquele fenômeno pandêmico. Não sei se na época
de tais voláteis humores presidenciais, o Ministro Mandetta ainda estava ministro
da Saúde, ou se Sua Excelência o Presidente da República, tocado pela
popularidade deste direto auxiliar, já pensasse em dele livrar-se, pois para
ele os ministros - e em especial, este, da Saúde, ocupado com pasta de tal importância
nacional - não devem despertar demasiada atenção e sobretudo não terem apoio e
adesão muito fortes na população, porque tal poderia afetar ao próprio Chefe
da Nação. No reino das estatísticas,
essa é uma consideração sujeita a chuvas e trovoadas: pois, valha-me Deus!, em
questão de tal relevância, o presidente preferiu afastá-lo pelo bizarro,
estranho motivo de que Mandetta seria demitido pela própria competência
funcional... Dentre as motivações presidenciais, valha-me Deus, não seria
motivo demasiado usado pelos Chefes da Nação, mesmo aqueles porventura afeitos
a encarar demissões por causas extrassensoriais.
Tampouco o seu sucessor, Nelson
Teich, esquentou a respectiva cadeira. Não fora, de
resto, popular como o antecessor Mandetta, e tenha talvez exagerado da discrição,
mas afastou-se da Pasta por um motivo válido em termos profissionais, que lhe
enobrece a presença. Não aceitou que um medicamento como a cloroquina lhe fosse
imposto por capricho presidencial, em se tratando de droga comprovadamente
inócua para o combata contra a Covid-19.
Com a auto-exoneração de Teich,
restou ao presidente recorrer a uma saída não decerto inusitada para ele. Com
todos os militares que trouxe para o ministério, haveria de surgir mais um, um
general como ministro interino. Ele é de
um ramo de menor realce no Exército - pois não pertence ao ramo infantaria
ou cavalaria, nem à engenharia, mas
aquela área um pouco mais discreta que é a da logística. Mas para Bolsonaro que
até para a Casa Civil trouxe um militar ! o que é uma exceção, pois nem mesmo
no auge do regime castrense - o período Médici - o então presidente ousara chamar outro militar, designando, ao invés,
um civil para a chefia da Casa Civil.
É nesse contexto que julgo
relevante citar uns poucos, mas importantes, trechos do editorial de hoje,
domingo, nove de agosto, da Folha de S.
Paulo: "O maior responsável pela tragédia (da Covid-19) se chama Jair Bolsonaro. Em vez de liderar uma
ação nacional, negou a gravidade da emergência de saúde pública, promoveu
aglomerações e falsas terapias, como a cloroquina, e colheu oito casos de
ministros infectados (outro provável récorde mundial), além de si próprio e da
primeira dama.
"Alguns comemoram, no
presente, o suposto advento de uma imunidade coletiva como chamado para
arrebanhar clientes desgarrados de bares, restaurantes, academias e centros de
compras - não das escolas paradoxalmente. Epidemiologistas, entretanto,
descartam que se tenha alcançado tal limiar.
"Não há
panaceia, nem vacina por ora. Infeliz a nação que tem necessidade de heróis,
disse Bertolt Brecht; mais que infelicidade, a desdita do Brasil é nem mesmo
poder contar com um presidente e um ministro da Saúde efetivo neste momento de
luto."
Nota:
Transcrição
da Folha de S. Paulo, datada de hoje, nove de agosto.
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