A eficácia da nova tecnologia de RNA mensageiro (RNAm), empregada em vacinas como as da Pfizer e Moderna, marca o início de uma nova era na fabricação de imunizantes e abre portas para tratamentos inovadores contra problemas cardíacos, doenças infecciosas e até câncer.
Essa tecnologia era buscada havia décadas por pesquisadores em várias partes do mundo. A pandemia do novo coronavírus deu impulso ao seu desenvolvimento e à aprova- ção de novas vacinas em dez meses.
O RNAm sintético é usado para levar instruções para as células sobre como produzir uma proteína do coronavírus. Quando a proteína é produzida pelas células com base nas instruções enviadas pelo RNAm, ela "treina" o sistema imunológico para combatê-la.
"Essas são as vacinas do futuro. São melhores e de produção mais rápida." declara o diretor da Sociedade Brasileira de Imunização, Renato Kfouri.
"Hoje usamos vacinas de eficácia aceitável mas não ótima, como a da gripe, por exemplo, que é de 60%." Dessarte, os resultados positivos apresentados pelas primeiras vacinas aprovadas pelas autoridades sanitárias estrangeiras têm implicações que vão muito além do combate da atual pandemia. A eficácia comprovada da inédita tecnologia de RNA mensageiro usada nesses produtos marca o início de uma nova era na fabricação de imunizantes e abre caminho para tratamentos inovadores contra o câncer, problemas cardíacos e várias doenças infecciosas."
Essa tecnologia era perseguida há décadas por pesquisadores em várias partes do mundo. Nunca uma vacina com base em RNA mensageiro havia conseguido o sinal verde das agências reguladoras. Mas a emergência mundial de saúde imposta pela covid-19 fez as vacinas da Pfizer/BionTech e da Moderna serem desenvolvidas e aprovadas em apenas dez meses. Um avanço que levaria pelo menos dez anos e afeta diretamente a produção de novos imunizantes. "A gente não saíu do zero para a vacina em dez meses", explica o Diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, Renato Kfouri. "Toda a ideia foi uma adaptação de uma tecnologia que já vinha sendo desenvolvida há muito tempo."
O virologista Flávio Guimarães, do Centro de Tecnologia de Vacinas da UFMG, lembra também de um outro aspecto crucial, o financiamento. "Houve um influxo de dinheiro por parte das empresas e dos governos como jamais houve na história" ,declarou. "A ciência é pragmática: quando você paga, você recebe. Pode ser muito caro, mas recebe."
Tradicionalmente, vacinas são feitas com o próprio patógeno que visam a combater, em formas enfraquecidas ou inativadas. O sistema imunológico é treinado a reconhecer e combater a infecção real. Essa tecnologia foi usada com sucesso no combate ao sarampo e à pólio, entre outras, mas ela leva anos, muitas vezes décadas para ser desenvolvida. Já as novas vacinas são feitas com um microfragmento de material genético (no caso, o RNAm), sintetizado em laboratório. Na natureza o RNA mensageiro traduz as instruções inscritas no DNA e as leva até os produtores de proteínas dentro das células. As novas vacinas usam o RNAm sintético para levar as instruções para as células sobre como produzir a proteína spike do coronavírus. Quando a proteína é produzida pelas células com base nas instruções enviadas pelo RNAm, ela "treina" o sistema imunológico a combatê-la.
Ou seja, em ver de levar fragmentos do patógeno atenuado ou inativado para dentro do organismo, as novas vacinas levam as instruções para a sua produção. A eficácia das duas vacinas se revelou superior a 95% mesmo em grupos mais vulneráveis, como os idosos. Além disso, a produção é muito mais simples do que a dos imunizantes tradicionais, como avaliou Kfouri. "Ainda há alguns problemas que ainda podem ser aprimorados, como a limitação de custo e a termo-estabilidade do produto, mas os resultados são espetaculares."
De fato, as vacinas de RNAm de fato apresentam algumas limitações logísticas que não apresentadas pelos imunizantes mais tradicionais. Tanto o produto da Pfizer quanto o da Moderna precisam ser armazenados em temperaturas extremamente baixas, de até menos 70º C, que demandam o uso de freezers especiais. A `Pfizer criou uma embalagem especial com gelo seco para preservar as doses na temperatura ideal durante a distribuição, além de ter montado uma cadeia de distribuição. Ainda assim, tal característica pode representar um grande obstáculo em países como o Brasil, v.g.
As tentativas de usar o RNAm na luta contra diversas doenças começou há décadas, mas o uso médico se revelou tarefa complexa. Durante muitos anos, a terapia foi um verdadeiro fracasso. Foi somente em 2005 que Katalin Kariko e Drew Weissman, da Universidade da Pennsylvania descobriram uma forma de modificar o RNAm para que ele não causasse a inflamação exacerbada, que até impedia o seu uso. Um segundo obstéculo era como proteger as frágeis partículas do RNAm para que ele não causasse a inflamação exacerbada, que até então impedira o seu emprego. Um segundo obstáculo era como proteger as frágeis partículas do RNAm em seu caminho até as células. A solução acabou sendo o desenvolvimento de uma espécie de "envelope" com nano-partículas de lipídio. Com tais progressos, foi possível começar a testar a tecnologia em seres humanos em 2015.
No caso da vacina da Pfizer/ BioNTech, esse envelope de lipídios precisa ser mantido a temperaturas superfrias para não perder sua capacidade de proteção do RNAm. A Moderna conseguiu descobrir como manter os envelopes por mais tempo em temperaturas mais elevadas. Por isso, suas vacinas podem ser armazenadas em freezers normais e, por até um mês, em geladeiras comuns.
Outras Aplicações. "Esses resultados abrem uma grande janela de oportunidade em relação a outras vacinas", afirma Kfouri. "Usamos hoje vacinas de eficácia aceitável, mas não ótima, como a da gripe, v.g., que é de 60% Temos no mercado muitas vacinas que tiveram um enorme impacto na saúde pública e não têm nem 70% de eficácia. Podemos pensar em migrar esses imunizantes para uma nova geração de vacinas. Teremos vacinas melhores, produção mais rápida."
O mesmo grupo da |Universidade da Pennsylvania já testou a tecnologia para o desenvolvimento de vacinas contra cerca de trinta doenças diferentes. Os resultados iniciais dos testes em camundongos do produto contra diferentes tipos de gripe foram positivos. Também se revelaram promissores produtos contra a herpes genital e a malária. O grupo também conseguiu induzir a produção de proteínas cuja ausência pode provocar uma série de doenças. como a fibrose cística.
A Moderna, por sua vez, além da vacina contra a covid-19, também trabalha em imunizantes contra outras doenças infecciosas como zika e chikungunya.. A farmacêutica também está testando, com a Merck, uma vacina terapêutica à base de RNAm, voltada para tratar câncer.
A terapia é personalizada, com base nas mutações específicas encontradas nas células tumorais. Quando usado em conjunto com um medicamento da Merck contra o câncer, o produto se mostrou promissor em pacientes com tumores na cabeça e pescoço, em estudos iniciais.
A BioNTech também avança em seus estudos de uso de vacinas de RNAm no tratamento do câncer, principalmente tumores de mama, pele e pâncreas. A farmacêutica tem vários produtos em desenvolvimento, incluindo um para um tipo específico de câncer de pele que já está em fase de testes. Uma das grandes vantagens das vacinas de RNAm é que elas podem ser rapidamente ajustadas a mutações virais ou a eventuais quedas na imunidade.
O maior desafio agora é aprimorar ainda mais a tecnologia, tornando o transporte das vacinas mais simples e a custos ainda mais baixos. "Essas são as vacinas do futuro", afirma Kfouri.
( Fonte: O Estado de S. Paulo )