quarta-feira, 29 de maio de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (VI)


 

                                                       V I

 

        Meu mui prezado Pedro, Amigo e Mestre,

 

         se aos poucos se vai cosendo uma rede de sustentação para a Therezinha – agora a pensão vitalícia já assinada e em vias de publicação-,  tal se deve à rapidez e confiabilidade de um tipo de comunicação que jamais utilizaste, e que trafega na tua detestada e vituperada internet. Graças a esses prosaicos e-mails, que desvirtuaram a epistolografia, se tornou possível desfazer em breve tempo as ameaças que pesavam sobre a tua esposa, vítima da desídia de V.M., da subitaneidade da tua partida, e, se me permites, do teu olvido em assegurar alguma provisão, tanto material quanto logística, para o pendente mas inexorável corte das Parcas. Suprema ironia a de assistir inerme ao pontual auxílio prestado por um dos vetores do novo paradigma, que te encarniçavas em desmerecer e apostrofar, enquanto, triunfante, mostravas o último recorte denigratório desse soez instrumento de perdição e vulgaridade, em que somente divisavas a serventia de baratear, abalar e desfazer a provada cultura do livro.

        Não é hora, contudo, de analisar o teu – perdoe-me – quixotesco combate  contra a informática e a sua coorte de infames sequazes. Falemos, ao invés, das manhãs dominicais no aprazível parque da mansão da Sétima Avenida, sob as sombras esguias dos eucaliptos, no recolhimento do verde espaço intra muros, sem vivalma em torno, apenas tocado de quando em vez pela brisa leve ou pelas esfuziantes corridas dos esquilos da vizinhança.

        Ali construí invisível santuário dedicado à leitura do corpus aristotelicum. Altas levantei as paredes do recesso no domingo ao ar livre, longe de compromissos e de convescotes. Para preservar aquele reduto, recusava convites e eludia programas de última hora, a ponto de levar outro embaixador, que privava da minha confiança, ao desabafo: “no domingo, Mauro, contigo não há jeito de combinar nada !”

       Era verdade. Para defender a nesga de cultura, seria mister manter aquela vigilante perseverança que políticos dizem prestar ao cultivo da tenra plantinha da democracia.

        E o estudo aturado das edições bilingues me insinuou a possibilidade de também aventurar-me pela seara do grego clássico. Retirei de outra esquecida estante a cartilha verde de E.Ragon, a fim de encetar, em tarda idade, o aprendizado da língua de Homero, Tucídides, Demóstenes e de seu contemporâneo Aristóteles.

        Se das obras do Estagirita restaram os tratados e as ðïìíÞìáôá[1],perdendo-se no crivo implacável dos copistas os diálogos da juventude, se os seus escritos primam pelo rigor na exposição e a ênfase na articulação metodológica e sistemática dos diversos temas, não poderiam aspirar – nem é seu propósito – a seguir os caminhos de Platão, em que as qualidades literárias se mesclam à imaginação, na forma discursiva dos trabalhos do discípulo de Sócrates.

        Ao percorrer a longa trilha aristotélica, chegando mesmo a perlustrar escritos apócrifos, como a Retórica a Alexandre e a coleção dos Problemas, a leitura dessa imensa produção, ao invés de saciar-me a sede, me fez ávido de conhecer mais e além, no vasto campo aberto pelo Primeiro Filósofo.

        Te escrevi, então, contando de minhas experiências, mas sobretudo inquirindo dos novos horizontes que se entreviam, e das indispensáveis sinalizações que somente o estudioso me poderia proporcionar.

        Os prazos de nossa correspondência, se não tinham por certo a celeridade dos e-mails, se se faziam aguardar por semanas e semanas, pagavam essa tardança com a moeda das velhas epístolas, em que tanto a forma, quanto a substância mereciam a atenção devida, e assim hoje permanecem, sem a vacuidade apressada, a expressão desalinhada, e a entrecruzada efemeridade das comunicações pela internet.

        Se pressinto em ti um sorriso que interpreta, satisfeito, essas palavras à guisa de tardia concordância com as tuas ideias, não vás confundir a parte pelo todo, nem o reparo formal como absoluta, inapelável condenação.

        Que a discussão desse tema, porém, fique para depois. Ignoremos, por ora, a sua insistência em voltar à baila. Deploro não ter diante dos olhos as tuas cartas dessa época, cheias de conselhos práticos e de indicações livrescas. Eram páginas saídas da alvissareira Olivetti, portadora de informações doutas e seguras, de um saber não de afogadilho, mas colhido com a pertinácia mourejante do pesquisador incansável, do intelectual que não escatimava esforços em examinar uma assertiva, uma hipótese, uma doutrina, sob todos os prismas, mesmo aqueles de que, em princípio, discordasse. E quanto essa atitude já ressumava de aristotélico, só no futuro viria eu a realizá-lo plenamente.

       De todos, o livro que maior relevância teria para a minha formação  no vasto domínio dos estudos aristotélicos foi o de Ingemar Düring. Em viagem ao vizinho México adquiri a bem-cuidada tradução  espanhola, editada pelo Fundo de Cultura Econômica, sob o título “Aristóteles – Apresentação e Interpretação de seu Pensamento”. Comprei-o em livraria próxima ao Zocalo e só mais tarde me aperceberia que do meu exemplar faltava um fascículo, justamente no capítulo relativo à Poética. A solução encontrada – a transmissão por fac-simile das páginas faltantes – se me atendeu a carência momentânea, não semelhava satisfatória no longo prazo. Afinal, continuava incompleto o volume, pois as folhas do fax mais pareciam um remendo, de resto destinado a apagar-se com o tempo. Encomendei, por isso, a edição original alemã – o classicista sueco, desejando partilhar a sua sapiência com um público mais largo, preferira escrevê-lo na língua de I.Bekker e H. Bonitz.

        Dessarte, às minhas leituras filosóficas agreguei o estudo sistemático e diário da Grammaire Grecque, de E.Ragon, na sua edição de 1956. Se a folha de rostro deste manual de 282 páginas registra a data de onze de maio de 2001, portanto já no Rio de Janeiro, no extenso período de inatividade diplomática a que me consignara o então encarregado do Itamaraty, na verdade este volume se transformou no meu quase breviário. Qualquer data que aí figure será enganosa, pois jamais deixou de estar à minha cabeceira, como a minha própria agenda o demonstra.

        Na frase de Mao Zedong -  ou será provérbio chinês ? – a longa marcha começa com um passo. Decerto, assim foi no árduo aprendizado do grego clássico. A princípio, quiçá temeroso de repetir a veleidade parisiense, o encetei em silêncio.  Não o alardeei a quem quer que seja – mesmo com Ana Maria, cuja proximidade impedia desconhecê-lo, as eventuais menções observariam a diretiva da reserva, como se já tivesse internalizada a homérica ákäþò[2].

        Ragon foi o meu guia cotidiano na lenta e dificultosa escalada de montanha que, por vezes, de tão íngreme se me afigurava ínvia e inacessível. Escolhida a vertente do autodidatismo, se tinha a clara noção de que me constituíra como o solitário juiz da empreitada, não me escapavam os obstáculos, as inúmeras pedras no meio do caminho, a que a solidão do esforço gnoseológico me condenava. Tampouco ignorava a carga adicional do início tardio, dos neurônios perdidos em décadas transatas, e, por conseguinte, de não mais dispor da memória dos verdes anos.

        Foram momentos, dias e meses difíceis – especialmente aqueles transcorridos na repentina Limoges em que o Itamaraty me havia transformado o Rio de Janeiro – mas ao invés de amarguras e lamúrias, busquei arrimo na empresa para muitos incompreensível. Na apreensão por vezes monótona e fatigante, encontrei o cajado que me ajudaria a manter a autoconfiança e o sentido da travessia.

        Do teu etéreo assento estás a ouvir confidências nunca antes ouvidas. De resto, é mister não confundir as estações. A Guatemala, tão bela na sua diversidade, foi tempo de semeadura. E se as manhãs no parque da embaixada me mostraram a largueza dos horizontes, para deles acercar-me careci da tua mente lúcida, experiente e ilustrada.

        As páginas da maior autoridade em Aristóteles da segunda metade do século XX foram a porta de um mundo até então para mim defeso. E dentre tantas sugestões e conselhos, nessa jornada de estudo da obra e da vida de quem, algo ironicamente segundo os costumes do tempo, Platão cognominaria o Leitor, tal momento ousaria defini-lo com um turning point[3]. E a quem, meu caro Pedro, senão a ti eu devo esta hora e vez ?

        Perlustrar o alentado volume de Düring me familiarizou com muitos especialistas na matéria. A respeito, longe de mim cansar-te com incontáveis citações, logo a quem adquiriu e leu cada um desses autores do século passado ou mesmo da virada dos séculos XIX e XX. Mencionemos apenas von Wilamowitz (cujos esgotados livros debalde persigo), H. Cherniss, W. Jaeger (apesar do viés pró-platônico), F.Nuyens e P.Moraux. Por teu intermédio, Düring não só me apresentaria essas visões complementares e por vezes antagônicas, senão me proporcionaria a oportunidade de relacionar todo o corpus aristotelicum que já lera com a própria apreciação, sua contextualização de acordo com os estudos até a metade dos anos sessenta, e a respectiva interpretação da formação e da evolução doutrinária do Estagirita, máxime no que tange ao mestre Platão e, em particular, à sua teoria das ideias.

        Recordo-me de uma passagem pelo Rio nesses anos guatemaltecos. Não sei se almoçamos no Bar Monteiro ou em algum outro restaurante similar. Atravessavas na época período que eu chamaria de ‘Roberto Marinho’. Por dá cá aquela palha, invectivavas contra o proprietário das Organizações Globo, a quem transferias boa parte da culpa e das mazelas éticas da república. A coisa chegou a tal ponto em que, apesar de não morrer de amores pelo referido senhor, não logrei sopitar a minha discordância com a manifesta singularização da tua raiva em tal personagem.

        Procurei mostrar que deveríamos explorar as causas da crise e não nos perdermos em epifenômenos, como acreditava fosse o caso. E, então, acrescentei qualificação que me apena relembrar. Disse que via nessa atitude conotação pequeno-burguesa, que não fazia justiça ao teu intelecto.

       Suportaste o golpe com elegância. Não manifestarias, de pronto, desagrado, embora mais tarde traísses a marca deixada pela pecha com um que outro dito acerbo. Nesse contexto incluo a retórica pergunta, ao tomar ciência dos meus estudos de grego clássico:

       “Mas Mauro, pensas realmente nessa altura em te tornar um humanista ?”

        Preferi não replicar à descrença implícita na tua frase, que mais me pareceu um desabafo. Primeiro, por ser do meu feitio responder com o silêncio a tal gênero de observação. E, segundo, porque não via proveito em acirrar mais o ambiente.

       Estava certo. O teu temperamento generoso, infenso ao ressentimento, não tardaria em relevar o epíteto. E, não obstante, para qualquer coisa serviria. Nos encontros vindouros, as diatribes contra o patriarca das organizações Globo não teriam mais a ênfase passada.Talvez a mordacidade da expressão, desvelando alguma verdade, haverá pesado no teu ânimo e contribuído para que dele redimensionasses a respectiva relevância. 

        Ainda desses tempos, cabe aditar certos aspectos que foram surgindo, e que se relacionam com as nossas conversas. Nem sempre as reuniões se resumiam à trinca Pedro, Rezende e Mauro. Às vezes, compareciam outros parceiros, que eram por ti saudados com a costumeira efusão. Recordo-me de dois: do teu antigo chefe Areias Neto, que já não estava bem de saúde, e viria a falecer pouco depois; e de um segundo, cujo nome de origem italiana me esqueceu. Devia ser companheiro de juventude da dupla, pois tanto Pedro, quanto Rezende mostravam muita condescendência com as suas atitudes amiúde inconvenientes. Cientes das fraquezas do personagem, ambos cuidaram de advertir-me contra possíveis pedidos de ajuda financeira, com que costumava tentar achacar os incautos. E não é que a tentativa de facada ocorreria ? Ao ouvir o tipo desfiar uma triste estória, me foi menos difícil desvencilhar-me das instâncias do pedinchão.

        Esses participantes extemporâneos nada traziam em termos de contribuição intelectual para as conversas do Bar Monteiro. Não compreendia, por isso, a satisfação que a sua presença provocava na dupla, eis que, por terem o interesse voltado para domínios mais corriqueiros, representavam, no mínimo, um estorvo para que outros tópicos fossem versados.

         Há um terceiro partícipe nesses almoços. Sérgio Paulo Rouanet, colega de turma de Pedro, com quem nunca cruzei. Da nossa relação com esse personagem, tratarei alhures. Basta aqui dizer que terá aparecido em uma ou duas ocasiões. 

        Na década de noventa, os colóquios obedeciam ao seguinte ritual. De passagem pelo Rio, por telegrama te propunha uma ou duas datas para o compromisso. Cuidavas de avisar o Rezende, e o ponto de encontro era o sebo da rua do Carmo. Costumava chegar primeiro, às vezes adentrando o chamado Sebão bem antes da hora aprazada. Em geral, Rezende aparecia em segundo lugar, com o habitual boné, camisa de listas horizontais e a bermuda. Por último, vinhas tu, carregando as bolsas da Leonardo da Vinci, onde levavas as encomendas coletadas naquela livraria, assim como os xerox que nos trazias, e alguma eventual aquisição na Saraiva ou até na Loyola, esta aninhada em duas salas do décimo-sétimo andar do edifício Sisal na avenida Presidente Vargas. Retardatário, agias como se dispusesses ainda de larga parcela de tempo. Percorrias, com olhar minudente, as prateleiras e as mesas que atulhavam o velho e decrépito casarão. Naqueles anos, as pesquisas – ou garimpos, como as designávamos – podiam produzir livros de certa valia. Henrique, que era o nosso atendente, nos dava bons descontos, em preços já convidativos.

       Vale dizer, a propósito, que, com o avanço dos anos, iriamos para o Sebão com o temor de não mais encontrá-lo. Esta sina que, de resto, não é privativa das livrarias do Rio de Janeiro, acabaria por confirmar-se. O senhorio, desejoso de aluguel mais alto, lograria enxotar a cooperativa de empregados dali, para um obscuro refúgio em acanhada loja na Primeiro de Março.

       Retornemos, entretanto, à liturgia dos colóquios. Afinal, conseguiria arrastar ‘os meninos’ para o Bar Monteiro, em uma rua da Quitanda sempre mais visitada por odores de fossa. A refeição, servida por simpáticas garçonetes, se cingia à carne assada em fatias, e a pão, também cortado. Pedro e Rezende comiam igualmente maionese de batata, que eu, com as minhas precauções, há muito refugara. Consumíamos dois e até três chopes (o terceiro, de hábito, era partilhado), que acompanhávamos com uma caipirinha. Mais tarde, eu aboliria a caipirinha. Rezende não se contentava com essas doses, a que acrescentava um cálice de Ipioca, uma cachaça amarelada, de que Pedro acedia em sorver um gole.

       Não sei se concordarás comigo, porém aquelas conversas, inda que no calor de ambiente não-refrigerado, possuíam uma desenvoltura e encanto, eu diria mesmo magia, que não mais entreveria na virada do século. Mudara o Natal ou mudáramos nós ? Francamente, não sei. O diálogo fluía, os assuntos repontavam, e a impressão de que ali tratávamos de coisas do espírito, temas relevantes e gratificantes, me ficava muito empós de concluído o encontro marcado. E pairava a lembrança na memória, a ponto de prelibar a vinda de nova oportunidade de discutirmos de tudo um pouco, mas sobretudo de filosofia e de Aristóteles.

      Pedro, eras sem dúvida o maestro daquele desengonçado terceto, em que o setentão Rezende se mantinha em surdina, malgrado interviesse de quando em vez; a mim, cabia então fazer os questionamentos, ensaiar um que outro motivo; e a ti, organizar a discussão, harmonizar as vozes dissonantes, apontar uma direção.

      No limiar das três horas, a trinca se dirigia para o botequim do Terminal Menezes Cortes, onde Pedro, que lá soía chegar à frente, encomendava os três cafezinhos. Não nos demorávamos demasiado, pois te preocupava o horário do ônibus para Petrópolis. Mais um dedo de prosa e soava a hora de mostrar o bilhete ao empregado da viação. Sentavas na dianteira do pullman, na primeira poltrona da janela à direita. E dali, com os teus gestos largos, te despedias dos companheiros de tertúlia.

      Desfeito o elo, Rezende e eu descíamos para a calçada vizinha à praça que margeia a Nilo Peçanha, para separarmo-nos, um rumo às barcas de Niterói, e outro, em direção a um hotel ou residence em Ipanema.   

       Na sexta-feira, dezenove de maio último, a minha viagem de ônibus para Petrópolis começaria na Rodoviária. Em tudo o mais, todavia, não há de ter diferido muito da rotina dos teus percursos. Se pensei que seria mais longa, partilhei do receio que sentias do assalto, essa ocorrência a que se acha exposta, com crescente incidência, a gente honesta que carece do transporte público. Felizmente, nada aconteceu, e então me lembrei do roubo que sofreste em um desses trajetos. E quedou a pergunta se a companhia da ansiedade, com os seus temores e desgastes, não te seria pior do que a própria consumação da violência.

       Com o apreço de sempre e a saudade que cresce como erva daninha,

 

                                                *           *

                                              




[1] notas de classe
[2] Discrição, reserva.
[3] Passagem determinante

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