A obra imortal do Marquês de Beccaria, publicada em 1764,e que tanto contribuíu para a humanização e a compatibilização das penas, se é decorrência da filosofia de contrato social (Rousseau), constitui, sob o iluminismo e os expoentes do enciclopedismo, um dos marcos do direito penal da modernidade.
Um dos objetivos precípuos de Beccaria era o de que os tribunais se norteassem por critérios objetivos, humanos, e não por supostas provas da justiça divina. A adequação das penas corresponderia a dados concretos e não extraordinários. Tampouco seria admissível a tortura, que antes de aclarar, deforma e conspurca o processo legal.
Ao concluir-se o juri popular do motoboy Lindemberg Alves Fernandes, a sentença aplicada pela juíza Milena Dias foi considerada excessivamente alta por advogados especialistas, consultados pela Folha.
No entender do advogado Romualdo Sanches Calvo Filho, presidente da Academia Paulista de Direito Criminal, “com todo respeito, a juiza Milena Dias foi draconiana. Mão de bigorna, muito pesada”.
Por sua vez, além de classificar como “draconiana” a dosagem da pena, o advogado Alberto Zacharias Toron aduz: “Tudo foi na escala praticamente máxima. Isso me parece que viola o princípio da proibição do excesso”. E acrescenta: “Isso é um absurdo. (...) É comum em casos de repercussão que se queira uma pena mais elevada. Até aceito, um pouco mais elevada, mas não a pena máxima. Acho que faltou à juíza, com todo respeito, sensibilidade.”
Pelo alegado rigor da juíza, os referidos especialistas acreditam que a pena deve ser reduzida pelo Tribunal de Justiça.
A avaliação realizada pela Folha se ressente, no entanto, da circunstância de que apenas ouviu os advogados, e não colheu qualquer testemunho de magistrado. Não ignoro as eventuais dificuldades de obter pareceres de juízes, pelas contingências processuais, mas o resultado da enquete tende a dar um viés determinado, que pode não corresponder à realidade do exame pelo tribunal de segunda instância.
Há alguns pontos objetivos, sem embargo, que devem ser levados em conta, se se caracteriza a atitude da juíza como ‘draconiana’, chegando mesmo a atribuir-lhe ‘falta de sensibilidade’.
Como se classifica o procedimento do criminoso, ao manter, por mais de cem horas, em cárcere privado a sua ex-namorada Eloá Pimentel ? A par disso, o cárcere privado atingiu, além da vítima, mais outros três amigos de Eloá como reféns, sendo que Nayara Rodrigues, por duas vezes. E não esqueçamos que os quatro disparos de arma de fogo foram com intúito de matar. Se logrou infelizmente o seu escopo com a ex-namorada Eloá, feriu gravemente a amiga Nayara.
Data venia, o direito penal brasileiro se ressente de muitas contradições. Uma delas pode ser exemplificada no caso do assassino confesso Pimenta Bueno que permaneceu em liberdade por longos anos, valendo-se de jurisprudência do Supremo, em que a presunção da inocência exigiria condenações em todas as instâncias, vale dizer três. Por outro lado, por progressão de pena, mesmo no caso de crimes hediondos, como tráfico, terrorismo e sequestro, está assegurado ao criminoso a liberdade dita condicional, ao cabo de um terço de servir a sentença que lhe foi cominada.
Abundam os exemplos de traficantes e assassinos que, por bom comportamento, obtiveram a faculdade do chamado regime aberto, que lhes garante o trabalho e os fins de semana fora, estando obrigado a nos dias úteis recolher-se à noite à prisão. Em inúmeros casos, tais indivíduos desaparecem do visor legal, entrando na clandestinidade.
Dessarte, seja qual for o crime, a extensão da sentença e sua aparente severidade carecem de ser redimensionadas, pela leniência das reduções embutidas na parte prisional. A própria tentativa de tornar excepcionais v.g. os delitos de sequestro foi na prática inviabilizada, pela jurisprudência do Supremo, que faz diferir o efetivo cumprimento das penas de forma muito marcada, se cotejarmos o nosso direito penal em sua efetiva aplicação a outros países, como, por exemplo, os Estados Unidos.
É de perguntar-se qual seria a reação do Marquês de Beccaria, no que concerne ao sistema prisional e à aplicação das penas no Brasil.
Quanto aos cárceres, na grande maioria dos casos, não veria grande diferença no que tange às masmorras de sua época, na sua esqualidez, e na falta de condições humanas para os detentos e condenados.
No que tange à aplicação das penas, se teceriam elogios à abolição das capitais, ficaria quiçá perplexo diante de privilégios atribuídos de forma indiscriminada, e que na prática podem servir apenas a tirar-lhes o caráter de sanção, transformando-os em atalhos pára-legais que se implementam na prática, a contrario sensu das motivações da ordem jurídica em geral.
( Fonte: Folha de S. Paulo )
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