quinta-feira, 16 de maio de 2013

Obama e a Guerra na Síria

                                       
         Iniciada com comportadas passeatas de rua, em março de 2011, a evolução da insurgência na Síria parece haver seguido os manuais que descrevem o processo revolucionário.
        A princípio, o levante na Tunísia, que espoucara em janeiro de 2011 com o sacrifício pessoal do humilde verdureiro Mohamed Bouazizi, ultrajado pela bofetada recebida de uma torpe agente municipal, levaria em pouco menos de mês à queda do clepto-ditador Ben Ali, em fins de janeiro.
         O campo árabe, ressequido por tantas ditaduras, apresentava um cenário ávido de liberdade, pronto a reeditar as célebres revoluções europeias, ateadas pelo povo francês, em 1830 e 1848. Esse processo espontâneo, que não tardaria em configurar a Primavera Árabe, tal rastilho de pólvora atingiria o Egito, do trintenal déspota Hosni Mourabak, que cairia em março, e a Jamairia na Líbia, de Muammar Kaddafi, que tendo apeado o rei Idris em  1969, como flamante major, envelheceu no poder, por mais de quarenta anos, até ser abatido por gente que antes espezinhara, afinal alcançado, na solidão dos fugitivos, pelas Eríneas que lhe aplicaram a justiça por ele negada, ao longo das décadas, aos seus desgraçados súditos. Foi em 20 de outubro de 2011, e ele vinha de seu derradeiro refúgio na cidade de Sirte, de que já nos fala Heródoto em sua História.
         Compreende-se que este marco da Primavera Árabe tenha sido recebido com júbilo e até mesmo comemorações. Outro tirano já temia por sua sorte, embora a própria juventude não lhe refletisse a imanente crueldade. A visita da ruína e da morte é como a peste. Os autocratas a querem bem longe. Por isso, Bashar al-Assad mandou quebrar as mãos do cartunista Ali Ferzat, que ousara associá-lo ao ditador líbico.
         A conjura democrática se estenderia ao Iemen, onde o presidente vitalício Ali Abdullah Saleh seria por fim derrubado, após trinta anos de mando. No Bahrein, a Arábia Saudita cuidaria de sufocar a revolta da maioria xiita dominada por dinastia sunita.  
        Na Síria, a velha terra da passagem, de que tantos colunistas ocidentais louvam o regime e a tolerância nos credos – quase um regime laico no mundo islâmico – o nervosismo do poder alauíta – que via nas pacíficas multidões com tímidas palavras de ordem a vanguarda da temida sublevação – optou por lidar com as balas covardes de atiradores, ou com as sessões brutais de tortura nos fétidos porões dos serviços ditos secretos do Mukhabarat .
        A revolução na Síria já enceta o seu terceiro ano. Irrompeu em Derah, no sul, na fronteira com a Jordânia. Gradualmente, ela se espraiou por todo o país. A Liga Rebelde tem o reconhecimento da Liga Árabe, e o povo sírio constitui o seu principal sustentáculo. As monarquias sunitas do Golfo a apoiam, com armas e víveres. A Turquia, de Recip Erdogan, manifesta a crescente irritação com a postura de Bashar. A guerra civil continua a ceifar vidas – ora  se estima o total em mais de noventa mil.
        Além de afetar os países limítrofes, com refugiados na Jordânia, no Líbano e no sul da Turquia, a guerra tem desestabilizado as nações no seu entorno, ameaçando a estabilidade da dinastia hashemita do rei Abdullah II em Amã, a lábil paz no espaço turco, com o envolvimento da minoria curda, e o frágil Líbano, a cambaleante democracia ameaçada pelo Hezbollah do clérigo Nasrallah e o influxo de refugiados sírios, que estão presente em todos esses países vizinhos.
        É quase impossível determinar o número de vítimas desta cruenta guerra civil. Há um observatório, a cargo de um cidadão sírio, no Reino Unido, que apresenta os cômputos mais criveis. A violência do embate e sua pulverização nas campanhas tornam tais estatísticas intentos de aproximação, que não podem ter a certeza de uma contagem com provas e contra-provas.
       Mais que ao regime corrupto de Bashar e de sua minoria alauíta, a Liga Rebelde enfrenta inimigos poderosos, que não regateiam armas e fornecimentos, pela mera razão de que não podem aceitar a queda de Bashar, pelos prejuízos, seja materiais, seja geopolíticos que ela lhes acarretaria.
       A Federação Russa de Putin continua a prover o acossado regime alauíta, porque não admite perder a sua base naval de Tartus, de águas quentes no Mediterrâneo oriental. Por outro lado, na lógica dos recursos a fundos perdidos, o Kremlin já investiu demais em Bashar e tudo fará para mantê-lo.
      O outro grande aliado de al-Assad é a Teerã dos ayatollahs.  Pelo corredor iraquiano, propiciado pelo regime xiita de Bagdá, Ali Khamenei municia com homens e armas o seu aliado no planeta islâmico. Empenha-se em manter de pé a ditadura alauíta, porque a sua queda decretaria o enfraquecimento do fiel escudeiro do Hezbollah, que o braço radical militante da minoria xiita. Sem o bom Bashar, o hoje temido Hezbollah, com força preponderante no Líbano, e com laços com o Hamas, na Palestina, se descobriria em ominoso isolamento, circundado por um mar sunita.
     E quais são os aliados e as forças que apoiam a Liga Rebelde ? Além das belas palavras do Ocidente e das tópicas sanções econômico-financeiras  contra Damasco, o apoio dado pela Europa Ocidental e pelos Estados Unidos não pode comparar-se às contínuas remessas de armas de parte do eixo Moscou-Teerã.
     Entrementes, a guerra civil se arrasta. Há suspeitas – e talvez mais do que suspeitas – de utilização de armas químicas pelas forças de al-Assad contra os rebeldes. Obama fizera no passado uma advertência a Damasco, de que o eventual emprego de tais armas equivaleria a cruzar uma linha proibida. Ora, como ensina a sabedoria popular, ameaças só devem ser feitas se se tem a intenção de aplicá-las. Não foi o que ocorreu.
    A personalidade de Barack Obama terá traços hamletianos, mas no passado ele já demonstrou sobejamente que pode surpreender, ao autorizar ações em que a sua própria permanência na Casa Branca estaria em jogo. Basta mencionar os riscos assumidos com a operação dos comandos em Abbottabad, para que se entenda ser complexo o seu processo de decisão.
      Malgrado as recomendações de intervenção no conflito dos então  Secretária de Estado Hillary Clinton,  Secretário de Defesa Leon Panetta e  Diretor da CIA, David Petraeus, o Presidente Obama optou por não disponibilizar armas para a Liga, sob o argumento de que poderiam parar em mãos de radicais islamitas.
     A despeito de o país estar dividido em dois, os rebeldes dificilmente terão condições de precipitar a queda de um Bashar, cujo combalido exército continua a dispor da armada munificência dos abastecimentos de Moscou e Teerã.  O ranking republicano John McCain é outra voz em favor desse cuidado e monitorado armamentismo.
        Abandonados à própria sorte, com o apoio menor orquestrado pelo Qattar e a Arábia Saudita, as perspectivas de conseguir sobrepujar o exército de Bashar – que há pouco logrou  simbólica, mas relevante restauração de sua linha entre Derah e Damasco – tenderão a diminuir.
      E, não obstante o apoio majoritário da população síria, não é acadêmica a pergunta de por quanto tempo os rebeldes deverão enfrentar, sem reforços apreciáveis, um inimigo bem armado, e que semelha ter superado a fase da derrocada iminente.
      A história não costuma perdoar, nem ser leniente, com os indecisos e irresolutos. Será que depois de tão longa caminhada, o esperado desfecho não ocorrerá, e  o drama se transformará em trágica farsa ?

 

( Fonte:  International Herald Tribune )

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