Oscar Niemeyer

                                             

          No fim da primavera de 2012, morre Oscar Niemeyer.  Nascido nas Laranjeiras, no Rio de Janeiro, a quinze de dezembro de 1907, sob a presidência do mineiro Afonso Pena, e falecido ontem, 5 de dezembro, com cento e quatro anos. Niemeyer não precisa que a sua grandeza possa ser sentida como a das árvores portentosas, uma vez derribadas pela insânia e cupidez dos homens.
          Ninguém viveu tão intensa, longa e profusamente quanto ele. Construíu casas, palácios, monumentos, escolas, igrejas, catedrais e universidades. A visão e a coragem de Juscelino Kubitschek que ousara tirar do papel de um parágrafo esquecido da Constituição a profecia  de Dom Bosco se apoiaria na arte e no conhecimento de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.
          Na escala das artes, a arquitetura é o traço perene, é o risco magnífico que desdenha os séculos. Sem embargo, ela traz consigo a mensagem do próprio tempo, do suor dos operários, dos tesouros das potestades, mas sobretudo o grito e o estro de quem ideou o templo, o santuário, o palácio, a basílica, a ponte e o monumento votivo.
         Niemeyer teve uma longa existência, premiada com a dádiva do trabalho e das próprias contribuições aos espaços da polis.  Se a arquitetura grega preferia o cimo dos montes e as acrópolis, de forma que o espaço do firmamento os emoldurasse, sem que os diminuísse a claustrofobia das tortuosas vias de Apolo agoraios,tal não se veria melhor do que no Partenon, querido por Péricles e desenhado por Ictinos. Quiçá nenhuma obra prima da Hellas nos tenha alcançado em tal estado de preservação, se omitirmos o bombardeio do veneziano Morosini, e, o que mais pesa, o crime de Lord Elgin, levando para a sua Inglaterra as esculturas do frontal principal do velho tempo. Se Melina Mercouri iniciou a campanha pela sua restituição, o British Museum ainda se aferra à posse ignóbil das esculturas roubadas.
        Mas esqueçamos a laia dos ladrões, e nos atenhamos à ínsita grandeza das obras imortais. Valhe uma visita à ventosa e montanhosa Arcádia o templo de Apolo Epicouros, também de Ictinos, que com a ajuda da Unesco resiste às intempéries daqueles recantos perdidos.
        Falava da comprida e generosa vida de Oscar Niemeyer, cuja magna presença embeleza a paisagem de tantos países. É um arquiteto de Primeiro e Terceiro Mundo. O traço do edifício das Nações Unidas, que distinto se alça às margens do Hudson, neste nômade sonho humano do palácio da paz, transportado para a orgulhosa New York, e vindo de Genebra, do Palácio das Nações e ao dobre da malfadada Liga. A contribuição artística brasileira ao sonho do fim da segunda guerra mundial não se cinge ao carioca Niemeyer.  O hall de entrada da Assembleia Geral contem os murais dedicados à guerra e á paz de Candido Portinari.
         Esses dois gênios de nossa arte sofreriam pela intolerância e a sua irmã-gêmea, a burrice. Por serem comunistas, os órgãos de repressão, que sóem ter a memória longa e inteligência estreita, tiveram eles recusada a visita ao solo que por seu genial talento haviam embelezado de forma não ordinária. Posteriormente, nos anos 1972/73, Oscar obteve o visto de entrada nos Estados Unidos, onde permaneceu por alguns meses.
        Niemeyer era arquiteto generoso, na medida em que brindou a paisagem mundial com a sua arte inimitável. Da Argel liberta, desenhou a Universidade de Constantina, que a mim coube deparar estampada na nota de duzentos dinares; em Israel, a Universidade de Haifa; a sede da Mondadori, em Milão, em que vira a página do padrão clássico.
        No Brasil, algumas de suas obras, por romperem com as regras de antanho, como a igreja na Pampulha por muitos anos teria denegada a benção do arcebispo, por não se conformar aos padrões usuais. Os maiores dissabores, ele os colheria pela plúmbea intolerância do regime militar, que chegara a vetar-lhe o projeto do aeroporto, quando o respectivo ministro da aeronáutica incorre na triste frase: “lugar de arquiteto comunista é em Moscou”. Pelo caráter e firmeza em declarar-se comunista, Niemeyer seria convocado a inúmeros IPMs, que iriam ser sempre mofina nota de página na trajetória de um gênio brasileiro. São muitos os seus trabalhos, como toda a Brasília oficial – o palácio da Alvorada, o palácio do Planalto, o palácio do Itamaraty e o palácio do Ministério da Justiça.
         A praça dos Três Poderes – que hoje enorme mastro provocativamente colocado não logra de todo descompor – o Espaço Lúcio Costa, o Congresso Nacional, com as características alternativas, e na Esplanada, a série de ministérios que hoje, dada a congolesa pletora de sedes de empreguismo, tem de ser consignadas a outros espaços, não comparáveis aos da lavra de Niemeyer. Em Brasília, desde o risco mais singelo, como a capelinha de D. Sarah, na asa Sul, até obras como o memorial de JK – em que se vingaria das mesquinharias do regime militar com formas que evocam a foice e o martelo. Como Juscelino era a antítese do totalitário, o objeto da vindita semelha mal escolhido.
          A deusa Túxe (Fortuna) principiou a interessar-se pelo jovem Niemeyer quando da vinda de Le Corbusier. O projeto desse arquiteto para o ministério da educação, no Rio de Janeiro, sob Gustavo Capanema, iria prosperar sob a direção de grupo encarregado de sua elaboração, tendo Oscar como seu arquiteto-chefe.
           Há muitos outros projetos de Niemeyer, de edifícios em Ipanema, de sede da Bienal em São Paulo, no parque Ibirapuera, dos prédios na praia do Russell de Bloch Editores. Esse conjunto, próximo do antigo Hotel Glória, seria construído em duas fases, com as fachadas se compondo, a despeito de serem em lotes de terreno de extensão diversa. A habilidade de Niemeyer faria desaparecer o  que para o menos dotado colocaria árduo, quiçá impossível problema.
            Oscar Niemeyer fez muitas obras e marcou a paisagem com o seu gênio. Ele nos deixa, tendo trabalhado enquanto pôde, em tempo de vagas magras.
             Esperemos que mesmo para aqueles com muitos lustros ainda sobre tempo para saudar alguém que, sem querer imitá-lo, nos faça entrever nos respectivos riscos a promessa de tempos melhores, iluminados por este dom caprichoso, tão árduo de esmiuçar e definir, mas quão fácil de reconhecer.

 

( Fonte: Caderno Especial de O Globo )