quinta-feira, 16 de maio de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (IV)


 
                                                      I V 

 

         Meu estimado Pedro, Amigo e Mestre,

 

         desta feita, o prólogo será breve. Na sexta-feira, me telefonou de Miami a funcionária Luzia (z). Boas novas. Dessarte, vencemos uma etapa, na longa marcha da regularização da situação de Thérèse. Se não vai tão depressa quanto outros, vamos torcer – termo próprio dos esportes de cujas emoções sabiamente te poupaste para ocupações mais profícuas – para que em breve as contemplemos com a serenidade das cousas resolvidas.

        Não tenciono, porém, entediar-te com tais formalidades terrenas, que, a despeito de senhoras de gordas parcelas de tempo, de satisfações só nos legam o efêmero sentimento que os gregos definiam ½ä˜ óùèÝíôá ìåìíyóèáé ðüíùí.[1]  

        Quero estender-me em outro gênero de questão, a não adumbrar nem sombra de queixa ou mal-humorado ressaibo, nem vã melancolia diante da indiferença dos deuses imortais.

        Desejo falar da minha dívida para contigo. Não é obrigação que se possa contabilizar em livros de amanuenses, ou em letras promissórias de infindável crediário. Tampouco contar-se em áureas moedas ou verdes maços.  Reporto-me a valores não-quantificáveis, que transcendem às humanas flutuações das bolsas e à pertinaz usura dos bancos. Na verdade, é um dever que em haver se transforma, e que se nada tem a ver com a mesquinhez das cobranças e das inadimplências, mais firme resulta do que o palpável produto do trabalho material.

         Pedro, pela afabilidade e coerência, mas sobretudo pelo exemplo do estudo e na perene disposição de compartilhar as aras do saber, tu me confirmaste no amor do livro não como objeto de entesouramento, porém pródiga caixa para sempre dedicada a conter, aspergir e disseminar o conhecimento.

        Quando adentrei o quarto da pensão no Catete que havias transformado na tua proto-biblioteca, o que, a princípio, me impressionou não foram as tuas palavras, posto que desinteressadas e honestas. Na jovem memória do estudante candidato ao Rio Branco, não permanecem de pé as paredes do velho sobrado que decerto não mais existe; ficaram sim as estantes já atopetadas de livros, não a encarar-me com a soberba de armários envidraçados, a exibirem lombadas coloridas de couro bem-encerado, mas a oferecer-se, com generosa simplicidade, para o recém-vindo que aspirasse ingressar em um mundo diferente, em que o saber fosse cultivado não enquanto estéril criatura das repetições escolásticas, mas como senda sinuosa a embrenhar-se nos bosques acadêmicos, que acolhem a palavra, tanto falada quanto escrita, como vetor de noções, descrições, ideias, interrogações, aporias, hipóteses, interpretações, teorias, sistemas, entendimento e – quiçá entre as folhagens – a visão fugaz de ave tão bela quanto esquiva, emplumada com as diáfanas e profusa cores do saber.

         Por detrás de larga mesa, com incontáveis papéis e pilhas de tomos, Pedro não me recebia com a arrogância de catedrático encastelado em privilegiada sinecura. Com gestos amplos, a cabeça reclinada junto a prateleiras de que o conhecimento semelhava fluir, o novel diplomata não se espadanava em posições e prerrogativas adquiridas. De um certo modo, ainda o vejo participar da paisagem que soubera formar, com afinco, desvelo e sacrifício, nas longas visitas às livrarias e sebos daquele tempo, mais propícias e numerosas, em espaços menos confinados, ainda a salvo das leis de um mercado que as faria desaparecer quase todas.

        Breve, sem dúvida, é a lembrança. Contudo, não é fugidia, pois a tenho aferrada, surpreendente porta que deixaria entreaberta por um punhado de anos, até que revisse no tarmac do aeroporto de São Francisco de Quito, em hora para mim difícil, eivada de inquietudes e passados aborrecimentos. Por instantes, não soube ler o teu júbilo, que interpretei apressadamente como alimentado de minha suposta desdita. O futuro me ensinaria que não  reencontrava o diplomata e eventual chefete, mas o colega amável e discreto mestre.

       O convívio na pequena chancelaria da embaixada, uma casinhola nos fundos da residência, em que somente o Embaixador, Pedro e o Adido Militar dispunham de salas individuais, se foi desenvolvendo e estreitando com o passar dos meses. Como diplomata mais moderno eu dividia uma saleta com o Oficial de Chancelaria Oldemar Murtinho, um tipo casmurro que, filho de Embaixador, parecia carregar complexo com a circunstância de ser funcionário administrativo. Junto à entrada, havia um cubículo, denominado de ‘sala de comunicações’, onde, igualmente por ser o júnior, me cabia criptografar os telegramas na maquineta. Depois, era colar as fitas nas folhas da Western Union e mandar entregá-las no correio para a expedição. O telex, que já aparecera em alguns postos, tardaria em ser enviado para as missões menores. A minha faina como criptógrafo pesava um pouco mais pela obrigação de pôr em cifra as frases ocas e os floreios fantasiosos do Embaixador Haddock Lobo. Muita vez, cansado em transcrever auto-elogios, chegava até em pensar no corte da inútil gordura nessas comunicações, hipótese em que grafaria apenas o teor básico da mensagem. Ao cabo, preferia ater-me ao manuscrito, pois essa labuta ainda me seria menor do que tentar melhorar um texto ruim.

       Dessarte, quando o expediente m’o permitia, ia até a tua sala, à direita do corredor, a alguns passos do cômodo em que batia à máquina, deixando transcorrer as jornadas sem trocar palavra sequer com quem dividia a acanhada dependência. Entrar nos domínios do colega mais velho era ser introduzido em cenário menos sensaborão, onde sempre havia algo de novo a esperar-me, como, por exemplo, o último livro da Bookmailer que o contínuo Flores, um sexagenário encarquilhado, acabara de trazer do correio. Eram as esquálidas dependências postais – que visitamos um dia, tangidos pela tua suspeita de que prelibadas obras lá jazessem esquecidas – o poço de surpresas de onde vinham, sob os consideráveis atrasos com que a cultura de além-mar afinal aparecia, para ser folheada pelas mão sôfregas de quem a encomendara, e quase desesperava de recebê-la um dia, nas plácidas e verdejantes lonjuras daquele fim de mundo.

       Rasgavas o invólucro postal com a ansiedade de criança a dilacerar os papéis coloridos do presente de natal. Denotavas alegria quase sensual no afã de descobrir a dádiva que se escondia debaixo  do papel pardo dos envelopes da Bookmailer ou do papelão da E.J.Brill, Beijers ou Blackwell’s. Não te pejavas em manifestar o agrado e a expectativa que o volume oculto te prometia. Cedo me daria conta desta tua ligação com o livro, não como expressão de consumismo de mero bibliófilo ou de passageira afeição por simples novidade.  Muito mais havia nos longos aguardos, nas quase sofridas esperas, para que a ordem das teclas nervosas, com a cópia de papel carbono, enfim te trouxesse a obra colimada, que versaria aspecto ainda não suficientemente tratado. Entre aquele jovem quarentão, nem baixo, nem alto, robusto sem ser corpulento, existia um secreto liame com tomos encadernados, brochuras e o que impresso fosse, que de muito transcendia os vezos do colecionador.

        Por volta desse tempo, as tuas aquisições livrescas as fundamentavas sob largo projeto de história das origens do direito penal. Dessa premissa se abria um vasto leque de disciplinas, que se relacionavam com o tema que pretendias versar: paleontologia, história, antropologia, sociologia, o próprio direito, geografia humana, filosofia... Estudavas línguas mortas, como o acadiano em que se redigira o Código de Hammurabi, e nessa época te interessavas especialmente pela terra de Sumer e Akkad, um dos berços da civilização.

       A tua ânsia de saber por vezes te levava a alçar demasiado a expectativa em termos de capacidade de compreensão do texto adquirido. Estava contigo quando te chegou um pacote que trazia obra de autor muito citado, havido como autoridade na história da antiga mesopotâmia. Seu nome era Klim. Estranhou-me o teu ar descorçoado, depois de folhear as páginas de rosto e o prefácio. “Pedro, o que está havendo ?  Não é o livro que pediste ?” “É, sim !” “E, então, qual o problema ?”

       Com o semblante entre alheado e pensativo, respondeu, enquanto pousava o volume sobre a escrivaninha: “Está escrito em tcheco e não entendo nada...”

        No afã de informar-se junto aos melhores autores, acreditaras que com as suas noções de russo poderias ler o compêndio vazado em língua a que jamais tiveras acesso.

        Desse episódio, que não te provocou outra reação senão leve sorriso traquinas de menino colhido em alguma estripulia, me veio o hábito de chamar-te ‘o homem que sabia javanês’. Achaste graça com a analogia entre o personagem de Lima Barreto e a ti próprio. Se para ti era divertida a símile, hoje entendo plenamente a tua atitude. Fora simples percalço na tua diuturna busca do conhecimento, e como tal deveria ser visto. Quem se esforça por aprimorar-se terá a companhia ineludível do erro. Se risível acidente de percurso, ou intimidante obstáculo, dependerá da têmpera de cada um.

       Acostumada a ver Pedro entrar no apartamento sobraçando novos e pesados tomos, de quando em quando Thérèse ensaiava um reclamo, cujo teor não se me afigura difícil intuir: “Estás gastando demais com esses livros...” Para amortecer as queixas da consorte, importavas também volumes da Pléiade, os guardavas em armário da chancelaria, de onde os retiravas, aos poucos e em momentos oportunos, para encantar a esposa e fazê-la esquecer as exortações à economia, enquanto outros compêndios apareciam nas prateleiras.

       Que não te confundam com filisteu se chamavas, meio jocosamente, de ‘demagogias culturais’ os bem-encadernados volumes em papel bíblia da Pléiade, com que Thérèse se deliciava. Na verdade, se respeitavas a literatura, já te havias estabelecido ordem de prioridades. Sabias que, sem embargo da tua disposição para a leitura, limitado é o tempo que nos assignam as Parcas. Cumpria, pois, dedicá-lo àquelas matérias e disciplinas para as quais te sentias mais preparado. Com a tua vocação de scholar, de homem voltado para as ciências humanas, consideravas válidas outras opções, sem, no entanto, desviar-te da rota prefixada.

        Ao assinalar-te a ‘disposição para a leitura’, franzo o sobrecenho. A expressão me parece chocha e não traduz a ênfase, o quase arrebatamento da tua devoção à palavra escrita. Lá, nas montanhas quitenhas, no bucólico isolamento que então caracterizava aquele posto, quando os países sul-americanos se davam as costas, tive a fortuna de deparar com um verdadeiro intelectual, que se imergia nos livros sem descurar da realidade circunstante, de que lhe cabia, dada a mediocridade do chefe, informar a distante Secretaria de Estado.

        Desde cedo, ainda no clássico do Mello e Souza, começara eu a formar pequena  biblioteca, com volumes da Garnier, uns poucos da Pléiade e pocket-books de literatura inglesa e americana. Nos anos cinquenta, malgrado a inflação, o câmbio se mantinha acessível, mesmo para quem dispunha de exíguos meios.

        Quando passei no vestibular da Faculdade Nacional de Direito e cursei o primeiro ano em 1956, trabalhando como extranumerário na Comissão Permanente da Revendo do Material, do Ministério da Agricultura, aproveitava a hora do almoço para visitar as livrarias do centro. Além da Freitas Bastos, no Largo da Carioca, junto do antigo Tabuleiro da Baiana (ponto terminal de bondes), existia a Civilização Brasileira, na Sete de Setembro. Ambas exibiam ricos acervos, sendo que todo o espaçoso segundo andar da Civilização era reservado à literatura francesa. Na Ouvidor, próxima da esquina de Rio Branco, do lado esquerdo, estava a mais acanhada, porém prestigiosa José Olympio. Do outro lado, à direita, a meio caminho da Gonçalves Dias, se achava a Garnier, em que se reuniam, no passado, tantos expoentes literários. Já na rua do Rosario se situava a Kosmos, especializada em literatura germânica.

        Nunca discorremos especificamente sobre esse aspecto. O tardo florescimento que tive a oportunidade de vivenciar, só surgiria em nossas conversas como contraponto à decadência do centro e ao definhar das grandes livrarias, produto das transformações urbanísticas e da repressão da ditadura militar. A partir dos anos oitenta, restávam-nos a Leonardo da Vinci, sob a férula de dona Vanna, o declinante sebo da rua do Carmo, e mais para os anos noventa, a promissora Livraria da Travessa. Sobre as demais, como a antiga Acadêmica, na rua Miguel Couto, pairava a sombra pressaga dos magros estoques.

       E, não obstante, certamente as minhas caminhadas repetiam as tuas, se agregarmos a qualificação de quão mais amplo seria a ðåñßïäïò[2] tua, estendendo-se sinuosa pelos inúmeros sebos, e outras recônditas livrarias, como a das Edições Loyola, que me apresentarias mais tarde, nas alturas do edifício Sisal da Presidente Vargas.

        Voltemos, contudo, aos escassos, se bem que proveitosos, meses de meu estágio em Quito. Se lá te demoraste dezessete anos, e tantos colegas terão privado da tua companhia, coube a mim – e o digo com a singeleza dos fatos chancelados pelo tempo – efêmero cometa na prússica abóboda quitenha, colher o prêmio da tua amizade, arrimada nas afinidades eletivas do intelecto, e alinhavada com a beneditina perseverança das trocas epistolares, salpicadas, aqui e ali, com os rituais e aleatórios encontros do bar Monteiro e adjacências.

        Se tínhamos, pois, interesses comuns, se já dispunha de incipiente biblioteca, não seria eu terra sáfara que enjeitasse  a tua palavra e exemplo. A modesta, encolhida chancelaria, ao invés das pobrezas burocráticas, seria para mim a óôïÜ[3] clássica, onde tu me abririas espaços antes ignotos, caminhos desconhecidos, distinções necessárias, mas até então mal apreendidas. Sem jactâncias, sem formalidades e subserviência, surgiam mestre e discípulo. Proscritas as mesuras acadêmicas, as horas acaso vadias do expediente passavam, com indicações de livrarias na Holanda, Inglaterra, Alemanha e França, aonde poderia encomendar obras sobre temas históricos, que então me interessavam. Nesse sentido, me ajudavas a fazer a triagem dos autores, a par de sinalizar-me um que outro livro introdutório ao estudo da filosofia. A tal respeito, ao referir-te aos ensaios de Camus, cuidaste de redimensionar-lhe a importância, frisando que os seus escritos pertenciam ao ensaísmo e não à filosofia. Em outras palavras, não possuíam o valor conceitual que eu lhes atribuía.

        Inexistia o propósito de desenvolver tópicos determinados. Repontavam os comentários em função de questões do dia, ou de expectativa da chegada próxima de algum livro relevante há muito ordenado. Por vezes, folheando um volume recém-vindo, me mostravas como ver as notas de pé de página, a bibliografia, e a estruturação das matérias, maneira expedita de verificar da seriedade da pesquisa e da amplitude da leitura que o precedera. Eras minerador exímio na procura das fontes, que te poderiam ser úteis para ulteriores estudos.

       Generoso nas indicações de títulos, nos conselhos de autores a merecerem especial atenção, sempre pronto a dirimir eventuais dúvidas, a corrigir, sem titubeios, mas tampouco sem rispidez, tinhas evidente prazer em partilhar o teu conhecimento ou os métodos para tanto imprescindíveis.

       À tua mão aberta para disseminar o saber, não correspondia, entretanto, igual inclinação em dar livros. De ti, só recebi dois livros bastante finos, impressos na Inglaterra, em papel da Segunda Guerra Mundial.

       Que dizer de emprestar ? Jamais colhi aceno de que me cederias por empréstimo algum volume. Decerto, davas todas as referências, em que livraria teria mais chance de encontrá-lo, e até mesmo, no caso dos leilões da Beijers, aconselharias que vulto de lance fazer, e que margem deixar ao leiloeiro, se grande fosse o meu interesse. Nada sonegar ao aprendiz, em termos de elementos, endereços, a par de apreciação do valor e da atualidade da obra que pretendia adquirir.

       Essa característica tua eu a assinalo sem a mais leve censura. Não há atalhos na marcha infinda em busca do saber. Ao encetá-la, nos armamos da socrática certeza de que não a completaremos nunca. Só os estultos têm certezas inabaláveis. Por isso, cada neófito deverá, com pertinácia de Sísifo, refazer o caminho de outrem, valendo-se dos próprios meios. Incumbe ao mestre colocar perguntas, sugerir alternativas, ressuscitar dúvidas, assinalar fatos e ferramentas para ir adiante. Por isso, não pensa em substituir-se ao discípulo.

       Como não te é facultado transmitir ao iniciando o conjunto de ideias associado à determinada obra, daí se segue a necessidade de que a adquira, não pela posse material, mas para que, em refazendo a trilha do mestre, alcance as próprias conclusões e cresça a sua aptitude de escolher novas sendas.

      Parafraseando o verso de Vinício de Moraes, que seja eterno enquanto dure o teu possessivo amor ao livro. Que importa, meu caro Amigo, se a tua luta obstinada e sem quartel não tem outra perspectiva senão a do fim abrupto e inelutável ? Viveste de, por e para os livros. A eles, consagraste a existência.

      E a essas estantes infindas, de que – estejas tranquilo – nenhuma internet ou novo sistema de informática logrará ocupar o espaço, não legaste apenas as prateleiras que se comprimem no anexo encimado pelo dístico Humanitas. Em boa hora, trocaste o ambicioso tratado das origens do direito penal por monografia sobre uma frase aristotélica aparentemente sem sentido. Depois das décadas votadas ao direito penal, por  cerca de quinze anos, estudaste, pesquisaste, estruturaste e, enfim, escreveste – nas teclas gastas, cansadas, obsoletas, inimitáveis e inesquecíveis da tua velha Olivetti – mais um livro, a somar àqueles que alimentam as insaciáveis bibliotecas. Todavia, à maneira do Filósofo que tanto leste e admiraste, será matéria a tratar em outro local.

      Creia-me, ilustre e preclaro Amigo, que funda sinto a falta do Mestre de sempre,

 

                                                    *         *

 




[1] Quão agradável uma vez salvos recordar-se dos trabalhos havidos.
[2] itinerário
[3] pórtico
(z) pseudônimo.

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