I V
Meu estimado Pedro, Amigo e Mestre,
desta feita, o
prólogo será breve. Na sexta-feira, me telefonou de Miami a funcionária Luzia (z). Boas novas.
Dessarte, vencemos uma etapa, na longa marcha da
regularização da situação de Thérèse. Se não vai tão depressa quanto outros,
vamos torcer – termo próprio dos esportes de cujas emoções sabiamente te poupaste
para ocupações mais profícuas – para que em breve as contemplemos com a
serenidade das cousas resolvidas.
Não tenciono, porém, entediar-te com
tais formalidades terrenas, que, a despeito de senhoras de gordas parcelas de
tempo, de satisfações só nos legam o efêmero sentimento que os gregos definiam ½ä óùèÝíôá ìåìíyóèáé ðüíùí.[1]
Quero estender-me em
outro gênero de questão, a não adumbrar nem sombra de queixa ou mal-humorado
ressaibo, nem vã melancolia diante da indiferença dos deuses imortais.
Desejo falar da minha dívida para
contigo. Não é obrigação que se possa contabilizar em livros de amanuenses, ou
em letras promissórias de infindável crediário. Tampouco contar-se em áureas
moedas ou verdes maços. Reporto-me a
valores não-quantificáveis, que transcendem às humanas flutuações das bolsas e
à pertinaz usura dos bancos. Na verdade, é um dever que em haver se transforma,
e que se nada tem a ver com a mesquinhez das cobranças e das inadimplências,
mais firme resulta do que o palpável produto do trabalho material.
Pedro, pela afabilidade e coerência,
mas sobretudo pelo exemplo do estudo e na perene disposição de compartilhar as
aras do saber, tu me confirmaste no amor do livro não como objeto de
entesouramento, porém pródiga caixa para sempre dedicada a conter, aspergir e
disseminar o conhecimento.
Quando adentrei o quarto da pensão no
Catete que havias transformado na tua proto-biblioteca, o que, a princípio, me
impressionou não foram as tuas palavras, posto que desinteressadas e honestas.
Na jovem memória do estudante candidato ao Rio Branco, não permanecem de pé as
paredes do velho sobrado que decerto não mais existe; ficaram sim as estantes
já atopetadas de livros, não a encarar-me com a soberba de armários envidraçados,
a exibirem lombadas coloridas de couro bem-encerado, mas a oferecer-se, com
generosa simplicidade, para o recém-vindo que aspirasse ingressar em um mundo
diferente, em que o saber fosse cultivado não enquanto estéril criatura das
repetições escolásticas, mas como senda sinuosa a embrenhar-se nos bosques
acadêmicos, que acolhem a palavra, tanto falada quanto escrita, como vetor de
noções, descrições, ideias, interrogações, aporias, hipóteses, interpretações,
teorias, sistemas, entendimento e – quiçá entre as folhagens – a visão fugaz de
ave tão bela quanto esquiva, emplumada com as diáfanas e profusa cores do
saber.
Por detrás de larga mesa, com
incontáveis papéis e pilhas de tomos, Pedro não me recebia com a arrogância de
catedrático encastelado em privilegiada sinecura. Com gestos amplos, a cabeça
reclinada junto a prateleiras de que o conhecimento semelhava fluir, o novel
diplomata não se espadanava em posições e prerrogativas adquiridas. De um certo
modo, ainda o vejo participar da paisagem que soubera formar, com afinco,
desvelo e sacrifício, nas longas visitas às livrarias e sebos daquele tempo,
mais propícias e numerosas, em espaços menos confinados, ainda a salvo das leis
de um mercado que as faria desaparecer quase todas.
Breve, sem dúvida, é a lembrança.
Contudo, não é fugidia, pois a tenho aferrada, surpreendente porta que deixaria
entreaberta por um punhado de anos, até que revisse no tarmac do aeroporto de São Francisco de Quito, em hora para mim
difícil, eivada de inquietudes e passados aborrecimentos. Por instantes, não
soube ler o teu júbilo, que interpretei apressadamente como alimentado de minha
suposta desdita. O futuro me ensinaria que não
reencontrava o diplomata e eventual chefete, mas o colega amável e
discreto mestre.
O convívio na pequena chancelaria da
embaixada, uma casinhola nos fundos da residência, em que somente o Embaixador,
Pedro e o Adido Militar dispunham de salas individuais, se foi desenvolvendo e
estreitando com o passar dos meses. Como diplomata mais moderno eu dividia uma
saleta com o Oficial de Chancelaria Oldemar Murtinho, um tipo casmurro que,
filho de Embaixador, parecia carregar complexo com a circunstância de ser funcionário administrativo.
Junto à entrada, havia um cubículo, denominado de ‘sala de comunicações’, onde,
igualmente por ser o júnior, me cabia criptografar os telegramas na maquineta.
Depois,
era colar as fitas nas folhas da Western
Union e mandar entregá-las no correio para a expedição. O telex, que já
aparecera em alguns postos, tardaria em ser enviado para as missões menores. A
minha faina como criptógrafo pesava um pouco mais pela obrigação de pôr em
cifra as frases ocas e os floreios fantasiosos do Embaixador Haddock Lobo.
Muita vez, cansado em transcrever auto-elogios, chegava até em
pensar no corte da inútil gordura nessas comunicações, hipótese em que grafaria
apenas o teor básico da mensagem. Ao cabo, preferia ater-me ao manuscrito, pois
essa labuta ainda me seria menor do que tentar melhorar um texto ruim.
Dessarte, quando o expediente m’o
permitia, ia até a tua sala, à direita do corredor, a alguns passos do cômodo
em que batia à máquina, deixando transcorrer as jornadas sem trocar palavra
sequer com quem dividia a acanhada dependência. Entrar nos domínios do colega
mais velho era ser introduzido em cenário menos sensaborão, onde sempre havia
algo de novo a esperar-me, como, por exemplo, o último livro da Bookmailer que o contínuo Flores, um
sexagenário encarquilhado, acabara de trazer do correio. Eram as esquálidas
dependências postais – que visitamos um dia, tangidos pela tua suspeita de que
prelibadas obras lá jazessem esquecidas – o poço de surpresas de onde vinham,
sob os consideráveis atrasos com que a cultura de além-mar afinal aparecia,
para ser folheada pelas mão sôfregas de quem a encomendara, e quase desesperava
de recebê-la um dia, nas plácidas e verdejantes lonjuras daquele fim de mundo.
Rasgavas o invólucro postal com a
ansiedade de criança a dilacerar os papéis coloridos do presente de natal.
Denotavas alegria quase sensual no afã de descobrir a dádiva que se escondia
debaixo do papel pardo dos envelopes da Bookmailer ou do papelão da E.J.Brill, Beijers ou Blackwell’s.
Não te pejavas em manifestar o agrado e a expectativa que o volume oculto te
prometia. Cedo me daria conta desta tua ligação com o livro, não como expressão
de consumismo de mero bibliófilo ou de passageira afeição por simples
novidade. Muito mais havia nos longos
aguardos, nas quase sofridas esperas, para que a ordem das teclas nervosas, com
a cópia de papel carbono, enfim te trouxesse a obra colimada, que versaria
aspecto ainda não suficientemente tratado. Entre aquele jovem quarentão, nem
baixo, nem alto, robusto sem ser corpulento, existia um secreto liame com tomos
encadernados, brochuras e o que impresso fosse, que de muito transcendia os
vezos do colecionador.
Por volta desse tempo, as tuas
aquisições livrescas as fundamentavas sob largo projeto de história das origens
do direito penal. Dessa premissa se abria um vasto leque de disciplinas, que se
relacionavam com o tema que pretendias versar: paleontologia, história,
antropologia, sociologia, o próprio direito, geografia humana, filosofia...
Estudavas línguas mortas, como o acadiano em que se redigira o Código de
Hammurabi, e nessa época te interessavas especialmente pela terra de Sumer e
Akkad, um dos berços da civilização.
A tua ânsia de saber por vezes te levava
a alçar demasiado a expectativa em termos de capacidade de compreensão do texto
adquirido. Estava contigo quando te chegou um pacote que trazia obra de autor
muito citado, havido como autoridade na história da antiga mesopotâmia. Seu
nome era Klim. Estranhou-me o teu ar descorçoado, depois de folhear as páginas
de rosto e o prefácio. “Pedro, o que está havendo ? Não é o livro que pediste ?” “É, sim !” “E,
então, qual o problema ?”
Com o semblante entre alheado e
pensativo, respondeu, enquanto pousava o volume sobre a escrivaninha: “Está
escrito em tcheco e não entendo nada...”
No afã de informar-se junto aos
melhores autores, acreditaras que com as suas noções de russo poderias ler o
compêndio vazado em língua a que jamais tiveras acesso.
Desse episódio, que não te provocou
outra reação senão leve sorriso traquinas de menino colhido em alguma
estripulia, me veio o hábito de chamar-te ‘o homem que sabia javanês’. Achaste
graça com a analogia entre o personagem de Lima Barreto e a ti próprio. Se para
ti era divertida a símile, hoje entendo plenamente a tua atitude. Fora simples
percalço na tua diuturna busca do conhecimento, e como tal deveria ser visto.
Quem se esforça por aprimorar-se terá a companhia ineludível do erro. Se
risível acidente de percurso, ou intimidante obstáculo, dependerá da têmpera de
cada um.
Acostumada a ver Pedro entrar no
apartamento sobraçando novos e pesados tomos, de quando em quando Thérèse
ensaiava um reclamo, cujo teor não se me afigura difícil intuir: “Estás
gastando demais com esses livros...” Para amortecer as queixas da consorte,
importavas também volumes da Pléiade, os guardavas em armário da chancelaria,
de onde os retiravas, aos poucos e em momentos oportunos, para encantar a
esposa e fazê-la esquecer as exortações à economia, enquanto outros compêndios
apareciam nas prateleiras.
Que não te confundam com filisteu se
chamavas, meio jocosamente, de ‘demagogias culturais’ os bem-encadernados
volumes em papel bíblia da Pléiade, com que Thérèse se deliciava. Na verdade,
se respeitavas a literatura, já te havias estabelecido ordem de prioridades.
Sabias que, sem embargo da tua disposição para a leitura, limitado é o tempo
que nos assignam as Parcas. Cumpria, pois, dedicá-lo àquelas matérias e
disciplinas para as quais te sentias mais preparado. Com a tua vocação de scholar, de homem voltado para as
ciências humanas, consideravas válidas outras opções, sem, no entanto,
desviar-te da rota prefixada.
Ao assinalar-te a ‘disposição para a
leitura’, franzo o sobrecenho. A expressão me parece chocha e não traduz a
ênfase, o quase arrebatamento da tua devoção à palavra escrita. Lá, nas
montanhas quitenhas, no bucólico isolamento que então caracterizava aquele
posto, quando os países sul-americanos se davam as costas, tive a fortuna de
deparar com um verdadeiro intelectual, que se imergia nos livros sem descurar
da realidade circunstante, de que lhe cabia, dada a mediocridade do chefe,
informar a distante Secretaria de Estado.
Desde cedo, ainda no clássico do Mello
e Souza, começara eu a formar pequena
biblioteca, com volumes da Garnier, uns poucos da Pléiade e pocket-books de
literatura inglesa e americana. Nos anos cinquenta, malgrado a inflação, o
câmbio se mantinha acessível, mesmo para quem dispunha de exíguos meios.
Quando passei no vestibular da
Faculdade Nacional de Direito e cursei o primeiro ano em 1956, trabalhando como
extranumerário na Comissão Permanente da Revendo do Material, do Ministério da
Agricultura, aproveitava a hora do almoço para visitar as livrarias do centro.
Além da Freitas Bastos, no Largo da
Carioca, junto do antigo Tabuleiro da Baiana (ponto terminal de bondes),
existia a Civilização Brasileira, na
Sete de Setembro. Ambas exibiam ricos acervos, sendo que todo o espaçoso
segundo andar da Civilização era reservado à literatura francesa. Na Ouvidor,
próxima da esquina de Rio Branco, do lado esquerdo, estava a mais acanhada,
porém prestigiosa José Olympio. Do
outro lado, à direita, a meio caminho da Gonçalves Dias, se achava a Garnier, em que se reuniam, no passado, tantos
expoentes literários. Já na rua do Rosario se situava a Kosmos, especializada em literatura germânica.
Nunca discorremos especificamente sobre
esse aspecto. O tardo florescimento que tive a oportunidade de vivenciar, só
surgiria em nossas conversas como contraponto à decadência do centro e ao
definhar das grandes livrarias, produto das transformações urbanísticas e da
repressão da ditadura militar. A partir dos anos oitenta, restávam-nos a Leonardo da Vinci, sob a férula de dona
Vanna, o declinante sebo da rua do Carmo, e mais para os anos noventa, a
promissora Livraria da Travessa.
Sobre as demais, como a antiga Acadêmica,
na rua Miguel Couto, pairava a sombra pressaga dos magros estoques.
E, não obstante, certamente as minhas
caminhadas repetiam as tuas, se agregarmos a qualificação de quão mais amplo
seria a ðåñßïäïò[2] tua, estendendo-se sinuosa
pelos inúmeros sebos, e outras recônditas livrarias, como a das Edições Loyola,
que me apresentarias mais tarde, nas alturas do edifício Sisal da Presidente
Vargas.
Voltemos, contudo, aos escassos, se bem
que proveitosos, meses de meu estágio em Quito. Se lá te demoraste dezessete
anos, e tantos colegas terão privado da tua companhia, coube a mim – e o digo
com a singeleza dos fatos chancelados pelo tempo – efêmero cometa na prússica
abóboda quitenha, colher o prêmio da tua amizade, arrimada nas afinidades
eletivas do intelecto, e alinhavada com a beneditina perseverança das trocas
epistolares, salpicadas, aqui e ali, com os rituais e aleatórios encontros do
bar Monteiro e adjacências.
Se tínhamos, pois, interesses comuns,
se já dispunha de incipiente biblioteca, não seria eu terra sáfara que
enjeitasse a tua palavra e exemplo. A
modesta, encolhida chancelaria, ao invés das pobrezas burocráticas, seria para
mim a óôïÜ[3] clássica, onde tu me
abririas espaços antes ignotos, caminhos desconhecidos, distinções necessárias,
mas até então mal apreendidas. Sem jactâncias, sem formalidades e
subserviência, surgiam mestre e discípulo. Proscritas as mesuras acadêmicas, as
horas acaso vadias do expediente passavam, com indicações de livrarias na
Holanda, Inglaterra, Alemanha e França, aonde poderia encomendar obras sobre
temas históricos, que então me interessavam. Nesse sentido, me ajudavas a fazer
a triagem dos autores, a par de sinalizar-me um que outro livro introdutório ao
estudo da filosofia. A tal respeito, ao referir-te aos ensaios de Camus,
cuidaste de redimensionar-lhe a importância, frisando que os seus escritos
pertenciam ao ensaísmo e não à filosofia. Em outras palavras, não possuíam o
valor conceitual que eu lhes atribuía.
Inexistia o propósito de desenvolver
tópicos determinados. Repontavam os comentários em função de questões do dia,
ou de expectativa da chegada próxima de algum livro relevante há muito
ordenado. Por vezes, folheando um volume recém-vindo, me mostravas como ver as
notas de pé de página, a bibliografia, e a estruturação das matérias, maneira
expedita de verificar da seriedade da pesquisa e da amplitude da leitura que o
precedera. Eras minerador exímio na procura das fontes, que te poderiam ser
úteis para ulteriores estudos.
Generoso nas indicações de títulos, nos
conselhos de autores a merecerem especial atenção, sempre pronto a dirimir
eventuais dúvidas, a corrigir, sem titubeios, mas tampouco sem rispidez, tinhas
evidente prazer em partilhar o teu conhecimento ou os métodos para tanto
imprescindíveis.
À tua mão aberta para disseminar o
saber, não correspondia, entretanto, igual inclinação em dar livros. De ti, só
recebi dois livros bastante finos, impressos na Inglaterra, em papel da Segunda
Guerra Mundial.
Que dizer de emprestar ? Jamais colhi
aceno de que me cederias por empréstimo algum volume. Decerto, davas todas as
referências, em que livraria teria mais chance de encontrá-lo, e até mesmo, no
caso dos leilões da Beijers,
aconselharias que vulto de lance fazer, e que margem deixar ao leiloeiro, se
grande fosse o meu interesse. Nada sonegar ao aprendiz, em termos de elementos,
endereços, a par de apreciação do valor e da atualidade da obra que pretendia
adquirir.
Essa característica tua eu a assinalo
sem a mais leve censura. Não há atalhos na marcha infinda em busca do saber. Ao
encetá-la, nos armamos da socrática certeza de que não a completaremos nunca.
Só os estultos têm certezas inabaláveis. Por isso, cada neófito deverá, com
pertinácia de Sísifo, refazer o caminho de outrem, valendo-se dos próprios
meios. Incumbe ao mestre colocar perguntas, sugerir alternativas, ressuscitar dúvidas,
assinalar fatos e ferramentas para ir adiante. Por isso, não pensa em
substituir-se ao discípulo.
Como não te é facultado transmitir ao
iniciando o conjunto de ideias associado à determinada obra, daí se segue a
necessidade de que a adquira, não pela posse material, mas para que, em
refazendo a trilha do mestre, alcance as próprias conclusões e cresça a sua
aptitude de escolher novas sendas.
Parafraseando o verso de Vinício de
Moraes, que seja eterno enquanto dure o teu possessivo amor ao livro. Que
importa, meu caro Amigo, se a tua luta obstinada e sem quartel não tem outra
perspectiva senão a do fim abrupto e inelutável ? Viveste de, por e para os
livros. A eles, consagraste a existência.
E a essas estantes infindas, de que – estejas
tranquilo – nenhuma internet ou novo
sistema de informática logrará ocupar o espaço, não legaste apenas as
prateleiras que se comprimem no anexo encimado pelo dístico Humanitas. Em boa hora, trocaste o ambicioso tratado das origens do direito
penal por monografia sobre uma frase aristotélica aparentemente sem sentido.
Depois das décadas votadas ao direito penal, por cerca de quinze anos, estudaste, pesquisaste,
estruturaste e, enfim, escreveste – nas teclas gastas, cansadas, obsoletas,
inimitáveis e inesquecíveis da tua velha Olivetti – mais um livro, a somar
àqueles que alimentam as insaciáveis bibliotecas. Todavia, à maneira do
Filósofo que tanto leste e admiraste, será matéria a tratar em outro local.
Creia-me, ilustre e preclaro Amigo, que funda
sinto a falta do Mestre de sempre,
* *
(z) pseudônimo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário