sábado, 4 de fevereiro de 2012

Assad será a bola da vez ?

                           
        A Síria, encaixada entre a Turquia ao norte, o Oriente Médio (Iraque) a leste, o Mediterrâneo e o Líbano a oeste, e a Jordânia e Israel ao sul, sempre foi terra de passagem, por onde transitaram exércitos e religiões. Antes, ela se estendia mais a oeste e a sul, e os próprios fenícios que, pelo escambo e comércio, espalharam feitorias e conhecimento pelo Mediterrâneo, constituiam etnia que progressivamente se confundiria com os naturais da Síria.
       Não há de surpreender, portanto, que o credo alauíta, seita derivada do islamismo xiita, seja  religião pluralista, onde princípios de muitas crenças encontram guarida. Se bem que o Islam sunita venha a ser majoritário na Síria, com a instituição da ditadura da família Assad, a seita alauíta é, na prática, a religião do Estado. Dadas as suas características de abrangência, a par de ser minoritária, perpassa o alauismo uma tolerância não só com as religiões ditas do Livro (cristianismo e judaísmo), mas também com as outras correntes muçulmanas o que não é usual em terras do Crescente.
      Embora o clã Assad tenha cuidado de prover os altos mandos do exército com oficiais alauítas, gerando alguma tensão com os sunitas preteridos, não há negar que prevaleça esse respeito a religião diversa que, se é traço ínsito da civilização ocidental, não se encontra tão facilmente nos orientes próximo e médio.
      Dessarte, não obstante a rigidez política da tirania de Assad, ela tem na tolerância religiosa – há também muitos cristãos na Síria – um de seus elementos de sustentação.
      No entanto, a ameaça sempre mais verossímil à longa ascendência do clã Assad tem condicionado parte do regime ao indiscriminado recurso à violência como ‘solução’ para o problema da insurreição democrática.
     Que a vontade do povo sírio, na sua maioria, de livrar-se da ditadura do oftalmologista Bashar al-Assad persista através de onze meses de acérrima porfia, não se afigura detalhe de somenos importância, que representantes de outras autocracias possam fazer pouco, nas acarpetadas câmeras do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
     Não só pelo rígido cerco à informação, senão pela solerte prática da mentira como remédio para incômoda realidade, o número de baixas não só de manifestantes desarmados, como até de mulheres e crianças vai muito além das cinco mil e quatrocentas, que as difíceis e precárias escutas dos defensores dos direitos humanos ora computam.
     O poder de Bashar se baseia no fuzil. Pública e notória é a limitação de tal instrumento para os ditos déspotas não-esclarecidos[1]. As restrições no emprego desta arma são basicamente duas: ele tem de ser contínuo e pressupõe um braço que esteja sempre disposto a obedecer às ordens do ditador.
      A primavera árabe – deflagrada pela auto-imolação do verdureiro tunisiano Muhammad Bouazizi – se alastrou por muitas terras e autoritarismos. Ao iniciar-se na Síria, o seu caráter pacífico e a férrea implantação da tirania hereditária dos Assad tornavam-lhe o êxito  bastante problemático.
       Sem contar de início praticamente com nenhuma ajuda – pois não são apoio crível vazias condenações em desdentadas resoluções ou a simpatia nos meios de comunicação do estrangeiro -, as pacíficas manifestações, seja na sexta-feira, dia santo do culto islâmico, seja em nervosas passeatas em logradouros públicos, só colheram a covarde repressão à bala das forças de segurança e, mais adiante, do exército lançado contra o próprio povo.
      Ao invés de o que ocorreu  na Líbia, onde a repressão do mais antigo ditador pôde ser combatida, com o aval das Nações Unidas e o braço da Nato, para levar a resistência saída da histórica região da cirenaica para toda a vasta extensão da terra antes de Kaddafi, na Síria, a despeito de suas enganosas promessas, o tirano Bashar pôde metodicamente concentrar-se na sua IV divisão blindada, chefiada pelo irmão Maher,  nas forças de segurança, e nos esquadrões de conscriptos, esses cada vez menos confiáveis, pela sua baixa paga e origem popular.
      Cabe aqui repetir esse fenômeno das revoluções. O despotismo tem pés de barro, e o dia-a-dia tende a mostrar o seu caráter anti-popular. Foi assim na Revolução Francesa e as demais, pelas atitudes de opressores e oprimidos, costumam repassar a mesma lição, aprendida pela experiência e não pela palavra da autoridade.
      Os supostos bandidos armados são fábula da propaganda dos Assad, em que só acreditam aqueles interessados na sua permanência.
      A persistência da contestação interna e, se necessário fora, os inúmeros testemunhos em contrário, desmontam as patranhas do oficialismo de Damasco. Além disso, um levante de onze meses, espraiado em todas as regiões, enfraquece o poder central a par de minar-lhe os recursos.
      Nesse sentido, as sanções aplicadas pelo Ocidente e pela Liga Árabe são igualmente um instrumento que não mais pode ser considerado um incômodo contornável.
      Assim como o Império Otomano decaíra, a partir de fins do século XVII, a ponto de ser denominado de Homem Doente da Europa, mutatis mutandis e guardadas as óbvias diferenciações de grau, Bashar al-Assad, senhor da Síria, terra de passagem entre Ocidente e Oriente, com a irrupção da Primavera Árabe, veio a candidatar-se, ao dúbio título, antes concedido à Sublime Porta[2], de homem doente (do Oriente Próximo).     
      Bashar al-Assad não está despojado de apoios externos. A Federação Russa, através de seu Primeiro Ministro (e homem forte) Vladimir Putin, não perde ocasião de demonstrá-lo. O útil episódio da negociação de projeto resolução da Liga Árabe, em que se alvitrava a possibilidade de Assad renunciar em favor de seu Vice-Presidente, e sem qualquer menção de ‘outras medidas futuras’, veio a naufragar pela imperial recusa da Rússia – que dispõe de veto no Conselho – de aprová-la, sem embargo das tentativas de ainda mais afrouxar os parágrafos executivos do projeto.[3]
        Sem dúvida, a Rússia está escarmentada pelo que concedera na resolução a respeito da Líbia, e que permitira os bombardeios da Nato. Putin, por motivos não muito difíceis de apurar, teme medidas que favoreçam a queda de ditadores.
        Não obstante, esse seu empenho em prol de Assad não é pessoal – como fez questão de precisar o seu Ministro Sergei Lavrov – e esta sua proteção ao presidente sírio será norteada pela sua capacidade de sobreviver ao presente desafio.
        No momento em que Assad aparecer como o Concordia, Putin não há de hesitar de abandonar a nave, como o fez o comandante Francesco Schettino, porque será sempre indispensável evitar-se afundar junto com o lado perdedor.
       Como artigo do especialista Daniel Treisman para CNN indica, os motivos de Vladimir Putin vão além de uma disposição de assumir posições próprias da antiga União Soviética, em termos de afirmação de potência.
       Pode haver também tal interesse, mas não se deve esquecer que Bashar al-Assad tem aproveitado para a Rússia. Há interesses estratégicos em jogo. Em Tartus, a Síria oferece  a única remanescente base naval (nas águas quentes do Mediterrâneo) à marinha de guerra da Federação Russa. Como sublinha Treisman, abandonar essa cabeça de ponte no Mediterrâneo – aonde seiscentos técnicos russos estão ora empenhados em reaparelhá-la – seria para a Rússia uma vergonha.
      Também no aspecto armamentista há muito em jogo. Os contratos de vendas de armamento – assinados ou em negociação – montam a cinco bilhões de dólares. Para indústria que perdeu US$ 13 bilhões (pelas sanções internacionais contra o Irã) e US$ 4.5 bilhões por contratos cancelados com a Líbia de Kaddafi, as empresas russas já não estão em boa situação.
      Além das exportações de armas, Treisman computa o investimento das empresas russas nos setores de infraestrutura, energia e turismo da Síria (de Assad) em US$ 19.4 bilhões, até 2009.
      Nessas condições, compreende-se a preocupação russa em que todo esse investimento vire água de barrela, e junto com o bebê se perca igualmente. Putin e auxiliares tudo farão para viabilizar Assad. Se, contudo, igualmente em terras sírias, a primavera árabe der sinais inequívocos de que Assad é um caso perdido, os russos, como observa Treisman, podem amaciar sua posição no Conselho de Segurança. Não o farão por injunções morais, mas simplesmente para não acabar no lado perdedor, e desse modo, ainda mais alienar suas possibilidades de salvar algo com os sucessores de Assad.
       Nessa já longa exposição da situação síria, apenas uma nota suplementar. A queda de Assad também seria derrota estratégica para o Irã e, nesse sentido, não será por acaso que as potências sunitas do Golfo tanto se empenham em apressar-lhe a eventual ruina.
        No que pode ser definido o acme do cinismo diplomático, Tehran organizou um forum, que denominou “O Despertar Islâmico”. A par da claque local, o regime dos ayatollahs convidou com todas as despesas pagas a cerca de mil ativistas, que tentou presumivelmente escolher a dedo.     
       Em óbvia instrumentalização da Primavera Árabe, as imagens iniciais apresentadas aos congressistas foram as da Revolução iraniana de 1979, que se transmutava a seguir em filmagens de manifestantes árabes na Tunísia, Egito, Bahrein, Líbia e Iêmen.
       Os problemas começaram aí. Porque embora não houvesse convidados das oposições sírias – a que Teerã, seguindo a linha de Assad, chama de bandidos armados a soldo estrangeiro – o incômodo silêncio sobre a revolução síria logo se chocaria com um cartaz em que se escrevia Syria em inglês. Aos aplausos subsequentes na multidão – e as vaias da seleta turma local -  o público engatou o slogan da sublevação contra Bashar: ‘Deus, Liberdade e Síria!’.
        Seguiu-se o discurso do Presidente Mahmoud Ahmadinejad: “Devemos ser vigilantes: o Ocidente está tentando fomentar o conflito sectário em nossas sociedades como parte do objetivo de manter Israel vivo. Hoje a Síria, amanhã o seu país.”
       O tom de agit-prop, no entanto, não foi suficiente para calar muitos delegados. O mal-estar na assembléia se tornou evidente, a ponto de que, na sessão da tarde, os jornalistas fossem impedidos de participar.
      Como se sabe, a par de umas poucas declarações de suposta censura a Assad, na verdade Tehran se empenha a fundo na sustentação da claudicante ditadura alauíta.
     O Supremo Líder Ali Khamenei e o presidente Ahmadinejad não desconhecem o que representará para o Irã a derrubada de Assad.
      O apoio iraniano ao Hezbollah no Líbano passa pela intermediação de Damasco, assim como o Hamas, na Palestina. A própria liderança do Hamas, diante das crescentes interrogações de sua posição na Síria, consulta da possibilidade de transferir-se alhures, como recente encontro de Khaled Meshaal com o Rei Abdullah II o indicou.
     Com a derrota de Bashar al-Assad, o governo iraniano perderia o seu único aliado dentre os países árabes. O seu enfraquecimento seria inegável, e será talvez por sentir o odor dessa condição que os principais antagonistas de Teerã não escatimam esforços para tornar a situação da República dos Ayatollahs ainda mais politica e economicamene precária.



( Fontes:  International Herald Tribune, CNN )



[1] Os chamados déspotas esclarecidos é  ficção urdida pela incipiente máquina de propaganda estatal de monarquias do século XVIII.
[2] Por antonomásia, Constantinopla – Istambul para os turcos – pela sua localização entre Ocidente e Oriente, Europa e Ásia, receberia tal epíteto.
[3] A 31 de janeiro, a Rússia, junto com a China, vetou o projeto do Marrocos, com apoio da Liga Árabe, de que Assad passasse o poder para o seu substituto. Se não atendesse à determinação, a resolução acenava  com ‘outras medidas’. Em outubro de 2011, a Rússia e a China já haviam vetado resolução que previa o uso de força.

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