sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A Luta pela Democracia no Egito


                                         
         Mohamed Morsi,  o presidente do Egito, ao não respeitar a vontade do povo, transmite indicações pouco tranquilizantes sobre o próprio compromisso democrático.  As eleições e os referendos nem sempre são indicativos do respeito pela liberdade. Veja-se o pouco edificante exemplo de Adolf Hitler. Ao ensejo do incêndio do em , que seus asseclas haviam provocado, o chamado Fuhrer obteve maciça votação de apoio da sociedade alemã.  Aliás, o referendo constitui amiúde um vezo dos déspotas, pela maneira que logram instrumentalizar-lhe a questão colocada para o eleitorado.
         Morsi, um veterano da Irmandade Muçulmana, cometeu grosseiro erro de avaliação, ao presumir que a opinião pública egípcia aceitaria sem maiores problemas o decreto em que se outorgava todos os poderes. Pensou que a sociedade entenderia que tal seria a única maneira de evitar que as cortes tentassem modificar as disposições da Carta Magna, em assembleia onde os membros da dita Fraternidade detinham a maioria.
         Antes que as supostas restrições lhe fossem impostas pela Suprema Corte, Morsi julgou melhor tomar a iniciativa. Sem recorrer ao diálogo, e nem sequer determinar a gravidade do problema, ele se julgou em condições de atalhá-lo, através do notório ukase em que auto-outorgava todos os poderes.
          A Irmandade Muçulmana, como é sabido, não acorreu dentre as primeiras levas de opositores e manifestantes na Praça Tahrir. Somente com as provas do enfraquecimento do ditador Hosni Mubarak, a Irmandade aderiu gostosamente à revolução. A par disso, como em geral é característica dos demais movimentos islâmicos – que nela se inspiram, como fundadora da islamização, em uma corrente de volta às raízes por muito esquecidas – o respeito ao Islam tem a precedência sobre outras forças, como a democracia. Daí a dificuldade e a desconfiança que trazem no convívio com movimentos aliados.
           Parte do mestre-escola Hassan al Banna (1906-1949) a prédica pela reação árabe, por demasiado tempo manietada por costumes alienígenas e pela submissão às forças do colonialismo. A pregação de al Banna seria radicalizada pelo seu discípulo Sayyid Qutb (1906 – 1966), a ponto de ser considerada ameaça ao nasserismo e por isso Qutb foi executado.
           Pela sua força e implantação na população comum, a Irmandade teria uma dúbia relação com o ditador Mubarak. Ambos se respeitavam – o que não excluía perseguições e prisões – e manteriam nos legislativos controlados da ditadura uma presença simbólica, típica do chamado tokenismo (eram tolerados, na medida em que respeitassem à regra básica de submissão do ditador de turno).
          Compreende-se, por conseguinte, dois aspectos da relação entre os contingentes dos jovens e liberais que enchiam a praça Tahrir, mesmo sabendo – sobretudo nas primeiras semanas – que corriam risco de vida  e a vinda, de início sub-reptícia e, mais tarde, quando já se escrevia na parede a iminência da derrubada do trintenal ditador: (a) os manifestantes da primeira hora não se podiam dar ao luxo de enjeitar o apoio da Irmandade; e (b) não obstante, o encaravam com grande desconfiança, pois duvidam de sua capacidade de participar sem cartas marcadas do jogo da democracia.
          Por isso, Mohamed Morsi, ao elaborar o seu decreto-bomba, não ía de encontro aos preceitos e ao ethos da sua Irmandade. Dado o seu apego ancestral aos ditames islâmicos, não terá sopesado – como decerto o faria algum político mais prático e versado com as exigências democráticas – dos perigos de descumprir o próprio juramento e de jogar por terra a respectiva autoridade fundada no sufrágio popular e na sua vitória em dois turnos contra os demais candidatos, inclusive no final aquele mais ligado ao ditador Mubarak.
         A frase célebre - que nessas linhas já repeti a respeito de Napoleão e a circunstância de ter sido o mandante do assassinato, em 21 de março de 1804, do duque d´Enghien  - de seus colaboradores, na medida em que o referido ato foi um erro muito mais do que um crime. Como militante da Irmandade, e mais preocupado em reforçar-lhe os fundamentos, Mohamed Morsi julgou, como outros tiranos no passado, que a reação adversária, se provável, seria facilmente controlada e esmagada.
        O erro de avaliação de Morsi não tardaria em desvelar-se. Se tivesse agido com presteza, dizendo-se mal interpretado e recolhendo o ukase, a sua posição, decerto abalada, não estaria ameaçada, eis que, por sua iniciativa, desfaria a força imantadora da reação popular.  No entanto, resolveu persistir em propósito mal-recebido. A sua máxima concessão se cingiu a que seria um decreto provisório. Ora a história está cheia de medidas ditas provisórias, que vigoraram por décadas. O movimento popular, ao tomar conhecimento de disposições da nova constituição, aumentou em vigor, tanto pela técnica da maioria da Irmandade na assembleia de aprovar de afogadilho a Carta Magna, quanto pela circunstância de que muitos de seus preceitos constituíam um retrocesso para o povo egípcio.
            Ao adentrarmos essa fase, há dois aspectos inquietantes para Morsi e a Irmandade. As manifestações de protesto continuaram crescendo e na dinâmica das revoluções – de que o vácuo ou a ausência de uma força contrária potencialmente intimidante são elementos respeitáveis - milhares de pessoas se dirigiram ao palácio presidencial. Os destacamentos policiais logo se mostraram incapazes de controlar eventual tentativa de invasão do paço, e se a guarda do exército não houvesse atendido o apelo, ou do Presidente, ou de algum chegado seu, não teria sido a primeira vez que um faraó (ou longínquo sucessor seu) viesse a cair nas mãos de raivosa turba.
            Segundo se assinala, o anteprojeto constitucional votado às carreiras tem similitudes com as propostas que entronizaram em Teerã a preponderância do Ayattollah Khomeini, em que o presidente da república está, tanto na prática, quanto na letra constitucional, submetido à autoridade teocrática do Líder Máximo, que, no momento, é Ali Khamenei.
             O caráter islamizante do papel da Irmandade não parou aí.  O projeto constitucional contém muitos limites sobre a liberdade de expressão. Nessa última terça-feira, em protesto, onze jornais não circularam, e pelo menos três redes particulares de tevê não funcionaram na quarta-feira.
             Se é discutível o proveito e a influência deste silêncio e desta não-edição de imprensa, um site do Egito Independente registrou o seguinte aviso: “ Você está lendo esta mensagem porque o Egito independente objeta contra as continuadas restrições sobre as liberdades da mídia, sobretudo depois que centenas de egípcios pagaram com a sua vida pela Liberdade e Dignidade”. 
            Esta reação, dos grupos liberais e seculares, tenta bloquear o avanço do projeto de Constituição, aprovado na sexta-feira, malgrado protestos, boicotes e objeções de quase todos os delegado não-islamitas. Na tática do rolo compressor, em que todos os expedientes de dúbia licitude foram aplicados, se passou de forma inequívoca para a sociedade civil – e todos os movimentos que tinham lutado contra a ditadura de Mubarak, mesmo quando se afigurava empresa prenhe de riscos, a ponto de a velha Irmandade Muçulmanto ter preferido a princípio manter-se à distância .
            Para um texto da relevância da Carta Magna, a pressa,  inimiga da perfeição como diria o Conselheiro Acácio, não constitui o método mais adequado. Morsi tenta explicar a afobação porque ele supostamente careceria dos poderes para superar as obstruções potenciais, que partiriam dos juízes designados por Hosni Mubarak, ou mesmo de opositores populares que, segundo a pouco coerente argumentação do Chefe de Estado, estariam procurando descarrilar  a transição para a democracia.
            Dados os métodos empregados por Mohamed Morsi, o ceticismo é devido, porque ninguém de boa fé quer preparar a democracia com decretos em que se outorga onipotência, a par de proibir a audição da justiça. 
            A oposição afirma que os Islamitas estão intentando forçar (ram through) uma constituição defeituosa, que lhes permitirá levar a Sociedade egípcia na direção do conservadorismo religioso.
            Entre outras críticas, analistas e grupos de direitos humanos dizem que o projeto contém ambiguidades (loopholes) que poderiam tirar toda validade dos dispositivos para a liberdade de expressão. Dessarte, embora ostensivamente declare o direito do livre discurso, a constituição também proíbe expressamente ‘insultos’ para ‘ profetas religiosos’.
            A Carta assevera que um dos propósitos da mídia é o de defender a moralidade pública, e a”verdadeira natureza da família egípcia”. Especifica, outrossim, que é requerida a autorização do governo para operar estação televisiva ou um site na Web.
             Segundo Heba Morayet, de Human Rights Watch, “no texto, eles não protegeram a liberdade de expressão. Está urdido para que o governo limite esses direitos com base na ‘moralidade’ ou no vago conceito de ‘insulto’.
             Tudo faria parte de uma contra-reação dos líderes islamitas agora acreditando-se no poder, e que é precipuamente dirigida contra elementos na mídia que seriam parciais ou que até pertencem a uma conspiração contra-revolucionária para obstaculizar a transição para a democracia mesmo que tal signifique não deixam os Islamitas vencerem.
           O processo de radicalização dos últimos dias, de que tem boa parcela de responsabilidade o presidente Mohamed Morsi e o núcleo duro islamita favorável à aprovação de qualquer forma do presente projeto da Constituição – que se chocam não só com a oposição laica, mas também com a minoria cristã, representada pela Igreja Cóptica – já produziu os primeiros mortos entre os manifestantes nas cercanias do palácio presidencial. Com o recurso aos militares e a seus veículos blindados – e não há de escapar do observador a ironia em tal desenvolvimento, eis que o presidente Morsi destituíra a treze de agosto de forma sumária a junta militar liderada pelo velho marechal Mohamed Hussein Tantawi – a luta com a oposição sai das palavras e dos discursos para a lógica das balas que, se há de ceifar perigosos adversários, pode enraizar a batalha e aprofundá-la com o sangue dos mártires.
           Em um primeiro tempo, a húbris de Morsi o levara a dirigir advertências contra três antigos candidatos presidenciais. Não é gente desconhecida, e de pouca monta. Objetos do ´aviso ´ são Mohamed El-Baradej, antigo presidente da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA); Hamdeen Sabahi, líder do partido nasserista; e Amr Moussa, antigo Ministro sob Mubarak e também antigo Secretário-Geral da Liga Árabe. São pesos pesados da política egípcia, a que um político mais hábil traria para uma conversa em palácio. A capacidade mental e política de Mohamed Morsi resta ainda a ser determinada. Não chegou onde está por falta de tirocínio intrapartidário, mas é grande a distância entre o militante e o estadista.
         Nos últimos dias, a violência praticada contra opositores – seis mortos e 450 feridos – deixou um outro rastro. As demissões de princípio começaram com a saída do diretor da emissora estatal e do cristão Rafik Habib, que era o vice-presidente do partido Justiça e Liberdade da Irmandade Muçulmana, o exemplo preferido para explicitar o empenho da Irmandade em prol da tolerância e do pluralismo.  Nada como uma crise para desnudar os intentos de mascarar os objetivos da Irmandade com o tokenismo de representantes em postos altos, ainda que figurativos. Outra demissão que não ajuda Morsi foi a partida de Zaghoul el-Balshi, que tinha sido designado novo secretário-geral da comissão supervisora do planejado referendo constitucional.
          Quanto ao papel dos militares em defender do povo egípcio o seu presidente eleito e empossado, há qualificação relevante a fazer. Depois de afastados abruptamente através da citada demissão da junta, eles mantêm silêncio, cujas implicações são bastante aparentes. Tampouco estão colaborando com a proteção de Sua Excelência, que cabe exclusivamente à guarda presidencial, que está submetida ao comando direto do Chefe do Estado.
            Para os que tem memória, a noite de lutas da quarta-feira última foi o choque mais grave entre facções políticas desde os dias do golpe militar do coronel Gamal Abdel Nasser contra o rei Faruk, há sessenta anos atrás.  Abdel Moneim Aboul Fotouh, um popular líder da Irmandade e que pleiteou a presidência como um Islamita liberal – e que até agora ficou de fora do choque entre Morsi e seus oponentes seculares, criticou o presidente e a Irmandade por convocar os seus partidários civis para defender com a força o palácio, ao invés de recorrer às instituições de manutenção da ordem.
            “ O palácio – disse Aboul Fotouh em uma conferência televisiva – não é propriedade privada seja da Irmandade, seja do Dr. Morsi. Ele pertence a nós e a todos os egípcios. Estava ladeado por outros dois demissionários do governo Morsi: um assessor presidencial, que acabara de demitir-se , e  por um famoso poeta revolucionário, filho do Xeque Yusuf al-Qaradawi, talvez o estudioso religioso de maior influência no munda sunita, e um guru espiritual para a Irmandade Muçulmana.
              Pelo visto, Mohamed Morsi superestimou a própria capacidade de embair o povo egípcio e fazê-lo engolir um texto constitucional que está ao arrepio do sentir da sociedade civil.  Um erro de tal amplitude faz movimentar forças que até os argutos assessores da Irmandade, tão sedentos do exercício do poder de que há tanto tempo foram mantidos à distância, semelham desorientados, não sabendo se devam renunciar como tantos outros, ou se, em prestando desesperada solidariedade, se aferram à esperança de que a sua hora afinal não esteja perdida. Inshallah [1]!
 


( Fonte:  International Herald Tribune )



[1] Oxalá.

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