sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

A Marcha da Loucura


                                         
           O livro de Barbara W. Tuchman[1] – que já citei no blog -   A Marcha da Loucura  - de Tróia ao Vietnam, publicado em 1984, a cinco anos de sua morte, guarda ainda muita relevância, e não só no que se reporta a guerras e revoluções.
            Uma aplicação presente dessa tão humana característica, nós a vemos desenrolar-se na política de Pindorama.  Da capacidade da húbris e da insânia de tomarem as rédeas das questões humanas, já nos fala Platão, ao descrever o comportamento do homem  como uma biga de dois corcéis (o da razão e o da paixâo) e da necessidade do condutor controlá-las com firmeza e resolução.
            É longa e nunca monótona a lista dos abusos, contra-sensos e irracionalidades a se apossarem dos homens e de suas associações. Vê-la em ação é por si só um espetáculo como se alguém comparecesse aos terreiros das quartas-feiras para presenciar, por curiosidade ou interesse sociológico, os arroubos de uma possuída pomba-gira.
           Em artigos passados, tenho versado sobre a representação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Não é o caso de aqui repetir o que foi exposto anteriormente, mas tão somente sublinhar o caráter distorcido das quotas dos eleitos (na Câmara) e inchado (no Senado), a que se agrega na câmara alta uma vasta dose patrimonialista. A chamada Constituição Cidadã, que tem aspectos notáveis, trouxe o defeito da prolixidade. O mais grave, porém, é que acatou premissas da carta do regime militar, como a desproporcionalidade nas quotas de representação estadual na Câmara. Não estabelecendo tais quotas pelo fator demográfico, criou-se aqui o que quase demandou uma revolução na Inglaterra (primeiras décadas do século XIX) para desmanchar, i.e., o dito fenômeno dos burgos podres.
          No Brasil dos fins do século XX não só confirmamos, mas agravamos o despautério. Para resumir a ópera, há um evidente descompasso entre o sentir da sociedade civil (conforme apurada em pesquisas sérias) e as votações em Brasília (obviamente no único dia de trabalho integral desses abnegados pais da pátria, a quarta-feira). De certa forma, porém no mau sentido, o Brasil da Câmara dos Deputados se reruralizou. Voltamos pela esperteza marota dos militares a ter bancadas que não refletem o estágio e a visão da atual sociedade, eis que está sobrerrepresentado o segmento interiorano, com todos os seus penduricalhos do voto de cabresto et al. A contradição neste aspecto é ainda mais realçada pelo fato de que o Brasil dispõe de justiça eleitoral de primeiro mundo (é só comparar a apuração nos Estados Unidos e a no Brasil, para que tenhamos a clara noção da indiscutível respectiva vantagem no capítulo), o nosso país tem no Congresso Nacional, o que pode ser visto como uma representação de terceiro mundo.
           Estarei sendo acaso demasiado severo e quem sabe injusto com nossos nobres representantes? O brasileiro esquece com excessiva rapidez os escândalos e as alegadas falhas éticas de nossos parlamentares. No segundo mandato do Presidente Lula da Silva, com a crise no Senado Federal,  houve até representante que levantasse a hipótese de o Povo Soberano decidir sobre a supressão do Senado (depois voltou atrás, valendo-se de um colunista de nomeada para dar o dito por não dito). Foi a época da revelação dos atos secretos, com o comprometimento do seu quase eterno Presidente José Sarney, desprestígio esse que o forçava a ir de carro do seu gabinete para a curul do plenário, porque não se sentia confortável no acesso pelos corredores, talvez pelas observações do público.
           Ao contrário de suas passadas avaliações do Presidente Sarney (registradas na internet), Lula veio a campo para defendê-lo. Pronunciou um absurdo constitucional – que Sarney não era um cidadão comum – e que por isso tinha de ser preservado. Com tal despautério, afastou sumariamente a cláusula pétrea da igualdade cidadã (ipso facto denegada), mas foi o que bastou para reforçar o combalido Vice-rei do Norte, e em poucas semanas já não mais se falava de cassação do presidente Sarney, ou de supressão do Senado.
          Como muita vez em Pindorama, uma intervenção adjetiva – a exemplo da acima citada – foi mais do que bastante para desanuviar o sombrio horizonte da Câmara Alta. E, sem embargo, as causas permanentes aí estão para evidenciar que tudo continua como dantes no quartel de Abrantes.
          Dessarte,  tanto no Senado (sobretudo por causa dos suplentes ),  em que, para vergonha dos constituintes de 1988,  cláusula patrimonialista  permite que cada Senador indique três suplentes, que por impedimento do titular - seja terminal, seja provisório - tronejam e votam no augusto recinto como se tivessem a autenticidade do sufrágio majoritário, quanto na Câmara – para nos adstringirmos a critérios objetivos – as bancadas individuais e o conjunto de parlamentares recebem baixas  avaliações pela sociedade civil de conformidade com os institutos de pesquisa.  
          Nesse contexto, entra elemento sócio-político que, no Brasil, contribui para que o chamado rio do Letes, vale dizer do esquecimento, possua caudal respeitável, com perniciosos resultados para a afirmação da cidadania. Explico-me: enquanto noutros países, como v.g. no Reino Unido, os membros do parlamento são vigiados por seus eleitores para que reponham somas indevidamente utilizadas para fins particulares (como ocorreu há pouquíssimo tempo), no Brasil o deputado Sérgio Morais (PTB/RS) pode sonoramente gabar-se de que se lixava para o opinião pública e, no entanto, tal menosprezo de seus eleitores não o impediu de ser reeleito para a Câmara, na legislatura seguinte. Por outro lado, há exemplos mais gratificantes, como o castigo da não-reeleição da deputada Angela Guadagnin (PT/SP), com a dança da pizza, ao externar sua alegria pela não-cassação em 2006 do colega João Magno (PT). Atualmente, Angela Guadagnin conseguiu eleger-se vereadora por São José dos Campos, e luta para avançar na escada política.  
          Ainda no campo de auferir vantagens indevidas, o bem-conceituado deputado Fernando Gabeira (PV/RJ) teve de justificar passagens aéreas para sua filha, em viagem para o Havaí. Nos idos de 2009, segundo assinala o blog de Lucio Machado Borges, a chamada verba indenizatória se prestou a muitos abusos, a começar pelo recordista, que é o deputado (ainda por cima de primeiro mandato)  Dagoberto Nogueira Filho (PDT/MS), com quarenta viagens internacionais (janeiro de 2007 a outubro de 2008).
           Dentro do esquema brasileiro, se há um escândalo  convoca-se uma comissão que tem  prazo (em geral generoso) para propor uma solução. Em muitos casos, as gavetas metafóricas funcionam à maravilha, e com o espaço público de memória necessariamente estreito, estão postas as condições para que as disposições reformadoras sejam convenientemente esquecidas.
           A solução para este uso indevido das passagens aéreas seria em 1º  lugar a  moralização do sistema, com a proibição de que sejam transferidas a qualquer terceiro, parente ou não, e em 2º lugar a  redução a uma passagem por mês, o que seria contribuição importante para garantir presenças regimentais nos demais dias úteis da semana. Por outro lado, se Suas Excelências carecem de mais viagens, que as paguem do próprio bolso, como todos os brasileiros em geral. Basta de privilégios.
           O leitor se terá dado conta de que infelizmente não é difícil escrever sobre as várias formas da corrupção. Com a sua devida vênia, gostaria de pedir-lhe a atenção para a situação calamitosa em que se encontra o governo da Presidente Dilma Rousseff nas suas relações com o Poder Legislativo.
          Pelo empenho de seu criador, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a candidata Dilma Rousseff não só conseguiu  vencer com relativa facilidade o adversário José Serra (PSDB), mas também recebeu de bandeja uma enorme base parlamentar de apoio, formada pela sopa de letras que constitui o multipartidismo no Brasil. Como referi em blogs precedentes, a Presidente Dilma, com pouco traquejo político (exceleu no papel de primeiro-ministro de Lula, de 2005 a 2010, cuidando de gerenciar os demais ministros e de enquadrá-los administrativamente), preteriu a outros pré-candidatos no PT ao Planalto, ex vi da vontade do Líder Máximo.
           Por motivos diversos, Dilma Rousseff não soube utilizar o dito privilégio dos cem dias, quando é grande a força do Presidente (tem condições de fazer aprovar quase tudo, como Fernando Collor infelizmente o demonstrou). Não só as grandes reformas de que o Brasil carece – a política e a fiscal avultam  - mas também a externalização do poder da caneta e o estabelecimento de uma forte influência sobre a referida base de apoio (que está aí, pelo  visto, para apoiar o governo, com as minhas desculpas pelo pleonasmo) – tudo isso que não é decerto pouco foi deixado no limbo. Dilma não semelha apreciar muito entrevistas coletivas – que são  traço de união e de conscientização da opinião pública;  e tampouco não parece muito chegada ao diálogo político, e ao contato com os diverso líderes.
           Terá a Presidente Dilma Rousseff cogitado, estribada em uma assessoria política que não peca pelo excesso de brilho, que, dado o trabalho de costura de seu antecessor, criador e líder máximo, tudo o mais viria por acréscimo ? A política, tanto a grande quanto a pequena, não tem condições de desdenhar do trabalho denodado e também aborrecido que tende a ser quase diuturno, ainda mais se tivermos presente a inchação da famosa base, os egos dos chefes de fila respectivos, etc. etc.
            Talvez Dilma Rousseff tenha confundido o seu trabalho de gerente na Casa Civil, com o atual de Presidente. Se tratava no passado com subordinados (por mais altos que fossem os respectivos poleiros), e podia falar grosso e extravasar o seu já proverbial mau humor, agora, com todo o seu poder, ela não deve esquecer que a sua relação com o Legislativo é teoricamente feita sob o pressuposto da não-verticalidade, e sim do convencimento e da persuasão. Através desses instrumentos, e dos singulares atributos da caneta presidencial, alguém que saiba cultivar os representantes do Poder Legislativo, ainda mais de sua base de apoio, terá condições quase excepcionais para conseguir atingir os próprios objetivos. Agora, se ao invés de cultivar a base, através de seus líderes e sub-líderes, a Presidenta, por achar aborrecida esta faina, delegar tal contato a outrem -  que por mais bem intencionado que seja, sempre transmitirá ao interlocutor no Congresso a impressão de que ele (ou ela) está ali pela simples razão de que a presidenta não quer perder seu precioso tempo com conversas e quem pleitos junto ao líder tal, não obstante a importância que tal senhor possa ter em arrebanhar votos para questões importantes, por vezes fundamentais para o interesse da União.
           Menosprezando o seu poder de articulação e da palavra, a presidenta abre um fosso entre o Planalto e o Congresso, e dessarte verá muito diminuídas as suas possibilidades de êxito junto a projetos e resoluções que o Governo estima básicos e significativos para levar avante o respectivo programa.
            O que assistimos no presente não é, no senso estrito, uma marcha da loucura do Legislativo. A Presidente Dilma Rousseff coleciona derrotas na Câmara e, em grau menor, no Senado, pelo simples motivo de que não atribui aos legisladores a importância e o contato amiudado indispensável para transformar a sua base parlamentar, tão imponente nos números, e até hoje tão decepcionante nos resultados, em uma realidade do governo Dilma, e não a expressão vazia, quase de deboche, que vem sendo na prática.
            Como não é soberana, nem uma Bismarck – que teve por quase vinte e oito anos um Soberano, Guilherme I que foi inteligente bastante em nomeá-lo, apoiá-lo e dar-lhe força contra as intrigas dinásticas, porque realizou a genialidade política do Chanceler, e o seu imperial interesse  em apostar em  personalidade com condições de produzir os resultados desejados – a Senhora, se deseja que os projetos do governo naveguem em mares não turbulentos carece de inspirar-se em Getúlio Vargas (que recebia a todos os parlamentares que lhe pedissem audiência) e em Juscelino Kubitschek, que tinha relacionamento diário com os chefes do PSD e do PTB, e por isso soube contornar a raivosa oposição da bancada da UDN, orquestrada pelo líder Carlos Lacerda.



[1] Barbara W. Tuchman, historiadora estadunidense (1912-1989)

Nenhum comentário: