V I
Meu mui prezado Pedro, Amigo e Mestre,
se
aos poucos se vai cosendo uma rede de sustentação para a Therezinha – agora a
pensão vitalícia já assinada e em vias de publicação-, tal se deve à rapidez e confiabilidade de um
tipo de comunicação que jamais utilizaste, e que trafega na tua detestada e
vituperada internet. Graças a esses
prosaicos e-mails, que desvirtuaram a
epistolografia, se tornou possível desfazer em breve tempo as ameaças que
pesavam sobre a tua esposa, vítima da desídia de V.M., da subitaneidade da tua
partida, e, se me permites, do teu olvido em assegurar alguma provisão, tanto
material quanto logística, para o pendente mas inexorável corte das Parcas.
Suprema ironia a de assistir inerme ao pontual auxílio prestado por um dos
vetores do novo paradigma, que te encarniçavas em desmerecer e apostrofar,
enquanto, triunfante, mostravas o último recorte denigratório desse soez
instrumento de perdição e vulgaridade, em que somente divisavas a serventia de
baratear, abalar e desfazer a provada cultura do livro.
Não
é hora, contudo, de analisar o teu – perdoe-me – quixotesco combate contra a informática e a sua coorte de
infames sequazes. Falemos, ao invés, das manhãs dominicais no aprazível parque
da mansão da Sétima Avenida, sob as sombras esguias dos eucaliptos, no
recolhimento do verde espaço intra muros,
sem vivalma em torno, apenas tocado de quando em
vez pela brisa leve ou pelas esfuziantes corridas dos esquilos da vizinhança.
Ali
construí invisível santuário dedicado à leitura do corpus aristotelicum. Altas levantei as paredes do recesso no
domingo ao ar livre, longe de compromissos e de convescotes. Para preservar
aquele reduto, recusava convites e eludia programas de última hora, a ponto de
levar outro embaixador, que privava da minha confiança, ao desabafo: “no
domingo, Mauro, contigo não há jeito de combinar nada !”
Era
verdade. Para defender a nesga de cultura, seria mister manter aquela vigilante
perseverança que políticos dizem prestar ao cultivo da tenra plantinha da
democracia.
E
o estudo aturado das edições bilingues me insinuou a possibilidade de também
aventurar-me pela seara do grego clássico. Retirei de outra esquecida estante a
cartilha verde de E.Ragon, a fim de encetar, em tarda idade, o aprendizado da
língua de Homero, Tucídides, Demóstenes e de seu contemporâneo Aristóteles.
Se
das obras do Estagirita restaram os tratados e as ðïìíÞìáôá[1],perdendo-se no crivo
implacável dos copistas os diálogos da juventude, se os seus escritos primam
pelo rigor na exposição e a ênfase na articulação metodológica e sistemática
dos diversos temas, não poderiam aspirar – nem é seu propósito – a seguir os
caminhos de Platão, em que as qualidades literárias se mesclam à imaginação, na
forma discursiva dos trabalhos do discípulo de Sócrates.
Ao percorrer a longa trilha
aristotélica, chegando mesmo a perlustrar escritos apócrifos, como a Retórica a Alexandre e a coleção dos Problemas, a leitura dessa imensa
produção, ao invés de saciar-me a sede, me fez ávido de conhecer mais e além,
no vasto campo aberto pelo Primeiro
Filósofo.
Te escrevi, então, contando de minhas
experiências, mas sobretudo inquirindo dos novos horizontes que se entreviam, e
das indispensáveis sinalizações que somente o estudioso me poderia
proporcionar.
Os prazos de nossa correspondência, se
não tinham por certo a celeridade dos e-mails,
se se faziam aguardar por semanas e semanas, pagavam essa tardança com a
moeda das velhas epístolas, em que tanto a forma, quanto a substância mereciam
a atenção devida, e assim hoje permanecem, sem a vacuidade apressada, a
expressão desalinhada, e a entrecruzada efemeridade das comunicações pela internet.
Se
pressinto em ti um sorriso que interpreta, satisfeito, essas palavras à guisa
de tardia concordância com as tuas ideias, não vás confundir a parte pelo todo,
nem o reparo formal como absoluta, inapelável condenação.
Que
a discussão desse tema, porém, fique para depois. Ignoremos, por ora, a sua
insistência em voltar à baila. Deploro não ter diante dos olhos as tuas cartas
dessa época, cheias de conselhos práticos e de indicações livrescas. Eram
páginas saídas da alvissareira Olivetti, portadora
de informações doutas e seguras, de um saber não de afogadilho, mas colhido com
a pertinácia mourejante do pesquisador incansável, do intelectual que não
escatimava esforços em examinar uma assertiva, uma hipótese, uma doutrina, sob
todos os prismas, mesmo aqueles de que, em princípio, discordasse. E quanto
essa atitude já ressumava de aristotélico, só no futuro viria eu a realizá-lo
plenamente.
De
todos, o livro que maior relevância teria para a minha formação no vasto domínio dos estudos aristotélicos
foi o de Ingemar Düring. Em viagem ao vizinho México adquiri a bem-cuidada
tradução espanhola, editada pelo Fundo
de Cultura Econômica, sob o título “Aristóteles – Apresentação e Interpretação
de seu Pensamento”. Comprei-o em livraria próxima ao Zocalo e só mais tarde me
aperceberia que do meu exemplar faltava um fascículo, justamente no capítulo
relativo à Poética. A solução encontrada – a transmissão por fac-simile das páginas faltantes – se me
atendeu a carência momentânea, não semelhava satisfatória no longo prazo.
Afinal, continuava incompleto o volume, pois as folhas do fax mais pareciam um remendo, de resto destinado a apagar-se com o
tempo. Encomendei, por isso, a edição original alemã – o classicista sueco,
desejando partilhar a sua sapiência com um público mais largo, preferira
escrevê-lo na língua de I.Bekker e H. Bonitz.
Dessarte,
às minhas leituras filosóficas agreguei o estudo sistemático e diário da Grammaire Grecque, de E.Ragon, na sua
edição de 1956. Se a folha de rostro deste manual de 282 páginas registra a
data de onze de maio de 2001, portanto já no Rio de Janeiro, no extenso período
de inatividade diplomática a que me consignara o então encarregado do
Itamaraty, na verdade este volume se transformou no meu quase breviário.
Qualquer data que aí figure será enganosa, pois jamais deixou de estar à minha
cabeceira, como a minha própria agenda o demonstra.
Na
frase de Mao Zedong - ou será provérbio
chinês ? – a longa marcha começa com um passo. Decerto, assim foi no árduo
aprendizado do grego clássico. A princípio, quiçá temeroso de repetir a
veleidade parisiense, o encetei em silêncio.
Não o alardeei a quem quer que seja – mesmo com Ana Maria, cuja
proximidade impedia desconhecê-lo, as eventuais menções observariam a diretiva
da reserva, como se já tivesse internalizada a homérica ákäþò[2].
Ragon
foi o meu guia cotidiano na lenta e dificultosa escalada de montanha que, por
vezes, de tão íngreme se me afigurava ínvia e inacessível. Escolhida a vertente
do autodidatismo, se tinha a clara noção de que me constituíra como o solitário
juiz da empreitada, não me escapavam os obstáculos, as inúmeras pedras no meio
do caminho, a que a solidão do esforço gnoseológico me condenava. Tampouco
ignorava a carga adicional do início tardio, dos neurônios perdidos em décadas
transatas, e, por conseguinte, de não mais dispor da memória dos verdes anos.
Foram
momentos, dias e meses difíceis – especialmente aqueles transcorridos na
repentina Limoges em que o Itamaraty me havia transformado o Rio de Janeiro –
mas ao invés de amarguras e lamúrias, busquei arrimo na empresa para muitos
incompreensível. Na apreensão por vezes monótona e fatigante, encontrei o
cajado que me ajudaria a manter a autoconfiança e o sentido da travessia.
Do teu etéreo assento estás a ouvir
confidências nunca antes ouvidas. De resto, é mister não confundir as estações.
A Guatemala, tão bela na sua diversidade, foi tempo de semeadura. E se as
manhãs no parque da embaixada me mostraram a largueza dos horizontes, para
deles acercar-me careci da tua mente lúcida, experiente e ilustrada.
As páginas da maior autoridade em
Aristóteles da segunda metade do século XX foram a porta de um mundo até então
para mim defeso. E dentre tantas sugestões e conselhos, nessa jornada de estudo
da obra e da vida de quem, algo ironicamente segundo os costumes do tempo,
Platão cognominaria o Leitor, tal
momento ousaria defini-lo com um turning
point[3].
E a quem, meu caro Pedro, senão a ti eu devo esta hora e vez ?
Perlustrar o alentado volume de Düring
me familiarizou com muitos especialistas na matéria. A respeito, longe de mim
cansar-te com incontáveis citações, logo a quem adquiriu e leu cada um desses
autores do século passado ou mesmo da virada dos séculos XIX e XX. Mencionemos
apenas von Wilamowitz (cujos esgotados livros debalde persigo), H. Cherniss, W.
Jaeger (apesar do viés pró-platônico), F.Nuyens e P.Moraux. Por teu intermédio,
Düring não só me apresentaria essas visões complementares e por vezes
antagônicas, senão me proporcionaria a oportunidade de relacionar todo o corpus
aristotelicum que já lera com a própria apreciação, sua contextualização de
acordo com os estudos até a metade dos anos sessenta, e a respectiva
interpretação da formação e da evolução doutrinária do Estagirita, máxime no
que tange ao mestre Platão e, em particular, à sua teoria das ideias.
Recordo-me de uma passagem pelo Rio
nesses anos guatemaltecos. Não sei se almoçamos no Bar Monteiro ou em algum
outro restaurante similar. Atravessavas na época período que eu chamaria de
‘Roberto Marinho’. Por dá cá aquela palha, invectivavas contra o proprietário
das Organizações Globo, a quem transferias boa parte da culpa e das mazelas
éticas da república. A coisa chegou a tal ponto em que, apesar de não morrer de
amores pelo referido senhor, não logrei sopitar a minha discordância com a
manifesta singularização da tua raiva em tal personagem.
Procurei
mostrar que deveríamos explorar as causas da crise e não nos perdermos em
epifenômenos, como acreditava fosse o caso. E, então, acrescentei qualificação
que me apena relembrar. Disse que via nessa atitude conotação pequeno-burguesa,
que não fazia justiça ao teu intelecto.
Suportaste o golpe com elegância. Não
manifestarias, de pronto, desagrado, embora mais tarde traísses a marca deixada
pela pecha com um que outro dito acerbo. Nesse contexto incluo a retórica
pergunta, ao tomar ciência dos meus estudos de grego clássico:
“Mas
Mauro, pensas realmente nessa altura em te tornar um humanista ?”
Preferi
não replicar à descrença implícita na tua frase, que mais me pareceu um
desabafo. Primeiro, por ser do meu feitio responder com o silêncio a tal gênero
de observação. E, segundo, porque não via proveito em acirrar mais o ambiente.
Estava certo. O teu temperamento generoso,
infenso ao ressentimento, não tardaria em relevar o epíteto. E, não obstante,
para qualquer coisa serviria. Nos encontros vindouros, as diatribes contra o
patriarca das organizações Globo não teriam mais a ênfase passada.Talvez a
mordacidade da expressão, desvelando alguma verdade, haverá pesado no teu ânimo
e contribuído para que dele redimensionasses a respectiva relevância.
Ainda
desses tempos, cabe aditar certos aspectos que foram surgindo, e que se
relacionam com as nossas conversas. Nem sempre as reuniões se resumiam à trinca
Pedro, Rezende e Mauro. Às vezes, compareciam outros parceiros, que eram por ti
saudados com a costumeira efusão. Recordo-me de dois: do teu antigo chefe
Areias Neto, que já não estava bem de saúde, e viria a falecer pouco depois; e
de um segundo, cujo nome de origem italiana me esqueceu. Devia ser companheiro
de juventude da dupla, pois tanto Pedro, quanto Rezende mostravam muita
condescendência com as suas atitudes amiúde inconvenientes. Cientes das
fraquezas do personagem, ambos cuidaram de advertir-me contra possíveis pedidos
de ajuda financeira, com que costumava tentar achacar os incautos. E não é que
a tentativa de facada ocorreria ? Ao ouvir o tipo desfiar uma triste estória,
me foi menos difícil desvencilhar-me das instâncias do pedinchão.
Esses participantes extemporâneos nada
traziam em termos de contribuição intelectual para as conversas do Bar
Monteiro. Não compreendia, por isso, a satisfação que a sua presença provocava
na dupla, eis que, por terem o interesse voltado para domínios mais
corriqueiros, representavam, no mínimo, um estorvo para que outros tópicos
fossem versados.
Há um terceiro partícipe nesses
almoços. Sérgio Paulo Rouanet, colega de turma de Pedro, com quem nunca cruzei.
Da nossa relação com esse personagem, tratarei alhures. Basta aqui dizer que
terá aparecido em uma ou duas ocasiões.
Na década de noventa, os colóquios
obedeciam ao seguinte ritual. De passagem pelo Rio, por telegrama te propunha
uma ou duas datas para o compromisso. Cuidavas de avisar o Rezende, e o ponto
de encontro era o sebo da rua do Carmo. Costumava chegar primeiro, às vezes
adentrando o chamado Sebão bem antes da hora aprazada. Em geral, Rezende
aparecia em segundo lugar, com o habitual boné, camisa de listas horizontais e
a bermuda. Por último, vinhas tu, carregando as bolsas da Leonardo da Vinci,
onde levavas as encomendas coletadas naquela livraria, assim como os xerox que
nos trazias, e alguma eventual aquisição na Saraiva ou até na Loyola, esta
aninhada em duas salas do décimo-sétimo andar do edifício Sisal na avenida
Presidente Vargas. Retardatário, agias como se dispusesses ainda de larga
parcela de tempo. Percorrias, com olhar minudente, as prateleiras e as mesas
que atulhavam o velho e decrépito casarão. Naqueles anos, as pesquisas – ou
garimpos, como as designávamos – podiam produzir livros de certa valia.
Henrique, que era o nosso atendente, nos dava bons descontos, em preços já
convidativos.
Vale dizer, a propósito, que, com o avanço
dos anos, iriamos para o Sebão com o temor de não mais encontrá-lo. Esta sina
que, de resto, não é privativa das livrarias do Rio de Janeiro, acabaria por
confirmar-se. O senhorio, desejoso de aluguel mais alto, lograria enxotar a
cooperativa de empregados dali, para um obscuro refúgio em acanhada loja na
Primeiro de Março.
Retornemos, entretanto, à liturgia dos
colóquios. Afinal, conseguiria arrastar ‘os meninos’ para o Bar Monteiro, em
uma rua da Quitanda sempre mais visitada por odores de fossa. A refeição,
servida por simpáticas garçonetes, se cingia à carne assada em fatias, e a pão,
também cortado. Pedro e Rezende comiam igualmente maionese de batata, que eu,
com as minhas precauções, há muito refugara. Consumíamos dois e até três chopes
(o terceiro, de hábito, era partilhado), que acompanhávamos com uma caipirinha.
Mais tarde, eu aboliria a caipirinha. Rezende não se contentava com essas
doses, a que acrescentava um cálice de Ipioca, uma cachaça amarelada, de que
Pedro acedia em sorver um gole.
Não sei se concordarás comigo, porém
aquelas conversas, inda que no calor de ambiente não-refrigerado, possuíam uma
desenvoltura e encanto, eu diria mesmo magia, que não mais entreveria na virada
do século. Mudara o Natal ou mudáramos nós ? Francamente, não sei. O diálogo
fluía, os assuntos repontavam, e a impressão de que ali tratávamos de coisas do
espírito, temas relevantes e gratificantes, me ficava muito empós de concluído
o encontro marcado. E pairava a lembrança na memória, a ponto de prelibar a
vinda de nova oportunidade de discutirmos de tudo um pouco, mas sobretudo de
filosofia e de Aristóteles.
Pedro, eras sem dúvida o maestro daquele
desengonçado terceto, em que o setentão Rezende se mantinha em surdina,
malgrado interviesse de quando em vez; a mim, cabia então fazer os
questionamentos, ensaiar um que outro motivo; e a ti, organizar a discussão,
harmonizar as vozes dissonantes, apontar uma direção.
No limiar das três horas, a trinca se
dirigia para o botequim do Terminal Menezes Cortes, onde Pedro, que lá soía
chegar à frente, encomendava os três cafezinhos. Não nos demorávamos demasiado,
pois te preocupava o horário do ônibus para Petrópolis. Mais um dedo de prosa e
soava a hora de mostrar o bilhete ao empregado da viação. Sentavas na dianteira
do pullman, na primeira poltrona da
janela à direita. E dali, com os teus gestos largos, te despedias dos
companheiros de tertúlia.
Desfeito o elo, Rezende e eu descíamos
para a calçada vizinha à praça que margeia a Nilo Peçanha, para separarmo-nos,
um rumo às barcas de Niterói, e outro, em direção a um hotel ou residence em Ipanema.
Na sexta-feira, dezenove de maio último,
a minha viagem de ônibus para Petrópolis começaria na Rodoviária. Em tudo o
mais, todavia, não há de ter diferido muito da rotina dos teus percursos. Se
pensei que seria mais longa, partilhei do receio que sentias do assalto, essa
ocorrência a que se acha exposta, com crescente incidência, a gente honesta que
carece do transporte público. Felizmente, nada aconteceu, e então me lembrei do
roubo que sofreste em um desses trajetos. E quedou a pergunta se a companhia da
ansiedade, com os seus temores e desgastes, não te seria pior do que a própria
consumação da violência.
Com o apreço de sempre e a saudade que
cresce como erva daninha,
* *
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