quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O Herói Liu Xiaobo

                                  
       Confinado em masmorra no interior da China, Liu Xiaobo serve iniqua pena que lhe foi cominada pelo crime de coordenar a Carta 08, em dezembro de 2008. Inspirado na Carta 77, iniciativa de Václav Havel,  o documento é modelo de moderação e racionalismo,  alvitrando a transição democrática para seu país.
       Nesse contexto, a trajetória de Zhao Ziyang, de que já me ocupei por diversas vezes neste espaço, ressalta a importância do imponderável na determinação do destino não só de grandes personagens, senão de nações como a República Popular da China.
       Com efeito, Zhao, como Primeiro Ministro, fora o artífice da abertura econômica, cuja reforma libertara a economia chinesa das peias do marxismo-leninismo. Atribuída à liderança de Deng Xiaoping, a reformulação foi na verdade implementada por Zhao.
      Com a forçada renúncia de Hu Yaobang em 1987 da chefia do Partido Comunista – desagradava a Deng a sua posição liberal -, Zhao Ziyang foi indicado pelo líder chinês para o lugar de Hu.
      Neste novo cargo, Zhao seguiu a linha básica de seu antecessor, convencido que estava na hora de reformar e democratizar também a orientação política do partido, dada a inviabilidade de reforma ampla que não contemplasse, ao lado da econômica, também a faceta política.
     Ainda sem definição sobre a linha política, morre a quinze de abril de 1989 Hu Yaobang, o que serve de estopim para as manifestações estudantis de protesto. A situação permanece tensa, mas indefinida. Em 22 de abril, Zhao propõe um approach triplo para a crise: encorajar a volta às aulas, manter o diálogo e valer-se da lei somente para punir aqueles que houvessem cometido crimes.
      Pouco depois, Zhao tem de viajar para conversações com a liderança da Coreia do Norte. Grupelho conservador, liderado por Li Peng se aproveita de sua ausência para convencer o lider Deng da gravidade da situação estudantil, apesar de existirem inúmeros indícios de que o movimento já começava a declinar.
     O texto elaborado pelo grupo de Li Peng é aprovado por Deng. A súbita e severa condenação pelo Máximo Líder das manifestações estudantis surte o desejado efeito pela camarilha conservadora. As tensões recrudescem, o que provoca grave crise política.
     Regressando da Coreia do Norte, Zhao se defronta com situação dramaticamente mudada. Os excessos verbais de Deng servem à direita, eis que radicalizam os estudantes, e tornam inanes os esforços de Zhao, com as mãos atadas, eis que o velho líder considera qualquer concessão de sua parte como inadmissível recuo.
    A dezessete de maio, em reunião na casa de Deng Xiaoping, este decide impor a lei marcial, com o que não concorda Zhao. Fracassa na  tentativa a 19 de maio de fazer com que os estudantes abandonem a praça. Em junho, há reunião do Politburo ampliado, em que Zhao é criticado e despojado de todos os seus cargos. Principiam aí os dezesseis anos de prisão domiciliar e isolamento.
     O resumo acima remete, portanto, para o significado embutido na breve, mas fatídica ausência, de Zhao Ziyang do centro nervoso das decisões. O seu afastamento permitiria à clique conservadora de Li Peng convencer ao ancião Deng Xiaoping da necessidade de empregar linguagem forte contra os estudantes. Para tanto, brandiram com o fantasma da rebelião estudantil. Obtido o assentimento do líder supremo, estava pavimentado o caminho da crise – que aproveitava à visão regressista e antiliberal do grupelho de Li Peng -, o consequente reforço das medidas discricionárias  de que o massacre da praça de Tiananmen, a quatro de junho de 1989, seria a conclusão.
      Se tal imponderável tivesse sido evitado, a evolução política chinesa tomaria um viés muito diverso. Com Tiananmen e a vitória da direita de Li Peng, desaparecido de cena Deng Xiaoping tivemos o engessamento da liderança do PCC, e a manutenção de seu poder político. O caráter burocrático dessa liderança estimulou modelo repressivo tornado indispensável pela própria necessidade de autopreservação, com a cristalização dos instrumentos disponíveis e o avanço da corrupção, já de resto previsto por Zhao Ziyang.
      Ao invés de ambiente aberto, que favorecesse o debate e as melhores soluções, surgiu um antimodelo, forçosamente repressivo, em que se criou um processo de sucessão regulamentada de altos funcionários, com turnos determinados, em que a preservação da maquinária é mais importante de o que venha a produzir. Daí, a tendência burocrático-ditatorial que a tudo sobreleva, e que por conseguinte tem horror da evolução, da novidade e do jogo democrático.
     Feito este parêntese, voltemos ao nosso personagem. Quando eclodiu a crise estudantil de 1989, Liu Xiaobo estava em New York, em um posto acadêmico. Não hesitou em regressar prontamente à China, preferindo o risco e as incertezas à segurança de seus estudos nos Estados Unidos.
     Não abandonou  a praça durante os últimos dias das manifestações estudantis. Tentou convencer os estudantes de que a política democrática deve ser ‘politica sem ódio e sem inimigos’. Uma vez declarada a lei marcial, Liu negociou com o exército na esperança de obter uma evacuação pacífica da praça.
      As suas intervenções decerto salvaram vidas, em meio à carnificina que foi o massacre da Praça da Paz Celestial. Como ‘agradecimento’ de seu generoso empenho,  três dias depois da hecatombe, Liu Xiaobo foi detido. Sem julgamento, permaneceu dois anos no cárcere.
      Ao sair da prisão, perdera a cátedra na universidade, não podia mais publicar, e tampouco pronunciar conferências públicas na China. Não esmoreceu, porém. Através da internet – que depois ele chamaria de ‘verdadeiro dom de Deus para o povo chinês’- continuou a escrever, logrando inclusive publicar artigos no exterior (Hong Kong e Taiwan). Sem qualquer apoio da mídia local, conseguiu no entanto os parcos recursos indispensáveis ao próprio sustento. O seu prestígio na web culminaria com o patrocínio da Carta 08.     
       Não tardaria muito, porém, que a sua singular liderança intelectual se traduziria no sofrimento da prisão e de trágica farsa de processo criminal. Preso a oito de dezembro de 2008, seria mais adiante formalmente incriminado de ‘incitar a subversão contra o poder do Estado’. A 25 de dezembro de 2009 seria sentenciado a onze anos de cárcere.
       Diante da notícia da concessão do Prêmio Nobel, em 2010, a reação das autoridades chinesas só pode ser definida como histérica. Trataram logo de manter sob estrito controle os movimentos respectivos não só da esposa, Liu Xia[1], mas de seus parentes,  amigos e conhecidos. O escopo era de evitar que algum deles lograsse chegar a Oslo  para receber, em nome do agraciado, o diploma da premiação.
        O comportamento do governo chinês – que buscou até intimidar a Noruega e os funcionários noruegueses porventura implicados na concessão do Nobel – só tem um parâmetro histórico, de resto já mencionado: a brutal negativa, em 1935, pelos gangsters nazistas ao detido Carl von Ossietsky de comparecer a Oslo.    
        Qual o significado do Prêmio Nobel para a República Popular da China ? A sua lista registra nove nomes – aí incluídos Liu Xiaobo e o 14º Dalai Lama, também a título da Paz. Dentre os agraciados, há um Nobel de literatura, cinco de Fisica e um de Medicina.
       Na sua reação desmedida e ridícula reação contra o Nobel da Paz a Liu Xiaobo a ditadura de Beijing pôs a nu a própria ínsita fraqueza. Igualar-se na intolerância a uma tal premiação desvela a respectiva mediocridade. Se tivessem um grão de sabedoria politica mesmo a contrario sensu tratariam de evitar uma tal pública confissão de insegurança. A postura intolerante da hierarquia chinesa relembra à daqueles régulos do ocaso do absolutismo, que Stendhal imortalizou na Cartuxa de Parma.
       Será penoso contemplar a progressão do carro chinês para a hegemonia universal? Estará fadada a Humanidade a curvar-se perante essa gente pequena, ora encastelada no poder, ou será que o exemplo de Liu Xiaobo nos surpreenderá uma vez mais no futuro ?



(Fontes: The New York Review of Books,  Ele Disse a Verdade sobre a Tirania da China; Prisioneiro do Estado – o Diário Secreto do Premier Zhao Ziyang )



Nota Aditiva sobre o Nobel.   

       Para minha surpresa, verifiquei que há um brasileiro agraciado com o Nobel. Trata-se de Peter Medawar, de família de origem libanesa, e que se transferiu para a Inglaterra, onde veio a ser aquinhoado com o Nobel de fisiologia, em 1960. O físico Cesar Lattes, por suas pesquisas em torno da partícula méson p, malgrado muita cobertura de imprensa, não foi premiado.  Talvez o brasileiro que mais perto esteve do Nobel foi D. Helder Câmara, a quem a ditadura militar logrou impedir fosse galardoado. Por seu trabalho, carisma e apostolado incansável, foi uma pena que não o tenha sido. 
        Jorge Amado foi  outro  bastante falado – e que não teria sido distinguido por suposta implicância de um influente membro do comitê... Diante da esmagadora massa das indicações europeias e americanas, talvez ressalte a colossal injustiça da preterição do grande poeta Carlos Drummond de Andrade.
        



[1] Liu Xia está ‘cumprindo’ o seu segundo ano de detenção domiciliar. As suas únicas saídas de casa ocorrem nas viagens para a longínqua prisão, onde Liu Xiabo está submetido à permanente reclusão, em drástico regime que lhe afeta a frágil saúde.

Nenhum comentário: