Meu mui prezado Pedro,
difícil acreditar, mas já transcorre hoje o
primeiro mês da tua partida. Nesse exílio dourado, não sei como andam as coisas
com Terezinha. Tenciono em breve comunicar-me com o Dr. Brito, em verdade mais
para fazer-lhe sentir que não está sozinho, de o que com o intuito imediato de
ajudá-lo. Da distância, no entanto, busco, de alguma forma, ser útil. Estou
intentando, meu caro Amigo, reabrir a conta no Banco do Brasil que, me releva a
observação, não devias ter encerrado. Entendo o significado do teu gesto.
Aposentado aos sessenta anos, querias cortar os laços com o exterior.
Esqueceste, porém, que a dita conta representa
instrumento indispensável para quem é membro do seguro em grupo do Itamaraty.
Todos os pagamentos médicos – que num assomo emocional não solicitaste do
Segrupex – teriam sido creditados nesta conta. Se nesses vinte e dois anos não
terás feito nenhuma consulta, médica ou odontológica – o que pela lógica me é
quase impossível admitir, por mais robusta que haja sido a tua saúde -, decerto
Thérèse terá carecido de atenções médicas especializadas, pelo menos em função
do problema auditivo. Não discuto, todavia,essa tua negação: como posição de
princípio, não me compete julgá-la por critérios racionais.
Discuto, isto sim, a desnecessária e –
me perdoes a franqueza – desavisada resolução de fechar a conta. Por mais que a
ingratidão do ministério te haja afrontado – e compartilho da justiça dessa
mágoa -, continuaste a ser um diplomata, inda que aposentado. Essa tua
inconcussa prerrogativa, nenhum capricho poderia torná-la írrita. E, por
conseguinte, estavas registrado sob o número XXX no Segrupex, número este que
é igualmente assignado a Terezinha, como tua dependente.
Adrede emprego argumentação jurídica,
pois aqui me dirijo ao advogado praticante, membro da O.A.B. Neste caso,
forçoso será reconhecer que não te assistia o direito de privar a tua esposa da
prerrogativa de uma conta no exterior do Banco do Brasil, em que serão
depositadas regularmente as
indenizações devida pelo seguro médico, além dos cem mil dólares a que faz jus
pelo seguro de vida do M.R.E. Dada a tua perene preocupação em proteger
Teresinha, não tenho dúvidas de que, neste passo, te deixaste arrebatar pelo
corcel das paixões, e que, por tal motivo, não tinhas ideia da consequente
dificuldade criada.
Por reputar imprescindível que a
Thérèse venha a dispor da conta, não me conformei com a resposta do Arlindo (x), a qual, após consignar a atual inexistência de conta em nome do membro
do serviço exterior brasileiro Pedro Carlos Neves da Rocha, a par do número de
registro no Segrupex e a condição de dependente do cônjuge, indicava como
solução a emissão de cheques em dólares pela seguradora. Assim, para cada
transação, um cheque seria encaminhado pelo correio...
Como aceitar um despautério dessa
ordem ? Se, em tese, este expediente semelha absurdo, se tivermos presente a
situação de Thérèse, meu estimado Pedro, a situação se agravaria deveras. E,
nesse contexto, tudo aconselha que se adote a via mais garantida, mais
discreta, e infinitamente mais prática, da conta em dólares na agência do Banco
do Brasil em Miami.
A celeridade da doença que veio
abreviar os teus dias, se te poupou de sofrimentos, contribuíu e muito para o
desorganizado estado de coisas com que se viu a braços a viúva, despreparada
para lidar com as inúmeras consequências da fatalidade. Já me referi a essa
situação – e enfatizei a preciosa e auguro continuada ajuda do Dr. Brito em
atender às diversas formalidades da tua sucessão. Nesse quadro, desejo ocupar-me por ora tão só da relevância
do procedimento burocrático e bancário para reforçar a precária posição da
viúva no que respeita à preservação de seus recursos.
Por isso, me empenho em obter através
de e-mails os dados necessários para
que Terezinha possa abrir a aludida conta em Miami. A despeito da presteza do
meio que nunca quiseste utilizar, a lentidão dos empregados continua a mesma
dos tempos em que só se podia recorrer ao correio postal. Espero que a minha
insistência venha a prevalecer, para que a tua mulher tenha afinal condições de
exercer tal direito.
Porque a alternativa, Pedro, se me
afigura assustadora. Cercada pelo Hermes (y) e com as outras empregadas à espreita,
a tua amada Thérèse corre sério risco. O Dr. Brito mora em Niterói. Se a sua
presença eventual em Petrópolis mostra a essa gente que ela não está
completamente desemparada, é mister reconhecer que se acha bastante exposta a
mor parte do tempo.
Hás de relevar o desabafo, porém me
resulta muito difícil entender o motivo que te levou a manter como agregado à
criadagem um indivíduo com os defeitos de caráter do Hermes. Apontam-me como
motivo a tua bondade. Se a explicação corresponde à realidade, o que me parece
provável, tal não me induz a aceitar-lhe a consequência. Até a bondade tem um
limite, na medida em que, não obstante a caridosa intenção, a condescendência
pode transformar-se em vetor de ulteriores efeitos danosos. Creio que onde te
encontras, se vês o que ocorre na tua casa e, principalmente, o que pode aí acontecer, estarás decerto
arrependido em haver tolerado a permanência de uma figura tão dúbia e repulsiva
quanto o teu chofer.
Assim, se lograr contribuir de algum
modo para que a Terezinha tenha conta no Banco do Brasil, já me será bastante.
Por ora, contudo, não é o momento de alvíssaras, pois o moço da gávea não
distingue fímbria de terra à vista. Tenho de armar-me de muita paciência e
tenacidade para vencer o egoismo humano, cujas funduras são insondáveis.
Antes de ir adiante, julgo oportuno
versar as dimensões da casa da Visconde do Uruguai e da criadagem que lá se
acha. Dadas a inexistência de rendimentos colaterais e o esgotamento da
poupança, pelos dispêndios com a tua enfermidade e passamento, salta aos olhos
a disparidade existente entre os meios financeiros disponíveis e as despesas
permanentes com a manutenção da residência, incluídos os salários dos
empregados e as contribuições previdenciárias. Sei que será difícil para a
Thérèse, mas se me afigura inevitável e urgente que ela se transfira para
moradia mais conforme à sua situação, que lhe proporcione o que, a par de
corresponder aos seus meios, melhor atenda à respectiva segurança. Pelo que vi,
Terezinha não considera sequer a alternativa. Desejo sinceramente que ela não
tarde demasiado em conscientizar-se dessa necessidade, de modo a que possa
fazê-lo não tangida por credores e injunções judiciais, e que, em consequência,
guarde certa margem de manobra, não só quanto à nova residência, senão para
preservar as alfaias e objetos que lhe são caros.
É de augurar-se que, nessa prova, o Dr.
Brito confirme na prática a sua amizade. Como nu-proprietário, dele dependerá o
êxito da transação, para que a viúva possa viver condignamente, com os recursos
da pensão vitalícia, e em domicílio confortável, com a assistência de uma boa
serviçal. Até o presente, todo o comportamento do teu amigo médico nos infunde
confiança de que a tua indispensável intermediação será honesta e generosa.
Cresceu o que pretendia ser apenas
preâmbulo de correspondência, a ponto de transformar-se no seu teor precípuo.
Malgrado não me tenha sido fácil levantá-lo, devo dizer-te que, como uma pedra
no meio do caminho, não havia jeito de ignorá-lo. E é melhor que as verdades
sejam expressas, mesmo aquelas a beirar o desagradável, para que não
continuemos o nosso diálogo com a sobrecarga de pensamentos embargados por
temores e precauções que ora não mais cabem.
Essa carta, tão plena de incertezas e
esperanças, comparte um pouco da dor das transições, que consigo carregam
decisões passadas, de súbito e brutalmente questionadas pela precariedade da
condição humana. Ao invés, sentiria mais prazer em referir o escrito na nossa
memória, e que mais se coaduna com os traços marcantes da tua personalidade. É
o que – se me valer a inspiração das musas e atendidas as injunções do diálogo
– me proponho esboçar nas páginas adiante.
Com amizade e entranhada tristeza,
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