terça-feira, 12 de abril de 2011

O Impensável pode acontecer

       É saudável, compreensível e necessário que na sociedade existam situação e oposição. Nos Estados Unidos tais forças políticas são representadas pelos partidos Democrata e Republicano. Em passado não tão longínquo havia entre estas duas principais formações tácita concordância quanto a princípios básicos que sobrelevavam à luta política interpartidária.
      Nesse sentido, o espírito do bipartidismo representava a união que forma a base do pacto constitucional, dentro do pressuposto que o espírito de facção não pode prevalecer em detrimento dos objetivos nacionais permanentes. Corolário deste axioma residia na cordialidade das relações interpartidárias e, por conseguinte, na possibilidade de que, sem prejuízo da natural rivalidade política, subsista  base sólida sobre a qual situação e oposição possam estabelecer acordos amplos tendo presente o interesse nacional.
     O Presidente Barack Obama já deu sobejas mostras de acreditar na validade do bipartidarismo. Os fatos têm, no entanto, evidenciado, e até de forma exagerada, que esse respeitado instituto da política americana aparece, no momento, apenas como lembrança de épocas passadas.
     O princípio da unidade dentro da diversidade, que se me afigura o fundamento do bipartidismo, se vai tornando uma fórmula antiquada para crescente número de representantes políticos. Esta contraposição se acentua tanto em pequenos detalhes, quanto em grandes projetos e objetivos.
     Se as diferenças entre os grandes partidos constituem características lógicas, o recíproco cavalheirismo constituía a fundamentação não escrita para eventual transigência e concordância, sob a premissa dos interesses básicos da nação.
     O Presidente Obama procurou valer-se deste princípio tácito para chegar a um acordo com o Partido Republicano sobre o projeto de reforma sanitária, objetivo perseguido desde o início do século passado. Os líderes do G.O.P. se valeram do elogiável propósito presidencial – que se voltava para grandes acordos pregressos alcançados pelo espírito do bipartidismo – para ganhar tempo, não para aperfeiçoar a legislação proposta, mas para fazê-la encalhar nos baixios de largas e infrutíferas tramitações.
     Desde que a direita evangélica se firmou no Partido Republicano, condenando a corrente moderada – em que luziram no passado representantes de nomeada como Nelson Rockefeller – a uma progressiva irrelevância, acentuou-se o seu antagonismo contra o Partido Democrata. Essa tendência para a demagogia agressiva passou a demonizar o adversário político, transformado em virtual inimigo. O movimento Tea Party, para cuja consolidação muito contribuíram os multibilionários irmãos Koch (1) , semelha constituir a ala de ultra-direita do Partido Republicano.
    Os membros do Tea Party, ao participarem das primárias republicanas para a indicação dos candidatos aos diversos postos eletivos, a par de colaborarem, em alguns casos, para a vitória dos democratas – dada a sua radicalização direitista-, em outros, foram eleitos para Câmara e Senado, tomando o lugar de republicanos mais moderados.
    Como nas últimas eleições, o G.O.P. logrou obter a maioria na Câmara de Representantes, com substancial aporte de membros mais radicais do Tea Party, a atuação do Speaker John Boehner (Rep.-Ohio) se viu bastante condicionada pela postura mais extremista dos deputados recém-eleitos, saídos das urnas de novembro de 2010.
    Nada ilustra de forma mais aguda esta crise, que não é mais do bipartidismo, mas aquela relativa à necessidade de convergência sobre posições em que sobreleva o interesse nacional, que o atual choque entre os Partidos Republicano e Democrata, acerca da aprovação do orçamento.
    Em provisório acordo, que prorrogou o orçamento por mais seis meses, o Presidente Obama concordou com a exigência republicana de corte de despesas de US$ 38 bilhões.
    No entanto, a maioria republicana da Câmara de Representantes está condicionando o seu placet à elevação do teto da dívida pública federal, que se acha atualmente no montante de US$ 14,25 trilhões. Consoante informa o Secretário do Tesouro, Timothy F. Geithner, este teto será atingido por volta de 16 de maio vindouro, se bem que, mediante medidas extraordinárias, se conseguiria eventualmente prorrogar o prazo fatal até 8 de julho próximo.
    Tentemos resumir, de início, o que ocorreria se o Tesouro estadunidense não receber a indispensável autorização do Congresso para elevar o teto respectivo da dívida pública federal.
    Uma vez ultrapassado o aludido limite, o Tesouro não poderia mais realizar as operações financeiras – hoje de rotina – para financiar as transações federais, e rolar a dívida preexistente. Em consequência, se veria impossibilitado de pagar dívidas vencidas, colocando o governo estadunidense – até hoje o padrão na credibilidade do crédito – em situação inadimplente.
    Os títulos do Tesouro Americano são considerados como o sustentáculo no mercado de obrigações (bond market), porque os investidores sempre partiram da premissa que a inadimplência (default) é impossível.
    Essa doutrina do mercado leva muitos bancos, companhias de seguro e outros investidores internacionais a considerarem as obrigações do Tesouro americano como uma modalidade de dinheiro em espécie (cash) de baixo risco. Nesse particular, é oportuno observar que a China, uma das maiores credoras dos Estados Unidos, detém grande montante de tais obrigações.
   Quais seriam as repercussões da inadimplência do Tesouro americano ? As consequências de um evento deste porte – que até o presente é tido como impensável - não seriam de condensação fácil, dada a enormidade dos interesses em jogo.
    Não é ocioso dizer que a superpotência não o é apenas em poder militar, mas a sua expressão econômica colocou a respectiva moeda na posição de principal divisa internacional. Desastre desta natureza – não importa se causado por cegueira política de partido com representação suficiente para infligir tal calamidade – teria consequências, que como as desgraças produziriam efeitos plurais e de reação em cadeia.
   Senão vejamos. As cotações das obrigações do Tesouro tenderiam a encarecer e bastante, dada a súbita quebra de confiança na renovação das preexistentes. Os efeitos cumulativos logo se estenderiam aos cidadãos comuns, com a alça das taxas de juro, e, a fortiori a incerteza financeira de que a economia americana estava, na aparência, superando.
   Se o que antes era havido como impensável, se torna, por decisão política irresponsável da oposição, não só pensável, mas fato concreto, a reação em cadeia provocará uma crise internacional – que não é suscetível de ser cotejada com as ‘falências’ anteriores das economias grega, irlandesa e portuguesa.
    Por outro lado, se o dolar estadunidense tem tendência à queda, esta baixa é controlada, por ser resultado da política do Federal Reserve Bank. O Brasil, a tal propósito, já sofre os conhecidos prejuízos da consequente apreciação do real.
   Não resta dúvida, contudo, que o principal golpe seria contra a liderança americana no mundo, conforme refere Robert E. Rubin. De repente, a comunidade internacional se depararia com um gigante que claudica na sua credibilidade creditícia.

As exigências republicanas contrariam a racionalidade.

      A ‘negociação’ que se prefigura decorre de condições irresponsáveis, colocadas pelas correntes extremistas do Partido Republicano, e até o presente seguidas por liderança que se vê à reboque de radicais, os quais se aprestam a golpear o interesse nacional americano.
     Há republicanos que até afirmam ser a dívida estadunidense ‘culpa dos democratas’. É uma posição mais do que contestável. Basta lembrar que o último presidente a lograr deixar a economia americana com orçamento superavitário foi Bill Clinton. Depois dele, tivemos Bush júnior que, com os seus cortes de impostos favorecendo os mais ricos e as guerras iniciadas (Afeganistão e Iraque), logo transformou a situação fiscal em pesadamente deficitária.
    Por outro lado, a estratégia maximalista dos republicanos – que ambiciona cortar fundo em alocações federais destinadas às classes menos favorecidas (Medicare, Medicaid), além de estropiar a Reforma geral da saúde (o abominado Obamacare dos republicanos), e ainda por cima com a redução dos impostos devidos pelos mais favorecidos - só tende a provocar enormes déficits orçamentários, como o demonstram as políticas de Reagan e de Bush júnior.
    Posto diante dessas condições inaceitáveis – o que equivaleria a renegar parte substancial de sua política econômica – o Presidente Barack Obama, tido como grande conciliador, carecerá de têmpera e habilidade para fazer ver à opinião pública quem trabalha pelo interesse americano (e por conseguinte do contribuinte). Se o lograr, poderá assim arrancar da oposição a necessária concordância para que se possa alcançar acordo que não seja comprado com a renúncia do próprio programa de governo.
    Dadas as implicações da condições que o GOP deseja impor, a estratégia da oposição foi qualificada de demencial (crazy). Segundo a interpretação de observadores de bom senso, Washington não poderia ficar refém das confusas teses do Tea Party, que dá a impressão de não hesitar em colocar em risco a segurança econômica dos Estados Unidos para fazer valer o seu desvairado populismo.
   É o que se saberá nas próximas semanas.

( Fonte: International Herald Tribune)

[1] Os irmãos Koch são empresários da indústria dos combustíveis fósseis. Além de subvencionarem o Tea Party, procuram incentivar movimentos contra propostas ambientalistas. Apoiaram igualmente a campanha que levou à aprovação, pela maioria conservadora da Corte Suprema, da sentença Citizens United (Cidadãos Unidos), pela qual não há mais restrição de gastos nas intervenções em campanhas políticas (notadamente na publicidade) pelas grandes corporações.

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